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  • Santa Clotilde, uma admirável flor-de-lis

    Segundo uma poética lenda, as armas do Rei Clóvis eram simbolizadas por figuras de sapos; quando ele e seus francos foram batizados, tais símbolos se transformaram em flores de lis. Bela imagem que poderia resumir a história de Santa Clotilde, cujo exemplo de virtudes fez despontar a aurora da santidade no Reino franco.

     

    A respeito de Santa Clotilde, Pourrat, no livro “Saints de France”, diz o seguinte:

    Santa Clotilde era princesa burgúndia, tendo visto toda a sua família assassinada por seu tio Gondebaud, que poupou somente Clotilde e sua irmã, tendo feito educá-las na religião católica, embora fosse ele ariano. Clóvis, Rei dos francos, tendo ouvido falar da beleza e virtudes da princesa, pediu-a em casamento ao tio. Não a obtendo, dirigiu-se diretamente a Clotilde, enviando-lhe seu anel real como penhor, através de um emissário. Clotilde aceitou.

    Embora se tratando de um pagão, e temendo então magoá-lo, Gondebaud permitiu o noivado. Casando-se com Clóvis, a princesa tudo fez para sua conversão. Nada obteve de início, pois seus filhos morriam logo após o Batismo e Clóvis atribuía o fato ao Sacramento. Clotilde rezava e penitenciava-se, até que raiou o dia da vitória de Tolbiac, quando o Rei franco, vencedor, fez-se batizar com seus soldados por São Remígio. Estava fundado o primeiro reino católico europeu. […]

    Santa Clotilde, sem dúvida, recebeu uma missão especial: ela tudo transformou. Uma lenda comum em Estrasburgo conta que no dia do Batismo dos francos, em Reims, um Anjo trouxe a Clotilde as armas do novo reino: as de Clóvis eram três sapos, que se transformaram em três flores de lis.

    O valor das lendas maravilhosas

    Notamos aqui mais uma manifestação do maravilhoso medieval. As armas do Rei pagão eram três sapos, mas, ao receber ele o Batismo, tornaram-se flores de lis. É a ação da Igreja, tocando o que é natural e decaído e transformando-o.

    Não encontro imagem mais bonita para o “Grand Retour”, que deve ter lugar por ocasião dos acontecimentos previstos em Fátima, do que essa de sapos que se transformam em flores de lis. A Bíblia fala de transformação das pedras em filhos de Abraão, que é uma coisa linda, mas esta é muito poética e bonita.

    Pode-se imaginar um sapo — com aquela pele rugosa, aquele aspecto horrível dos pântanos, aquela suficiência cafajeste, aquela falta de respiração dando ideia de sua avidez — que se transforma e se torna um lírio maravilhoso. Esta é a transformação que as almas, por ocasião do Reino de Maria, devem sofrer.

    Aí está o valor das lendas e do maravilhoso: às vezes, dizem muito mais do que um acontecimento autenticamente histórico. Toda a história de Santa Clotilde pode basear-se nisto: transformação de sapos em flores de lis.

    Alto senso católico

    Ela era de um meio ariano. Católica, casou-se com um rei pagão.

    Os bárbaros que invadiram a Europa nos séculos IV e V eram arianos que tinham ódio ao nome católico. Eles haviam sido pervertidos, na passagem do paganismo para o arianismo, por um bispo ariano, Úlfilas, que percorrera as regiões dos bárbaros. Portanto, a invasão dos bárbaros foi a dos hereges arianos, que já tinham atormentado de todos os modos o Império Romano do Oriente e o Império Romano do Ocidente. Este foi o sentido fundamental dos acontecimentos.

    Com a invasão da Europa, um dos antigos reinos, que decorreu da ocupação realizada na antiga colônia romana da Gália, foi o borguinhão. O Rei dos borguinhões se tornara ariano. Era irmão do antigo monarca católico, o qual ele havia destituído, e se proclamou rei. Tinha uma sobrinha, filha do Rei católico deposto e morto, mantida por ele na corte como uma espécie de “Gata Borralheira”. Tudo leva a crer que existia entre os borguinhões um partido católico, o qual olhava para essa sobrinha com esperança.

    De outro lado havia Clóvis, que era um pagão, mas adotou a causa da Igreja em toda a Gália, mesmo antes de se converter ao Catolicismo. Ele resolveu pedir essa princesa em casamento, e colocar assim de seu lado o partido católico dos borguinhões, como também os católicos de todo o resto da Gália. E assim ele se casou com ela.

    Essa atitude de Santa Clotilde, aceitando um pagão para sair do domínio dos hereges, revela um alto senso católico. Ela se casa com Clóvis e começa a praticar a Religião Católica ao lado dele.

    Clóvis viu Deus em Santa Clotilde

    Eles discutiam, tinham alguma polêmica, e Clóvis perguntou-lhe algo sobre a religião dela? Nunca encontrei notícias a respeito disto, no pouco que tenho lido sobre o assunto. Mas tudo me leva a crer que não, e tenha sido apenas a prática constante da Religião que foi causando impressão no espírito de Clóvis.

    Isso sucedeu até que numa batalha, na qual, se não me engano, ele lutava precisamente contra os borguinhões, sentiu-se perdido. Resolveu então fazer uma promessa a Deus, que ele chamava o “Deus de Clotilde”: se ganhasse, ele se converteria à Religião Católica.

    Recordo-me do caso contado por Dom Chautard, sobre o advogado que esteve em Ars, no século XIX, viu o Santo Cura de Ars e voltou para Paris. Perguntado sobre o que vira, respondeu simplesmente: “Vi Deus num homem”.

    Com certeza, Clóvis tinha visto Deus em Santa Clotilde, e quando fez a promessa de se converter ao “Deus de Clotilde”, via que esse Deus era verdadeiro e vivo.

    Santa Clotilde teve filhos criminosos que se jogaram uns contra os outros, a par de um filho santo, que foi o famoso Saint Cloud. Ela foi de uma raça de sapos transformada numa pura flor-de-lis. Teve junto de si algumas outras flores-de-lis, mas o resto era sapo em via de transformação.

    O sol da santidade começou a brilhar para os francos

    E aí vemos a tragédia de sua vida. Era tão grande o peso do paganismo, dos maus costumes antigos, que se tornava necessária uma virtude heroica para não cair nos pecados do paganismo, ainda que se tivesse sido batizado como católico.

    Houve um fato curioso de uma índia muito piedosa, que o Padre Anchieta encontrou em São Paulo, quando esta não era mais do que o Pátio do Colégio. A índia estava bastante triste e ele perguntou-lhe o que sentia. Ela: “Estou, padre, com saudade de comer o braço de uma criança tapuia…” Ela era batizada, comungava e não comeria o braço da criança, mas tinha vontade de fazê-lo…

    O pessoal que rodeava Santa Clotilde não era antropófago, mas pouco faltava para que o fossem. Eram batizados, mas tinham saudades das coisas bárbaras.

    Ela no meio de tudo isto, era uma flor-de-lis das mais perfeitas e admiráveis, ensinando a virtude, a mansidão e dando também admiráveis exemplos de senso de sua própria dignidade.

    Santa Clotilde é uma espécie de “Chanteclair” daquela época: é a primeira que faz raiar o sol. Nela o sol da santidade começa a brilhar para os francos, trabalha para a conversão do Rei e dá exemplos das virtudes que o reino acabará por praticar. É uma santa admirável, que está na aurora dessa transformação dos sapos em flores-de-lis.

    É muito oportuno que lhe peçamos nos consiga a graça de vermos a hora da outra transformação de sapos em flores-de-lis. E, quando houver o “Grand Retour” e se começar a trabalhar para a construção do mundo futuro, sejamos o que ela foi no mundo dela: os precursores de um admirável progresso. Esse, então, verdadeiro, porque progresso em Nosso Senhor e em Nossa Senhora.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 3/6/1964 e 5/6/1967)

  • Transmissão de um espírito

    Na vida de Santo Eliseu há um aspecto muito alto que é sua sucessão com relação a Santo Elias.

    Elias, no momento de abandonar a Terra, passou a Eliseu um manto, simbolizando com este gesto que lhe transmitia seu espírito.

    Tendo recebido o espírito de Elias, Eliseu ficou em condições de dirigir a incipiente Ordem do Carmo.

    Esta transmissão mostra bem qual é a importância da graça que se chama “um espírito”.

    Ao se falar em espírito jesuítico, carmelitano, beneditino, não se faz referência apenas a realidades meramente doutrinárias, mas são graças que se comunicam de pessoa para pessoa, a fim formar as grandes famílias de almas existentes na Igreja Católica. São graças susceptíveis de uma transmissão, e é essa transmissão que constitui propriamente a família de almas.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/6/1964)

  • Caminho para a devoção eucarística

    O devoto da Santíssima Virgem encontrará  no Coração de Maria o próprio Coração de Jesus, naquilo que este Coração tem de mais amoroso, mais terno e mais compassivo. Ora, onde mais se manifestam as finezas do Coração de Jesus é na Sagrada Eucaristia.

    Assim, a devoção a Nossa Senhora leva natural e espontaneamente à devoção eucarística. E é aí — neste culto à Eucaristia, que só pode ser plenamente fervoroso com o culto mariano, pelo culto mariano e no culto mariano — que os católicos encontrarão o alimento de sua vida espiritual.

     

  • AUXILIADORA DOS CRISTÃOS

    Em 24 de maio, a Igreja comemora a festa de Maria Auxiliadora dos Cristãos. Esta invocação da Santíssima Virgem foi especialmente cara a Dr. Plinio, desde sua infância. A jaculatória “Auxilium Christianorum, ora pro nobis” (Auxílio dos Cristãos, rogai por nós) brotava freqüentemente de seus lábios. Testemunho eloquente disto são os comentários transcritos abaixo, feitos em resposta à pergunta de um jovem ouvinte.

     

    Nossa Senhora Auxiliadora dos Cristãos! Por que o título de Auxiliadora? Nossa Senhora tem  como maior glória o ser auxiliadora? Para Ela não é glória maior ser Mãe de Deus? É claro!

    Para Ela não é gloria maior ser co-Redentora do gênero humano? É claro! Para Ela não é glória maior ter sido concebida sem pecado original? É claro!

    Por que, então, Nossa Senhora Auxiliadora? Por que tanta insistência em torno desta  invocação: Nossa Senhora Auxiliadora?

    Compreende-se, pois Ela, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e nossa Mãe, está  permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que nós precisamos. São Luís Maria   Grignion de Montfort tem uma expressão que parece exagerada, mas que está absolutamente dentro da verdade: se houvesse no mundo uma só mãe reunindo em seu coração todas as  formas e graus de ternura que todas as mães do mundo teriam por um filho único, e essa mãe tivesse um só filho para amar, ela o amaria menos do que Nossa Senhora ama a todos e cada um dos homens.

    De maneira que Ela de tal modo é Mãe de cada um de nós e nos quer tanto a cada um de nós  — por desvalido que seja, por desencaminhado que seja, por espiritualmente trôpego que seja — que quando qualquer homem se volta para Ela, o primeiro movimento d’Ela é um  movimento de amor e de auxílio. Porque Nossa  Senhora nos acompanha antes mesmo de nos voltarmos para Ela. Ela vê nossas necessidades e é por sua intercessão que nós temos a graça de nos voltarmos para Ela. Deus nos dá a graça de nos voltarmos para Ela, nós nos voltamos e a primeira pergunta d’Ela é: “Meu filho, o que queres?”

    Mas nós temos dificuldade em ter isto sempre em vista. Por quê? Porque nós não vemos, e, na  nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não vêem. Nós esquecemos. Não duvidamos, mas esquecemos, nos sentimos tão deslocados que dizemos: “Mas será mesmo? Depois, aconteceu-me isto, aconteceu-me aquilo, aconteceu-me aquilo outro, eu pedi a Ela e não fui atendido: por que vou crer que agora serei socorrido? Mãe de Misericórdia… para mim, às vezes sim, mas às vezes não… Nesta próxima provação, por que confiar que serei socorrido, ó Mãe de Misericórdia?!”

    É nessas horas, mais do que nunca, que devemos dizer: “Auxilium Christianorum, ora pro  nobis!” Nas horas em que nós não compreendemos, não temos noção do que vai acontecer, nós devemos repetir com insistência: “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!”

    Porque para todo caso há uma saída. Nós às vezes não vemos a saída que Nossa Senhora dará  ao caso, mas Ela já está dando uma saída monumental.

    A esse título, portanto, muito especial, nós devemos repetir sempre: “Auxilium Christianorum!” Nossa insuficiência proclama a vitória d’Ela, canta a glória d’Ela. Por isso, esta prece deve estar nos nossos lábios em todos os momentos: “Auxilium Christianorum, ora pro nobis! Auxilium Christianorum, ora pro nobis!”

    Meus caros, rezemos, portanto, “Auxilium Christianorum! Auxilum Christianorum! Auxilium  Christianorum!” em todas as circunstâncias de nossa vida, e nossa vida acabará tal que, na hora de morrer, quando nós estivermos no último alento e ainda dissermos “Auxilium Christianorum”, daí a pouco o Céu se abrirá para nós.

  • O cone do Fuji-Yama

    O aspecto emocionante do Fuji-Yama é que ele faz surgir a ideia de como seria um cone perfeito. Vê-se nesse cone, sobretudo, o sublime. O fato de ele não existir, mas ser imaginário, insinua um cone de uma beleza como que irreal, que vai diretamente para o maravilhoso. A louçania da inocência vem disso: contemplar o “cone do Fuji-Yama” naquilo que nos rodeia.,

     

    Ao contemplar uma fotografia representando o Fuji-Yama, procura-se, quase instintivamente, colocar com a mão a ponta do cone. Mas ninguém faz ali o cone perfeito, que daria toda a beleza à montanha.

    Um sublime com clarões paradisíacos Embora seja uma coisa física, é à maneira de um  conhecimento metafísico, sob a forma de negação – não é este cone, nem aquele, nem aquele outro –, que aparece uma ideia de como seria um cone perfeito. E, a meu ver, o aspecto emocionante do Fuji-Yama é esse.

    A Tenho a impressão de que se vê no “cone do Fuji-Yama”, sobretudo, o sublime. O fato do cone  não existir, mas ser imaginário, insinua um cone de uma beleza como que irreal, que vai diretamente para o maravilhoso. E é claro que, no imaginar o cone maravilhoso, entra por detrás uma nota de sublimidade.

    No “cone do Fuji-Yama” há um sublime com clarões paradisíacos. Cada grau de beleza tem lampejos do grau superior, e o mais tênue dos graus possui um fulgor de sublimidade.

    Talvez nem todo o mundo veja o “cone do Fuji-Yama” das coisas. De onde me parece perceber que a louçania da inocência venha disso: ver o “cone do Fuji-Yama” naquilo que nos rodeia.

    A Civilização Cristã

    É uma alegria ver todas as coisas na sua ordem ideal, achar que foram feitas para essa ordem e perceber que clamam por ela; todo o movimento da natureza no Paraíso seria uma realização do “cone do Fuji-Yama”.

    E há nesta Terra uma civilização, não digo incompleta, mas com lacunas, que tende para a  realização desse “cone do Fuji-Yama” da natureza: é a Civilização Cristã.

    Daí decorre que tudo se apresenta numa ordem magnífica, que seria certo “otimismo” se não fosse o fato de haver pelo meio o inimigo do homem, o demônio e todo o resto.

    A Igreja Católica e a doutrina por ela ensinada facilitam a dar o “cone do Fuji-Yama” de tudo, e  apresentam o universo, toda a natureza, nessa ordem. Não está dito formalmente, mas é isto.

    Daí vem a certeza de que, ou acaba o mundo, ou as coisas têm de caminhar para essa ordem.  Porque há um clamor de todas as coisas para isso, e esse clamor ruge e pede a Deus por vingança quando é contrariado.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 5/9/1974, 5/5/1975 e 10/11/1980)

  • Gravidade e pensamento

    Imaginemos um estado de espírito caracterizado pelo comprazimento que experimenta diante dos bons e grandiosos aspectos da vida, prendam-se estes a pessoas ou a coisas diversas. Ao lado da grandeza e da bondade, agrada-lhe igualmente o que eles apresentam de distinção, de lógica interna, de seriedade, de respeito por si próprios. 

    Dir‑se‑ia, então, que a alma dotada dessa mentalidade seria comparável a uma ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tudo para cima; calma, mas pesando e analisando tudo. Ao mesmo tempo, inflexível, disposta a se recolher, dizendo: “Quanto de bom existe nisso tudo! O que é a bondade? O que é o bem?” A partir dessa inquirição, eleva-se nas ascensões da contemplação de Deus, com naturalidade, sem agitação, trepidação nem excitação.

    A mesma impressão que nos daria uma alma assim, nos é proporcionada por certas catedrais medievais. Por exemplo, tempos atrás tive em mãos um bico-de-pena de autoria do famoso arquiteto Viollet Le Duc, retratando a Catedral de Notre-Dame de Paris, vista de cima para baixo. O desenho exprimia uma profunda reflexão, do teor que acima dissemos. Contentou-me perceber naquele edifício a seriedade de uma igreja toda feita de gravidade, estabilidade, pensamento, grandes considerações das linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos, panorama, e as torres que se levantam para o céu.

    Tão magnificamente para o céu, que nenhum artista se atreveu a completar aquelas torres. Porque só quem as planejou teria envergadura de alma suficiente para terminá-las. E as torres estão ali, ao mesmo tempo tragicamente incompletas, mas fazendo com que cada observador imagine no subconsciente uma torre ideal, segundo o seu próprio feitio. Dir‑se‑ia que elas acabam numa espécie de traçado pontilhado, a ser definido de acordo com o espírito de quem as contempla. De maneira que, se nos dissessem: “Olha, sabe de uma novidade!? Completaram as torres de Notre-Dame!”, ficaríamos surpresos: “Será que o fizeram corretamente?”

    Correto, segundo o quê? Conforme esse pontilhado que aqueles dois magníficos fragmentos de torre nos sugerem, incentivando-nos a voar a partir deles. São torres que convidam para o sonho.

    Esse estado de espírito que descrevi, tão fundamentalmente católico, de uma grande estabilidade contemplativa, satisfeita, disposta a qualquer luta, eu o vejo expresso assim, de maneira superlativa, em Notre-Dame de Paris, a igreja de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro.

    Digo mais. Tenho razões para afirmar que esse estado de espírito foi o ponto de partida da Idade Média, e a Cristandade medieval só foi ela mesma na medida em que cavalgou, rezou, batalhou ou construiu segundo essa mentalidade e disposição de alma. Então, podemos tomar a cavalaria, a armadura do cavaleiro, a coroa de um rei, o “pulchrum” de uma aldeia, a estabilidade de uma corporação, a majestade de um castelo, e tantas outras maravilhas engendradas nessa época, e veremos que são filhas, são derivações daquele superior estado de espírito. v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 30/5/1981)

     

  • Escravidão de amor, desponsório místico e troca de vontades

    Cada pessoa deve procurar levar uma vida de tal modo unida a Nosso Senhor que seus pensamentos, olhares e gestos, por mínimos que sejam, se conformem à mentalidade do Redentor.

     

    Pedem-me para comentar a frase de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Embora nunca tenha lido comentários de exegetas sobre isso, vou dar a impressão que me causa este texto tão conhecido.

    Cada um deve atingir um tipo de santidade para imitar perfeitamente Nosso Senhor

    Nosso Senhor Jesus Cristo tem a respeito de cada um de nós um desígnio enormemente abrangente. Um modo superficial de considerar o texto de São Paulo seria afirmar que “não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” significa realizar os desígnios de Nosso Senhor a meu respeito e, portanto, devo abandonar meu próprio egoísmo e fazer a vontade d’Ele. Nisto está a vida d’Ele em mim.

    Tudo isso é correto, mas é uma concepção muito limitada a respeito dessa vida d’Ele em cada um de nós. A meu ver, chega-se ao fundo do assunto considerando o seguinte:

    O desígnio de Nosso Senhor para cada homem não é apenas que um, por exemplo, seja religioso; outro chegue a uma alta posição num governo e faça um decreto estabelecendo a união entre a Igreja e o Estado, em termos muito convenientes para a Igreja; e que outro funde uma escola, uma Universidade Católica… Sem dúvida, isso tudo faz parte dos desígnios da Providência, mas nunca, absolutamente nunca, os desígnios divinos sobre um homem se cifram exclusivamente naquilo que se poderia chamar a obra da vida dele.

    Deus tem o desígnio de que sejamos inteiramente configurados em nossa alma, de maneira a realizar um tipo de santidade, pela qual, sendo cada qual o que é, imite a Ele perfeitamente, dentro desta via que procede das peculiaridades de cada um. E seja, por assim dizer, uma reedição d’Ele. É isso que Ele quer.

    A personalidade de Deus é imensamente rica. E todos os homens que Ele criou, desde Adão até os últimos que vão existir, constituem uma série dentro da qual cada um deve imitar a personalidade d’Ele num ponto, como se Ele não tivesse sido senão aquilo. Assim todos os homens repetem de algum modo, num grau maior ou menor, Nosso Senhor Jesus Cristo, à maneira de uma coleção. De maneira que, visto o conjunto, dê uma superimagem de Nosso Senhor que apresente no Céu uma noção global d’Ele. De modo que Ele, olhando a humanidade toda glorificada no Céu, Se veja representado. E nessa representação encontre sua glória.

    Esse é um pensamento que tem seu fundamento no fato de Deus ter feito a Criação ao longo de seis dias, e no sétimo descansou. E ao contemplar os seres criados, viu que cada coisa era boa, mas o conjunto era melhor (cf. Gn 1, 31).

    O modo de fazer todas as coisas envolve uma perfeição espiritual

    Assim também a Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Homem-Deus, vai ser dada essa glória de que todos os homens no Céu, no seu conjunto, representarão a Ele, como a Criação representa a Deus. Cada bem-aventurado no Céu O representa bem, mas o conjunto representa melhor, e proporciona uma noção global d’Ele que nenhum homem deu; exceção feita da Santíssima Virgem. Porém Ela também faz parte do conjunto que representa a Ele, embora seja a parte mais esplêndida, mais gloriosa — de longe! — entre as meras criaturas. A tal ponto que sem Nossa Senhora tudo isso não valeria nada; mas com Ela vale inimaginavelmente.

    Então, Ele quer que eu toque toda a minha vida — mas a minha vida abrange meus olhares, meus pensamentos, meus gestos, por mínimos que sejam, e que, no fundo, exprimem algo de minha mentalidade. Ele quer que seja como a mentalidade d’Ele, vista nesse ângulo minúsculo que se chama “a individualidade de Plinio Corrêa de Oliveira”. Mas isso é assim com todos aqueles que andam pela rua, inclusive os que estão se perdendo.

    Por exemplo, eu poderia agora querer um copo d’água. Do ponto de vista moral, é inteiramente indiferente que eu beba ou não a água. Mas se eu bebê-la agora de modo oportuno, temperante, agirei de acordo com Ele; se eu ingerir essa água de um modo inoportuno, intemperante, por uma razão sem fundamento, embora o beber água seja neutro, a ocasião escolhida por mim para ingeri-la envolve uma razão moral.

    O modo de fazer todas as coisas neutras envolve uma perfeição espiritual, com vistas a fazer a vontade d’Ele e ser a cópia d’Ele em tudo, mas aquela cópia que só eu serei, e mais ninguém. Se eu ratear, ninguém mais fará; e se fizer bem feito, estará bem feito por toda a eternidade.

    Isso envolve a nossa vida inteira, em dois sentidos: toma-nos por inteiro, de um lado; e, de outro lado, é por uma vida procedida d’Ele que somos capazes disso. Porque Ele vê que pela nossa mera natureza humana, em consequência do pecado original, somos incapazes de alcançar essa perfeição. Por esta razão recebemos d’Ele a vida da graça, dom criado por Ele, que é uma participação na sua vida divina. Recebemos essa participação e passamos a viver com uma categoria por onde participamos da vida do próprio Deus, o que nos torna capazes de realizar o plano d’Ele a nosso respeito.  

    Portanto, se eu considero minha vida assim e me entrego a isso, posso dizer que já não sou eu que vivo; nesse sentido de que não faço os meus planos, senão os planos de Deus.

    É Ele que vive, mas de um modo singular, porque não sou como uma marionete nas mãos de Deus. Eu entendo, quero e sinto por iniciativa minha, proveniente da graça d’Ele, como Ele queria que eu fizesse. Ou seja, é um penetrar fundo, como mais profundo não se pode penetrar.

    Belezas que dão realidades extraordinárias

    Assim, compreendemos também os segredos da misericórdia de Deus, porque entendemos bem o amor que Ele tem a cada um de nós, para chegarmos a tal ponto que estejamos unidos com Ele. Quer dizer, ao sermos criados Deus teve o plano de que tal perfeição d’Ele, que nunca ninguém teria conhecido — ao menos entre os homens e exceção feita, naturalmente, de Nossa Senhora —, brilhasse em nós; é como se Ele tirasse de dentro de Si mesmo um raio de luz e o desse para nós. E é um dos como que infinitos modos de ser d’Ele. Ou seja, fazendo-nos isso, não poderia deixar de nos amar infinitamente, porque Ele é infinito.

    O amor que o Criador tem a nós é um reflexo do amor que Ele tem a Si próprio. Compreende-se melhor também por que Nosso Senhor morreu por nós: para termos a graça e podermos realizar esse plano.

    Estou apenas coligando dados correntes da Doutrina Católica. Mas esses dados conduzem a um plano suntuoso, fabuloso! E de um gênero de união como não se pode imaginar que exista, nem d’Ele conosco, nem entre nós. Porque como duas quantidades ligadas a uma terceira estão ligadas entre si, vê-se como o nexo existente entre todos os filhos da luz é uma coisa seríssima, gravíssima, dulcíssima.

    Há uma realidade mais bonita ainda, que é a seguinte: De fato, nós constituímos assim um todo chamado Humanidade, que Deus honrou unindo a natureza humana hipostaticamente a Ele. Mas essa Humanidade é apenas uma unidade do universo, porque nós fazemos parte da Criação. E na Criação existem os Anjos; se bem que a união hipostática não se tenha dado neles, os Anjos por sua natureza são muito superiores a nós, são puros espíritos. E os Anjos deveriam realizar um universo assim também. Mas eles não realizaram porque muitos deles apostataram, e se tornaram demônios.

    Os planos se superpõem, de maneira que nessa sociedade dos homens, tomados os que se salvem e entrem para o Céu, eles preenchem o lugar dos anjos decaídos. E nós ao mesmo tempo formamos com os Anjos um todo à parte. É de uma grandeza desconcertante! E isso, mais o Céu empíreo, mais a Criação que vai continuar — Sol, Lua, tudo isso vai continuar — forma então o todo dos todos, no pináculo do qual está Nossa Senhora, que é mera criatura. E acima d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Compreende-se nesta perspectiva a Encarnação, o “Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14); tudo isso forma, por sua vez, belezas que dão realidades extraordinárias, feitas para serem meditadas por cada um de nós.  

    Às vezes nos regalamos, por exemplo, com um dito espirituoso francês. Entretanto muito mais são de regalar as coisas que Deus diz e faz. No Céu nós vamos contemplar isso eternamente.

    E pensar que se põe em risco toda esta maravilha, por um mau olhar na rua… Cai-se morto na hora e vai-se para o Inferno. Quer dizer, o que nós nos expomos a perder, a qualquer momento, é uma coisa inimaginável! Somos uns doidos, uns cretinos, nem sei dizer o que somos, quando nos arriscamos a perder isso!

    Desponsório místico que se realiza na alma de cada um que se entrega a Nosso Senhor

    Há, entretanto, outra realidade a considerar que constitui um universo dentro desse universo.

    Está na intenção de Nosso Senhor que certas perfeições d’Ele sejam especialmente representadas por outras criaturas; e para que essas perfeições brilhem bem, Ele quer uma família de almas. Então, às vezes, é uma nação; outras vezes, uma área de civilização; às vezes uma Ordem religiosa. São famílias de almas chamadas a representar de algum modo uma determinada perfeição ou uma constelação de perfeições d’Ele.

    De todas essas representações, a família religiosa é a que tem mais riqueza de representação dos que as outras, porque a natureza do vínculo criado por ela é muito mais forte do que nas outras.

    Entre os indivíduos de uma mesma pátria, por exemplo, há aquela vinculação natural baseada em tradições e laços históricos. Nesse conjunto natural há também os elementos sobrenaturais, que levam a constituir-se uma grande nação católica a qual pode formar um corpo místico dentro do Corpo Místico.

    A doutrina do Corpo Místico chega a tal ponto que, por exemplo, eu vi certa vez uma referência antiga, da Idade Média, ao “corpo místico da Universidade de Paris”. A Universidade de Paris naquele tempo era uma espécie de crisol de ortodoxia muito especial, que a Santa Sé tomava muito em consideração.

    Assim também uma família religiosa constitui um “corpo místico”, no qual o Fundador deve representar de modo mais excelente as qualidades que o corpo todo tem que espelhar. Mas cada um dos membros daquela família, chamado a espelhar determinada perfeição de Nosso Senhor, reflete essa qualidade enquanto existente no Fundador, e é uma repetição do Fundador, como o conjunto dos fundadores é uma repetição de Nosso Senhor.

    Então, os vínculos de alma entre súdito e Fundador tomam toda a analogia com as relações existentes na sagrada escravidão a Maria, ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort.

    A meu ver, a escravidão de amor não é senão o desponsório espiritual visto em seus efeitos. Porque se Nosso Senhor Jesus Cristo é o Esposo e a Igreja a Esposa, isso significa que a alma fiel deve portar-se face a Ele com a receptividade, o amor, a docilidade da verdadeira Esposa em relação ao verdadeiro Esposo.

    Cada um de nós é um membro dessa Igreja. Portanto, esse desponsório místico se realiza na alma de cada um de nós.

    Então, se alguém resolve fazer-se escravo de Nosso Senhor para ser obediente a tudo quanto os representantes d’Ele nos mandam, isto se dá por causa de um desponsório místico havido anteriormente, e que nós queremos tornar mais efetivo, mais consistente, mais durável, exatamente por meio dessa submissão.

    Creio que a troca de vontades é a própria essência dos desponsórios. Feita a troca de vontades, está realizado o desponsório místico, o qual é um processo que se consuma no momento em que as vontades se uniram completamente. Assim, compreende-se que a escravidão de amor, o desponsório místico e a troca de vontades sejam aspectos de um mesmo processo unitivo; eles vão quase se revezando ou se sucedendo numa mesma realidade total.

    Mas o ponto de partida é o momento em que nos enlevamos por Nosso Senhor Jesus Cristo, por Nossa Senhora, pela Igreja, e nos maravilhamos de tal maneira que aceitamos que Ele nos governe como acabo de expor. É a realização da frase de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. 

     

    Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 9/7/1988)

  • Reino de Maria nos corações

    Numa época tão marcada pela incerteza a respeito do futuro da humanidade, o mês dedicado a Maria nos coloca novamente diante da necessidade do reinado desta misericordiosa Mãe, na Terra. O que falta para que este Reino de Maria seja instaurado?

    Como afirmava Dr. Plinio(1), a resposta a esta crucial indagação encontra-se no coração humano, e dependerá sempre do auxílio de Nossa Senhora.

    A Civilização Cristã é possível ou não?

    O reinado de Nossa Senhora pelo qual, gota a gota, estamos dando a nossa vida, é realizável e vem ao nosso encontro como nós caminhamos ao encontro dele? Existirá alguma vez na Terra isto que, no momento, se nos afigura como uma miragem maravilhosa chamada Reino de Maria? Ou é preciso reconhecer que o mundo é do demônio?

    Primeiramente, consideremos o que se entende por Reino de Maria.

    Ele será o conjunto de homens, de coisas que se conformarão com a Lei de Deus, porque Maria só é Rainha onde Deus é Rei. O Reino de Cristo é, evidentemente, o Reino de Deus; o Reino de Maria é o Reino de Cristo.

    Ora, o Reino de Maria, o Reino de Deus, o que são?

    Essas expressões tão bonitas só têm sentido se as considerarmos como uma era futura, de luz e de glória, na qual, não digo cada homem individualmente, mas a generalidade dos homens viverá em estado de graça, cumprindo a Lei de Deus.

    E, portanto, o Reino de Maria se compõe de dois elementos essenciais. Um interno: se amará a Deus e se cumprirão os Dez Mandamentos; e outro, externo: como consequência, as famílias, as associações, as instituições, as áreas de civilização, tudo isso se organizará de acordo com o pensamento da Santa Igreja.

    Põe-se, então, o problema-chave: a Lei de Deus é admiravelmente bela, os Dez Mandamentos são lindos, mas dificílimos de serem cumpridos duravelmente na sua integridade. Porque são muito grandes a atração do pecado e a preguiça do homem em realizar os esforços necessários para evitar as ocasiões de pecar. Habitualmente, quando uma circunstância concreta tenta alguém, o demônio acrescenta a essa ação natural uma tentação dele.

    Como se pode evitar uma queda? Se ela não for evitável, a Civilização Cristã é uma quimera!

    De fato, se Deus enviar sua graça e os homens quiserem corresponder a ela, não pecarão e permanecerão na amizade d’Ele.

    Trava-se em nós, portanto, uma batalha constante entre o demônio — que exerce sobre nós uma ação preternatural para nos levar ao estado de criatura coberta de pecados — e Deus, que quer nos levar para o Céu, e para isso nos eleva à ordem sobrenatural, nos protege e ajuda.

    Assim, o pêndulo de nossa vontade está continuamente convidado por Deus para subir e pelo demônio para descer.

    A Civilização Cristã fica dependendo, em última análise, da correspondência que o homem dê à graça de Deus.

    Então, a grande luta de nossa vida é, como leões, contra o demônio e contra aqueles que querem perder as pessoas. Devemos, pois, fazer todo o possível para que não pequemos e as outras almas sejam salvas.

    O homem que se preocupe somente com sua alma e não com a salvação das outras, está fora da Lei de Deus, porque o homem deve amar o seu próximo como a si mesmo por amor a Deus. Portanto, ele tem a obrigação de salvar os outros, e não pode ser indiferente a que alguém se perca.

    Se eu pedir, não só para mim, mas para os próximos a mim, para todo o gênero humano que se levantem como um só homem e passem a servir Maria, então terei lutado valentemente pela instauração do Reino de Maria.

    De posse dessas considerações, devemos pedir a Nossa Senhora que faça de nós almas de oração, de fogo, que “incendeiem” o mundo.

    Teremos, assim, a possibilidade — cada um dentro de si mesmo — de proclamar o Reino de Maria, e dizer: “Em mim, ó minha Mãe, Vós sois a Rainha, eu reconheço o vosso direito e procuro atender às vossas ordens. Dai-me luz de inteligência, força de vontade, espírito de renúncia para que as vossas ordens sejam efetivamente obedecidas. Ainda que o mundo inteiro se revolte e Vos negue, eu Vos obedeço”.

    E no mundo, nessa torrente de desordem, de pecado, há um brilhante puro, um brilhante adamantino. Esse brilhante é a alma daqueles que podem afirmar: “Em mim Nossa Senhora manda”. A Santíssima Virgem continua a ter, assim, uns enclaves no mundo: aqueles que, pela consagração, se fazem seus escravos e, reconhecendo todo o poder d’Ela sobre eles, declaram: “Esteja o mundo revoltado como estiver, eu me levanto e começo a Contra-Revolução, para que Ela reine sobre os outros também”.

    É o reinado de Nossa Senhora vista enquanto mandando em mim e fazendo de mim um soldado da Contra-Revolução, que luta para tornar efetiva a realeza de Maria na Terra.

    1) Cf. conferências de 31/5/1975 e 11/5/1994.

  • Páscoa

    Disse São Paulo que, se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa Fé. É no fato sobrenatural da Ressurreição que se funda todo o edifício de nossas crenças. (…)

    Cristo, Senhor Nosso, não foi ressuscitado: ressuscitou. Lázaro, foi ressuscitado. Ele estava morto. Outrem que não ele, isto é, Nosso Senhor, o chamou da morte à vida. Quanto ao Divino Redentor, ninguém O ressuscitou.

    Ele mesmo a Si próprio se ressuscitou. Não precisou que ninguém O chamasse à vida. Retomou-a quando quis.

    Tudo quanto se refere a Nosso Senhor tem sua aplicação analógica à Santa Igreja Católica. Vemos freqüentemente, na História da Igreja, que quando ela parecia irremediavelmente perdida,  e  todos os sintomas de uma próxima catástrofe pareciam minar seu organismo, sobrevieram sempre fatos que a têm sustido viva contra toda a expectativa de seus adversários. Fato curioso, às vezes, não são os amigos da Santa Igreja que vêm em seu socorro: são seus próprios inimigos. Numa época delicadíssima para o Catolicismo, como foi a de Napoleão, não ocorreu o episódio mil e mil vezes curioso de se ter reunido um Conclave para eleição de Pio VII, sob a proteção das tropas russas, todas elas cismáticas e obedecendo a um soberano cismático? Na Rússia, a prática da Religião Católica era tolhida de mil maneiras.

    As tropas desse país asseguravam, entretanto, na Itália, a livre eleição de um Soberano Pontífice, precisamente no momento em que a vacância da Sé de Pedro teria acarretado para a Santa Igreja prejuízos de que, humanamente falando, ela talvez não se pudesse ter soerguido jamais.

    Estes são meios maravilhosos de que a Providência lança mão para demonstrar que Ela tem o supremo governo de todas as coisas. Entretanto, não pensemos que a Igreja deveu sua salvação a Constantino, a Carlos Magno, a D. João d’Áustria, ou às tropas russas. Ainda mesmo quando ela parece inteiramente abandonada, e ainda mesmo quando o concurso dos meios de vitória mais indispensáveis na ordem natural parece faltar-lhe, estejamos certos de que a Santa Igreja não morrerá.

    Como Nosso Senhor, ela se soerguerá com suas próprias forças, que são divinas. E quanto mais inexplicável for, humanamente falando, a aparente ressurreição da Igreja — aparente, acentuamos, porque a morte da Igreja nunca será real, ao contrário da de Nosso Senhor —, tanto mais gloriosa será a vitória. Nestes dias turvos e tristonhos de 1943, confiemos pois. Mas confiemos, não nesta ou naquela potência, não neste ou naquele homem, não nesta ou naquela corrente ideológica, para operar a reintegração de todas as coisas no Reino de Cristo, mas na Providência Divina que obrigará novamente os mares a se abrirem de par em par, moverá montanhas e fará estremecer a terra inteira.

    Se tal for necessário para o cumprimento da divina promessa: “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.

    Esta certeza tranquila no poder da Igreja, tranquila de uma tranqüilidade toda feita de espírito sobrenatural, e não de qualquer indiferença ou indolência, podemos aprendê-la aos pés de Nossa Senhora. Só Ela conservou íntegra a Fé, quando todas as circunstâncias pareciam ter demonstrado o fracasso total de seu Divino Filho. Descido da Cruz o Corpo de Cristo, vertida pela mão dos algozes, não só a última gota de Sangue, mas ainda de água, verificada a morte, não só pelo testemunho dos legionários romanos, como pelo dos próprios fiéis que procederam ao sepultamento, aposta ao túmulo a pedra imensa que lhe devia servir de intransponível fecho, tudo parecia perdido. Mas Maria Santíssima creu e confiou.

    Sua Fé se conservou tão segura, tão serena, tão normal nestes dias de suprema desolação, como em qualquer outra ocasião de sua vida. Ela sabia que Ele haveria de ressuscitar. Nenhuma dúvida, nem ainda a mais leve, maculou seu espírito. É aos pés d’Ela, portanto, que haveremos de implorar e obter essa constância na Fé e no espírito de Fé, que deve ser a suprema ambição de nossa vida espiritual. Medianeira de todas as graças, exemplar de todas as virtudes, Nossa Senhora não nos recusará qualquer dom que neste sentido lhe peçamos.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, nº 559, de 25/4/1943)

  • EXTRAORDINÁRIA MANIFESTAÇÃO DE FÉ

    Em sua infinita sabedoria, a Divina Providência frequentemente se aproveita de certos fenômenos que tocam nossos sentidos corporais para, através deles, exercer determinada ação em nossas almas. Assim, por meio daquilo que atinge sua percepção física, o homem discerne algo de sobrenatural que lhe enriquece o espírito.

    Um exemplo. Estamos passando diante de uma linda catedral gótica, sentimo-nos atraídos pela imponência de suas linhas, e entramos: igreja vazia, silenciosa, recolhida, com seus grandes vitrais batidos de sol, povoando de pedras preciosas o solo do templo. O ambiente e o colorido logo nos prendem o interesse pelas vistas. De repente, alguém toca o órgão, despertando nossa sensibilidade pelo ouvido. Mas, ao mesmo tempo em que a beleza da arquitetura, da luminosidade e do som nos colhe, age também em nós um toque da Graça, pelo qual percebemos uma misteriosa analogia daquelas maravilhas sensíveis com certas riquezas sobrenaturais, com valores da Fé, com virtudes e princípios católicos.

    Mais: aquela grandiosidade de formas, aquela envolvente musica de órgão, aquela radiosa policromia dos vitrais, são símbolos de determinadas perfeições do Criador  e, por isso, tornam-se veículos para o homem conhecer algo do próprio Deus.

    É o que acontece quando se contempla a Catedral de Bourges, tida como uma das mais bonitas da França.

    Em sua ampla e esplendorosa fachada se sucedem portas e arcarias góticas, incrustadas de esculturas incontáveis. No centro, a grande rosácea, ponto de convergência de toda a decoração. O pórtico principal, formado por várias camadas de ogivas, prolonga-se sob um esguio e anguloso telhado, guarnecido por vigorosas colunas. À direita e à esquerda da entrada maior se abrem mais quatro, menores, também precedidas por fileiras de ogivas, recobertas de pequenas imagens talhadas em pedras.

    Cada um dos pórticos se enfeita com uma rosácea e uma imagem mais expressiva. Na principal está a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo vitorioso, triunfante, deixando passar os fiéis pelas grossas e lavoradas portas de madeira. As entradas laterais obedecem à mesma estrutura, embora menos ricas, fazendo o papel de damas de honra que acompanham a rainha, completando-lhe a beleza arquitetônica e simétrica. O mesmo papel de acólito desempenham as colunas secundárias que separam as entradas menores da principal, assim como as ornamentações daquelas servem de respeitoso e enlevado “pendant” para as desta.

    De todo esse conjunto sobressai uma expressão harmoniosa do espírito Hierárquico predominante na época histórica em que foi construído. Tudo nele é ordem, é classe, é categoria: é o espírito da Idade Média.

    Agora, se tomarmos em consideração que todos os adornos da Catedral – e são inúmeros! – foram esculpidos em pedra, e que muitas dessas esculturas são genuínas obras de arte, facilmente percebemos que seus realizadores não se preocupavam com o tempo, nem com o trabalho e a mão de obra necessários para chegar a a essa maravilha da arquitetura cristã. Não se incomodavam com prazos, não tinham frenesis de terminar logo. Nada na Catedral de Bourges parece ter sido feito “a galope” ou “a toque de caixa”. Naquele tempo, não se marcavam datas para concluir edificações como essas. Pelo contrário, sabia-se que talvez várias gerações passariam, até que os homens pudessem admirar em todo o seu esplendor mais um grandioso templo católico.

    Para se ter um pouco ideia do trabalho que uma construção desse porte exigia, basta reparar na espessura das paredes, na quantidade imensurável de pedras utilizadas, na profusão de imagens e floreados góticos, de colunetas e arcarias: é quase uma orgia de labor e dedicação. É um esbanjamento de arte. Na verdade, uma extraordinária manifestação de fé.

    Chama particularmente a atenção as sequencias de ogivas formando arcadas que resultam numa composição de força e leveza, arrematadas por agulhas e florões de pedra que lhes conferem especial nota de elegância, todas apontando para o firmamento, como a dizerem aos homens: “Confiem, pois no Céu tudo se resolverá!”

                                                         . . .

    O edifício é imenso, porque as catedrais eram feitas para conter a população inteira da cidade, naquela época áurea da Civilização Cristã em que todos eram católicos. Assim, tornava-se possível que a maioria dos fiéis assistisse às missas e participasse das cerimônias litúrgicas dentro do recinto sagrado, ao abrigo das vicissitudes climáticas, nevascas, fortes calores, etc. A igreja era a própria casa do povo, porque era o palácio de Deus, onde havia lugar para ricos e pobres, reis e senhores feudais, autoridades eclesiásticas e representantes civis, para nobres e plebeus. Dentro, formavam uma só família cristã, sob o manto da Santa Madre Igreja e a celeste proteção de Maria Santíssima.

    Todos podiam se beneficiar da amplitude daqueles espaços interiores, das sólidas e imponentes colunas que se lançam para o alto abrindo-se e se encontrando em ogivas góticas, das grossas paredes de pedra e – mais que tudo – da maravilhosa luminosidade multicolorida, proporcionada por seus deslumbrantes vitrais. Verdadeiras rendas de vidros policromados, fundindo-se numa mescla de cores capaz de encantar ao mais insensível dos homens.

    Fixando-se neles a atenção, é-nos permitido discernir uma série de figurinhas que se movem, que tomam atitudes, que falam e gesticulam: em geral são representações de episódios do Antigo e do Novo Testamentos, cenas históricas da Cristandade, batalhas memoráveis, ou acontecimentos decisivos para a humanidade, como a Ressurreição dos mortos e o Juízo Final.

    Nessa feeria de cores predomina o azul, profundo, lindíssimo, lembrando o anil de certas asas de borboletas que embelezam nossos bosques tropicais. Talvez não fosse exagerado afirmar que o azul de Bourges é o azul da França, posto em vitrais que não só entusiasmam, como encerram lições de História Sagrada: os fiéis que não sabiam ler, acabavam conhecendo a Bíblia através daquelas luminosas e coloridas páginas de vidro…

                                  …

    Vale apontar, ainda, a beleza dos chamados botaréus, os contrafortes que arrimam as paredes externas da igreja. Parece que os medievais não possuíam pleno domínio dos cálculos necessários para garantir a estabilidade  de gigantescos edifícios como a Catedral de Bourges. Para evitar que ruíssem, erguiam do lado de fora uma série de arcos-botantes, colocados de encontro ao corpo da igreja.

    Mas essa função prática se oculta sob formas tão bonitas, tão elegantes, tão leves que, se alguém pensasse em tirar essas escoras, os artistas da França e do mundo inteiro protestariam. Compreende-se: quando se tem uma grande alma, até o não conhecimento leva ao belo…

    Eis a Catedral de Bourges, o fruto de almas cristianizadas e estuantes de fé, que acabaram dando origem a esse magnifico estilo gótico, por meio do qual nos aproximamos da grandiosidade e da força, da harmonia e leveza infinitas de Deus Nosso Senhor.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira