Qual o verdadeiro conceito de cultura? Por que os “produtos” culturais destilados pela Civilização Cristã são tão superiores aos engendrados pelo paganismo? Durante uma reunião de trabalho, Dr. linio fez algumas explicitações a respeito dessas questões. Oferecemo-las a nossos leitores tais quais ele as expôs.
Deus, organizando o universo, teve a intenção de Se fazer conhecer pelos homens enquanto causa de toda a criação, e conhecer-Se nos seus predicados divinos.
Portanto, fazendo conhecer as criaturas pelos homens, Ele faz conhecer não só cada uma em particular, mas faz conhecer a excelência do conjunto da criação, enquanto conjunto. Como diz o Gênesis, Deus, após ter criado tudo, repousou na consideração daquilo que Ele tinha feito e alegrou-se — é um modo de dizer — porque viu que o conjunto era ótimo.
Do conhecimento de todas as criaturas, para cada homem ficam as impressões e os conceitos. Mas fica uma impressão global do conjunto, que por sua vez dá um certo conhecimento, uma certa noção, leva a um certo conceito, que é mais alto do que o conceito dos seres tomados individualmente.
Cultura de uma região ou de um povo
Uma palavra cujo sentido é muito discutido hoje em dia é “cultura”. Na verdade, para quem tenha elevação de pensamento religioso, cultura é precisamente o conhecimento global que os homens têm do universo, acompanhado de um conceito e de uma sensação a respeito do universo que não é igual para todos, mas que tem uma certa acomodação dentro da objetividade, conforme cada pessoa, família, região, nação. Segundo cada qual, isso vai se matizando e tendo uma espécie de visão própria — sempre objetiva, embora diversa — do que é o universo, do que é Deus, do que são os elementos componentes do universo e de que maneira refletem a Deus.
Isso caracteriza o espírito de um indivíduo, de uma família, de uma região, de um país ou de uma área de civilização. E quando caracteriza o espírito de uma área grande, pode-se dizer que tal visão é a cultura daquela zona.
A cultura vem a ser esse conjunto de conhecimentos e, portanto, também esse conjunto de mentalidades, fundamentalmente religioso, embora — e este ponto nos diversifica muito de certos modos de religiosidade — não exclusivamente eclesiástico ou não exclusivamente dado à oração, mas dado a um conhecimento religioso da coisa temporal.
Há, pois, um sentir das coisas afim com o pensamento, que enriquece a conceituação e é por ela enriquecido. Não se trata de algo meramente conceptual e doutrinário, como está no livro “Revolução e Contra-Revolução”, mas também de algo de sensível, que completa. A exposição que faço nesse livro não compreende o meu pensamento global.
Esse é meu pensamento sobre a matéria, o qual, como sempre, sujeito amorosamente, com alegria, à correção que o Magistério da Igreja julgue conveniente introduzir.
Deus opera dentro da chamada religião natural Há um pensador francês que chama essa visão de “lumière” [luz]. É mesmo uma “lumière”?
À primeira vista seríamos levados a negar, porque pensamos em “lumen” [luz] da graça, e a graça é sobrenatural.
Ora, o que acabo de expor se desenvolve na linha natural. Deus, quando faz ver o universo ao homem e, através do universo, faz ver que Ele existe e como Ele é, opera dentro da temática chamada religião natural. É a religião que não vem da Revelação, mas da razão humana. Tudo quanto expus até aqui vem da razão humana. Qual é o papel da fé e, portanto, também, qual é o papel da graça nesse conjunto? Qual é o papel da Igreja? O que é “lumière” aí?
Tratemos de esclarecer essas questões. Penso que a palavra luz poderia se aplicar aqui em dois sentidos. Um é o sentido da luz natural, a “lumen rationis”, pela qual o homem crê em Deus, crê na unidade de Deus, crê numa porção de dados da religião que lhe vêm da razão. Para dar adesão a esses dados naturais o homem não precisa da graça, embora esta possa ajudá-loe esclarecê-lo.
Para crer naquilo que é revelado é preciso a fé. Aí se faz necessário o dom específico da graça, um recurso sobrenatural pelo qual o homem se torna capaz de entender e de dar adesão ao que é revelado.
Devemos ainda levar em consideração que, quando Deus nos concede graças, estas se fazem conhecer por uma espécie de contato. Por uma sensibilidade proveniente da ação do sobrenatural em nós, sentimos algo que nos toca e nos eleva rumo às coisas divinas.
A experiência mística é uma das razões mais profundas da fé
Por exemplo, temos uma série de percepções do divino em nós, em várias ocasiões de nossa vida. Quando, às vezes, comungamos, temos uma certa percepção; às vezes quando entramos numa igreja onde está o Santíssimo, percebemos que Ele está lá. Ou quando visitamos, por exemplo, a Sainte Chapelle.
Não sou um homem emocional, até tendo ao contrário. Contudo, quando pela primeira vez entrei na Sainte Chapelle, já no pavimento térreo, achei-o, desse ponto de vista, tão sensibilizante de coisas sobrenaturais que tive uma verdadeira exclamação: “Ah!” Quer dizer: “Que beleza!” Por essa minha reação pode-se imaginar o que senti quando cheguei ao andar de cima, muito mais esplendoroso.
A expressão “que beleza!” exprime a percepção de um “pulchrum” [belo] sacral e sobrenatural. Não é uma consideração puramente estética como se pode ter, por exemplo, diante do Parthenon de Atenas, mas é algo que me toca favoravelmente, admiravelmente, ao ver, por exemplo, os vitrais da Sainte Chapelle.
Claro que a sensação do belo que está mesclada com isso pode ser estudada do ponto de vista natural e se podem encontrar aí as regras da estética.
Mas por cima há outra coisa que toca, e que a meu ver é uma das razões mais profundas da fé que tem o católico: é uma experiência mística, que é essa sensação do sobrenatural, e que completa — na linha de conhecer a criação feita por Deus — a visão dessa criação, porque o ápice da criação é a graça. Isso faz com que o católico, nessa matéria, tenha um “acabamento” cultural — no sentido da palavra cultural que expus atrás, de conhecimento do universo — em que ele percebe a presença da graça em coisas que às vezes nem são diretamente religiosas, mas nas quais ele percebe a raiz religiosa. E sentindo a raiz religiosa, ele com a fé do carvoeiro brada: “Eu creio!”
Elogio à Torre de Belém é feito com emoção religiosa
Tantas vezes tenho elogiado a Torre de Belém, em Portugal. De cada vez faço-o com uma emoção religiosa. Não é como quem elogiasse, por exemplo, o Taj-Mahal, que é uma construção pagã. Olhando a Torre de Belém, a graça me toca a respeito de um monumento no qual se refletiu e se reflete a graça que levou os primeiros navegadores, primeiros missionários e primeiros conquistadores a empreenderem as epopeias deles, continuação da graça da reconquista do território português contra os mouros.
Tudo isso forma um sulco histórico só. Quando fui à França da última vez, fiquei longamente olhando o castelo de Chambord. Eu seria capaz de ficar ali indefinidamente fitando esse castelo, mesmo durante a noite. Não, porém, por causa de sua relação com Francisco I, mas por algo da França de Clóvis, da França de São Remígio, da França de Santa Clotilde, enfim, de todas as Franças, da França da irmã de Luís XVI, que foi beatificada — é isso que me toca vendo coisas assim e que formam, portanto, o ápice da cultura.
Bem entendido, posso ver isso nas coisas temporais, mas sobretudo na Santa Igreja Católica Apostólica Romana tomada ela como um todo.
O tipo humano, o mais magnífico produto da cultura
E aqui se segue outra “lumière”, uma luz sobrenatural que se soma à luz natural na mesma linha e da qual nasce um dos mais magníficos produtos da cultura: o tipo humano. Cada civilização, cada cultura, cada graça para o estilo de civilização e de cultura que Deus quer para um país, ajuda a formar um tipo humano, e esse tipo humano é a obra-prima da Igreja e da sociedade temporal numa área de civilização.
A destilação de um tipo humano é a obra-prima de todo esse conjunto de causas e efeitos. Quando um povo, no seu conjunto, anda bem na vida espiritual, gera o tipo humano perfeito que Deus, quando criou o homem, queria que em certo momento da História fosse gerado.
Esse tipo humano não é só uma raça, não é só uma nação. É uma forma de perfeição espiritual que é o homem, a vida tomando o seu corpo como símbolo de sua alma e fazendo de seu olhar, de sua voz, de seus gestos, de todo o seu andar símbolos de sua alma. Manifestando uma alma que não é a de um santo que morreu e não ressuscitou, mas a alma de um santo que vive dentro da sua carne e dentro de seus ossos. Mas é um santo.
O tipo humano perfeito se exprime com aquilo que há de mais alto no homem, somado à graça e à cultura que atuam nele.
Esse tipo humano não deve ser considerado somente enquanto nacional, diferente em cada nação, como o chileno, o português e o francês. É mais do que isso. É que, dentro de um mesmo país, ou de uma mesma área de cultura, apresentam-se homens destinados por Deus a exercer funções diversas, e que, sendo portadores e retransmissores desse “lumen”, devem fazê-lo à maneira do seu país e à maneira do trabalho ou da função que exercem no seu país. De tal maneira que um homem que é pai de família, bom, santo, acaba tendo um certo modo de retransmitir esse “lumen” de modo próprio.
Por exemplo, próprio ao pai de família de tal século, de tal região da França, ou até de tal encosta de montanha. São tipos humanos que vão se destilando, aprimorando-se de acordo com as circunstâncias e a função na sociedade temporal, mas pela luz vivificante da natureza e da graça.
Exemplos de tipos humanos
Por exemplo, um professor. Ele seria um homem católico em tudo. É professor porque deve haver professores no mundo, deve haver pessoas que assumam a função de professor e, portanto, ele a assumiu. Não se trata, portanto, de uma vocação divina, para a qual Deus o tenha chamado; mas Deus quis que houvesse professores, e que, por uma distribuição natural, alguns homens fossem professores.
Os que são, são-no por desígnio de Deus. Não é, pois, como a vocação sacerdotal, que é individualíssima. Mas é um chamado de Deus para uma certa categoria de pessoas que se distribuem naturalmente por aquela categoria. Ainda que ensinem apenas mineralogia ou cibernética, os professores têm a missão de ser um tipo humano diante dos alunos, e com certa riqueza de comunicação e de modelagem especial, quando são fiéis à sua própria vida espiritual e ao desígnio de Deus a respeito deles. Há uma função docente global da classe dos professores que é o “lumen” do professor, de maneira tal que a mente do aluno é particularmente tocada por isso.
Isso se dá em toda espécie de profissões. Por exemplo, nos vitrais e nas iluminuras da Idade Média vemos sapateiros, navegantes, calígrafos, com características que vão se superpondo [ao longo da História] e elaborando tipos humanos.
Esses tipos têm densidades diferentes da ação da graça e da natureza, e deve haver um tipo que tem um requinte pelo qual a natureza e a graça nele fazem algo de mais “exquis” [requintado]: esse é o nobre. É propriamente um fruto da Civilização Cristã.
Comparemo-lo, por exemplo, com o marajá indiano. Fazemos deste uma imagem cristianizada, mas que não corresponde à realidade. Ele se traja com uma roupagem linda, mas não é capaz de usá-la com nobreza. Senta-se de modo deseducado. Porta um turbante lindo, no qual terá uma safira, um rubi, uma “aigrette” [penacho] magnífica, mas tem aquele olhar no qual não se notam as doçuras e as graças da civilização.
Tome-se, em contrapartida, um barãozinho das Ardennes, na Bélgica, ou um pequeno “squire”(*) inglês — são algo inteiramente superior. Foram destilados pela Civilização Cristã.
Plinio Corrêa de Oliveira
* – Pequeno fidalgo que mora no campo.

São Joaquim e Sant’Ana são os pais de Nossa Senhora. A construção dos fundos simboliza vagamente o que Giotto imaginava como Templo de Jerusalém, mas é muito mais algo medieval com reminiscências românicas, ou com prenúncios renascentistas, do que qualquer outra coisa. Na primeira fileira, vemos um personagem vestido de cor-de-rosa que conversa com outro; ambos usam hábitos à maneira de batinas, o que era corrente para todo o mundo na Antiguidade. A cor de um desses trajes seria um pouquinho verde-ervilha, misturada com um pouco de dourado. Vejam como a cor-de-rosa é muito delicada. Um desses deve ser sacerdote judaico; e ao lado do estandarte está São Joaquim.
Notem a cor do céu, a luz espalhada é inocente, não tem nada de comum com a poluição da luz nas babéis modernas, nem com a luz do Sol de hoje em dia. É uma luz diáfana, bonita, encantadora, que parece perpetuamente matutina.
São Joaquim achou que tinha faltas. Era geralmente admitido que sobre quem não tivesse filhos pesava o castigo de ser estéril para o Messias. Então, ele vai fazer penitência, num lugar ermo, deserto. Vemo-lo aí numa atitude muito digna, triste, confrangida, de quem está fazendo um exame de consciência inútil, porque ele não consegue encontrar a sua falta.
Mais ainda: o jeito desse cão pastor — que deveria atacar o lobo —, diante desse verdadeiro cordeiro que era São Joaquim, tem simpatia, se sente contente. Observem o salto desse cachorro, o jeito com que deseja ter uma carícia de São Joaquim, que não presta muita atenção nele porque está meditando.
É interessante notar também a ingenuidade do desenho: o quarto de Sant’Ana, um toldozinho de alvenaria, e em cima um terracinho para as noites quentes. Embaixo a criada trabalha. O Arcanjo São Gabriel, que foi quem avisou Nossa Senhora da Encarnação do Verbo, fala a São Joaquim e explica- lhe o que sucederá. O Santo, então, está oferecendo um sacrifício a Deus para agradecer essa grande dádiva, esse grande dom que ele está recebendo. Mas se vê que está com a fisionomia mais animada, mais alegre, e que ele é um sacrificador sério. E se tem a impressão que um bom número da bicharada que está perto dele vai perecer.
Jerusalém era fortificada, como todas as cidades daquele tempo, com ameias um pouquinho à medieval. São Joaquim e Sant’Ana se encontram na Porta de Ouro.
A Menina está toda enrolada. De acordo com o hábito, deve ter sido banhada e depois apresentada a Sant’Ana, mas já com o aro de santidade em torno da cabeça. Porque como Ela foi concebida sem pecado original, e recebeu desde o primeiro instante de seu ser uma inteligência muito superior à de todos nós — de São Tomás de Aquino, de Santo Antônio de Pádua, de quem quiserem —, já tem em grau eminentíssimo a santidade. E Sant’Ana está recebendo Aquela que é o Vaso de Eleição, o Vaso Sagrado de toda espécie de graças, e ela olha como quem diz: “Desta nascerá o Messias esperado pelas gerações.”
São José, modesto, humilde, recolhido e calmo
Encontramos São José à esquerda. Aquele cujo ramo de fato vai florir está colocado de lado, é o último. Ele é modesto, humilde, tem o halo da santidade, mas não quer sobressair. Os outros desejam salientar-se e estão apresentando o ramo seco quase como cheques, pois julgam que vão vencer. São José está recolhido e calmo.
Eu queria chamar a atenção para este ponto particular: eu sou — como já disse, é um modo de ser legítimo como outros — muito sensível a cores. E as harmonias de cores me interessam especialmente. Giotto joga predominantemente com duas espécies de recursos cromáticos: algumas são cores muito clarinhas, delicadas. Vejam o verde bonito do primeiro portador de ramo. Um que deve ser ajudante do sacerdote tem uma túnica lilás e uma espécie de capa ligeiramente esverdeada, mas combinando muito bem. E atrás há outro portador de ramo cujo traje é de uma cor que não sei definir, mas é feita de cores muito claras. São José está vestido com cores um pouco mais escuras, mas ainda são bastante claras. Entre eles há um com uma cor mais escura, ou melhor, bem menos clara. Seria uma composição de cor bordeaux com um pouco de azulado. As cores dos outros trajes quase não se distinguem, porque aparecem pedaços pequenos de roupa.
A cena é tão característica, tão expressiva! Há uma espécie de empenho da parte dos pretendentes a se casarem com Nossa Senhora. Era nobre querer isso. Pode-se desejar alguém melhor do que Maria Santíssima? Entre as hipóteses possíveis, no momento me alegra imaginar que todos os pretendentes rejeitados eram levados pela graça, e que depois se tornaram grandes devotos de Nossa Senhora.