Categoria: Santos do dia

  • Intercessores para obter o Reino de Maria em nós

    Devemos considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora que transformou suavemente essas crianças pelo simples fato de lhes aparecer reiteradas vezes em Fátima. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. Com uma delas, inclusive, a Santíssima Virgem disse estar aborrecida. Era Francisco, que não A viu por causa disso. Portanto, ele pode ser considerado um convertido.

    Temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria, ou seja, uma dessas ações profundas da graça na alma, que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela cresce em amor de Deus, em vontade de se dedicar, em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

    Se a obra de Nossa Senhora em Fátima foi assim, especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu, Jacinta e Francisco, podemos nos perguntar se isso não tem um valor simbólico e se não indica qual será a ação d’Ela sobre toda a humanidade, quando Ela cumprir as promessas que fez na Cova da Iria.

    Seria, portanto, um começo do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora, e que, por seus sacrifícios e preces na Terra e por suas orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

    Assim sendo, Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e se obter de Maria Santíssima que comece o seu Reino em nós, desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

    Peçamos que eles velem especialmente sobre aqueles que têm a missão de pregar e viver a mensagem de Fátima.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

    Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

  • Apostolado e sacrifício, ações inseparáveis

    Por que razão Nossa Senhora quis a morte precoce de Jacinta e Francisco, videntes de  Fátima?

    Em geral, quando se trata da salvação dos homens, é necessário haver vítimas que se associem à intervenção de Deus com o sacrifício de suas vidas.

    Isto é especialmente frisante no que diz respeito às aparições de Fátima: trata-se de uma intervenção direta da Santíssima Virgem — atestada por milagres estupendos como, por exemplo, a rotação do Sol — com a transmissão de uma das mais importantes mensagens de Nossa Senhora aos homens ao longo de toda a História.

    Pois bem, nesta ocasião Maria Santíssima quis a imolação de duas almas, as quais se ofereceram na intenção do pleno cumprimento dos planos da Providência.

    Este oferecimento nos atesta como o sofrimento é insubstituível e como ele abre, verdadeiramente, os caminhos para a Igreja.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

  • O Pintor do Sobrenatural

    Ao longo de sua História, a Igreja tem engendrado inúmeros talentos artísticos, com estilos e realizações tão diversos quanto belos e enriquecedores para a piedade cristã. Nessa constelação de talentos, porém, uma estrela sobressai pelo seu brilho mais intenso e atraente: o bem-aventurado Fra Angélico, com toda a justiça considerado o pintor católico por excelência.

    Segundo se conta, Nossa Senhora lhe aparecia no momento de retratá-La, donde o caráter celeste das pinturas nas quais Ela está presente. São  obras de um frescor sacral incomparável; nelas os personagens de certo modo transcendem as fraquezas da nossa natureza decaída e — não por  defeito do artista, mas pela elevação  de seu estro — se nos afiguram quase sem a marca do pecado original.

    Rei da arte pictórica, ele é também o mestre do feérico, conferindo esplendor inexcedível aos mínimos detalhes de seus quadros, a ponto de nos deixar desnorteados de encanto e admiração. De acordo com os estudiosos de seus métodos, ele mesmo fabricava suas magníficas tintas, muitas vezes triturando pedras semi-preciosas, cujo pó, misturado a outros elementos, forneciam-lhe as melhores cores de sua extraordinária palheta. Se ele sabia utilizar, assim, uma safira, um topázio dourado ou um rubi, com efeitos tão prodigiosos, que matizes não seria capaz de criar se pudesse fazê-lo com matérias-primas do Paraíso?!

    E como seria no Paraíso um quadro de Fra Angélico? É algo de simplesmente inimaginável. Embora já vivesse na Renascença, pelo seu espírito foi um artista caracteristicamente medieval. Seus afrescos e retábulos são um reflexo fiel das almas que fizeram da Idade Média a época áurea da Cristandade. Retratam homens para os quais esta vida terrena é antecâmara da celestial. Ele  reproduz em suas pinturas pessoas imbuídas de uma luz, claridade e leveza inexistentes no cotidiano real, expressão de uma ordem superior e transcendente.

    Numa palavra, o sobrenatural está representado em todas as suas obras. Inspirado sem dúvida pela graça divina, ele logrou pintar seus santos, “Madonnas” e Cristos irradiantes de um certo brilho que parece desprender-se da própria carnatura dos personagens. Essa luminosidade está presente, de modo muito particular, nas virgens perpetuadas em maravilhosas composições por seu magistral pincel.

    A virtude da pureza, quando bem guardada, proporciona as condições excelentes para o triunfo do espírito sobre a matéria. A castidade perfeita nimba quem a pratica de uma glória especial: a da criatura humana vitoriosa em seu elemento mais nobre, prevalecendo sobre o menos nobre.

    Na pessoa pura se estabelece uma ordem pela qual as apetências desregradas da carne estão dominadas; ela é toda espírito, toda alma, toda transparente de luz.

    Assim Fra Angélico pinta suas virgens reluzentes, como dotadas de um fulgor vindo de dentro para fora e que ilumina todo o seu ser. Porque o espírito é claro, enquanto a matéria é opaca. A intenção do artista é exatamente representar essa irradiação do espírito. É o pintor das virgens.

    E dos anjos. Os célebres anjos de Fra Angélico têm uma expressão tão límpida, tão honesta, que estão prontos para qualquer espécie de vassalagem. Tão fortes e conscientes de si, que estão  prontos para toda espécie de suserania. Tão pacíficos, que são anjos da paz. Tão guerreiros, que são anjos do combate contra o mal. Todos os contrastes extremos e harmônicos se encontram neles, numa síntese magnífica, fruto de uma forma de temperança extraordinária e perfeita.

    Tomem-se, por exemplo, os anjos representados com instrumentos musicais. Todos refletem um movimento de alma para o alto, pronta a voar. Como anjos, não sujeitos à ação da gravidade, enlevados, fazendo ecoar suas melodias e anunciando a quem os contempla uma mensagem simples, clara, singela, cujo significado entretanto vai muito além da sensação deliciosa passada pelo quadro. No fundo, remetem nossos pensamentos para Deus. Diante da trombeta de um deles, vem-nos a pergunta subconsciente: “Que música será esta?”, e nossa atenção se volta para o alto, para o olhar divino fitado pelo anjo, para o qual a sua música parece se dirigir.

    São assim os anjos, são assim os santos e as virgens de Fra Angélico: neles se nota sempre algo de diáfano, representação do sobrenatural, como acima dizíamos. Mas, insistimos, esse diáfano não transpareceria do mesmo modo se os personagens representados não fossem muito temperantes, possuidores de um senso das harmonias prévio a tudo. A virgem é meiga e delicada, mas traz  consigo uma roda de martírio, símbolo de sua fortaleza heroica. O santo é plácido e feliz, mas está aos pés do Crucificado, meditando na crudelíssima Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. O anjo está fazendo algo de grandioso, mas mantém-se sereno e inteiramente entregue à proclamação dele.

    Ora, só alguém com igual temperança, com o mesmo senso das harmonias, dos imponderáveis e do sobrenatural poderia retratar seres assim. Daí podermos vislumbrar como era a maravilhosa alma de Fra Angélico.

  • Catedra de São Pedro – Rocha inabalável

    A festa da Cátedra de São Pedro celebra o Papa como mestre infalível, e o Papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro, revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou.

    Uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés da imagem de São Pedro que se encontra no Vaticano, nos quais a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze.

    E assim, em espírito, oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/2/1964)

  • Beato Angélico

    O Beato Angélico, cuja festa é celebrada no dia 18 de fevereiro, soube transmitir às suas obras certas fulgurações que, na verdade, são manifestações da virtude da sabedoria, pela qual o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, mais do que os bens menores do existir humano.

    Essa harmonia exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus. E quem a ama, ama o simbolizado por ela, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • São Teodoro: um mártir increpador

    Descendente de uma família nobre e rica, o jovem Teodoro cheio de garbo desafia o magistrado, proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império. Foi torturado barbaramente e queimado vivo. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus a punição e, ao mesmo tempo, a conversão do Império Romano.

     

    Proponho que assistamos juntos a um episódio histórico. Não é um filme de televisão, mas a descrição de um fato digno de ser lembrado na História da Igreja, contado circunstanciadamente não por mim; vou apenas ler a narração tirada da obra do Padre Rohrbacher(1).

    O Império Romano decaía devido à corrupção moral

    Trata-se do martírio de São Teodoro. Ele foi denunciado como católico e, convocado por um magistrado qualquer, recusou-se a abjurar a Fé. Foi levado, então, a um lugar de suplício onde ele poderia, a qualquer momento, fazer cessar os seus tormentos desde que se dispusesse a renunciar a Fé. Aguentou esses tormentos crudelíssimos até a morte. É um mártir.

    Uma nota particularmente interessante nesse martírio é que o juiz e ele travam uma verdadeira batalha psicológica, na qual o magistrado procura de todos os modos amolecê-lo para evitar martirizá-lo. São Teodoro resiste, desafiando o juiz cada vez mais. O fato foi notório, conhecido e presenciado por muita gente.

    Nós devemos nos perguntar qual é o efeito disso sobre a opinião pública correspondente ao Império Romano que abrangeu toda a bacia do Mediterrâneo. Os romanos se estendiam não só pelo litoral, mas eram senhores das nações ribeirinhas do Mediterrâneo. Aprofundando-se, portanto, longamente pelo território da África, Ásia, Europa, e constituindo, portanto, uma unidade impressionante.

    Esse Império, pela imensa extensão e pela dificuldade de comunicação naquele tempo, fragmentou-se em dois: o do Oriente e o do Ocidente. Mas entendia-se que formava um só todo moral e até mesmo político, e que os imperadores, sem serem irmãos pelo sangue, o eram pela missão e deveriam governar em mútua colaboração, cada qual a sua parte do Império. Uma unidade, portanto, enorme, majestosa.

    O Império Romano foi monumental e riquíssimo, mas também corruptíssimo. À medida que se desenrolava sua história, seu poder e sua riqueza foram crescendo, porém foi se dissolvendo moralmente e terminou na corrupção moral mais espantosa, acumulando dois aspectos diferentes.

    De um lado, os romanos propriamente ditos, não só os habitantes de Roma, mas da Itália, que constituíam o núcleo do Império. Estes sentiam-se muito seguros e estáveis em função do poder e da riqueza que possuíam, e pelo fato de que os inimigos estavam longe, em fronteiras que dificilmente seriam transpostas por eles; e se as transpusessem seriam contidos com facilidade pelas legiões romanas.

    Além da prosperidade e da segurança por verem o perigo bem longe, contribuía para a dissolução dos costumes o fato de que a religião dos romanos não dava o mínimo fundamento para uma atitude moralizada. Resultado: o Império foi se corrompendo até chegar a toda espécie de imoralidade e deterioração.

    A Religião Católica se desenvolvia

    Ao lado dessa depravação generalizada havia a Religião Católica que, do fundo das catacumbas, nascia e se desenvolvia, apresentando-lhes o oposto.

    Vemos, então, o jovem Teodoro, nascido na Grécia, de uma família nobre e rica, julgado por um juiz daquela região, o qual estava, portanto, sob a influência dessa família. Esse jovem cheio de garbo desafia o magistrado e proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império, com uma força que vai crescendo à medida que o juiz oferece mais.

    Dá-se, então, um debate entre o juiz – que visa despertar no jovem o desejo pela vida cômoda e agradável, sem o conseguir – e São Teodoro, que procura comunicar a Fé Católica proclamando as virtudes cristãs e o nome de Jesus Cristo, levando as verdades da Fé tão alto quanto se pode levar um estandarte; e o juiz recusando também.

    A recusa de ambas as partes resulta em choque, que culmina com a morte do jovem Teodoro. Dir-se-ia que o fato está encerrado. Ora, a história começa aí. No Céu há um mártir rezando, enquanto na Terra os frutos de seu sangue se difundem.

    Tertuliano disse aquela famosa frase: “O sangue dos mártires é semente de cristãos”. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus pela punição e, ao mesmo tempo, pela conversão do Império Romano. E o sangue de São Teodoro passou a clamar.

    Houve uma opinião pública que em parte presenciou, em parte tomou conhecimento desse martírio. Que atitude terão tomado aquelas pessoas diante dos diálogos impressionantes que vamos ler? Imaginem aqueles romanos que faziam festa quase todas as noites, comendo e bebendo durante horas, chegando ao extremo horror de provocar-se náusea, pela ação de escravos que vinham com penas de pato coçar o paladar, para lançar fora o que haviam ingerido e, esvaziando assim o estômago, poderem continuar a beber e a comer.

    Podemos nos perguntar qual o efeito produzido nessa opinião pública pelo diálogo entre São Teodoro e seus algozes.

    São Teodoro proclama a sua Fé e investe contra o inimigo de Cristo

    Passemos à leitura e comentário da referida ficha.

    A perseguição se deu pouco depois de que os Imperadores Galério e Maximino publicaram seus editos, que mandavam continuar as perseguições aos católicos, ordenadas por Diocleciano.

    Diocleciano ordenou uma das piores e mais longas perseguições.

    O jovem soldado, muito longe de dissimular a sua Fé, a trazia como que escrita sobre a fronte.

    Imaginemos, então, um legionário romano com aquela armadura e elmo característicos, e que trazia sobre a fronte como que escrita a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo visto por um folgazão que se embriagou na véspera e se embriagará naquela noite, e que para encher tempo vai assistir ao martírio e olha para aquilo aviltado e com o olhar embaçado pelo álcool.

    Teodoro foi apresentado ao Tribuno da Legião e ao Governador da província, que lhe perguntaram por que ele não adorava os deuses, segundo as ordens dos imperadores.

    Ele respondeu: “Sou soldado de Jesus Cristo, meu Rei. Eu não conheço outros deuses; meu Deus é Jesus Cristo Filho único de Deus”.

    Isso é uma proclamação. Agora vem a increpação. Ele não se limita a proclamar a sua Fé, mas investe contra o outro, dizendo:

    “Os deuses que quereis que eu adore não são deuses, mas demônios! Quem quer que lhes atribua honras divinas está no erro: eis qual é a minha Religião, aquela por cuja Fé estou disposto a sofrer. Se minhas palavras vos chocam, golpeai, rasgai, queimai, cortai a língua; é justo que os meus membros sofram pelo Criador.”

    Esta apóstrofe tem todas as características de desafio e é metódica. Ele proclama a sua Fé, depois diz que a fé dos outros não vale nada, e desafia: “Agora, querendo, me martirizem. Eu estou disposto!” Eis o desafio total lançado por um legionário romano!

    Podemos imaginar a repercussão de uma atitude como essa em pessoas incapazes de compreender como é que alguém, podendo dizer que adora aos ídolos – não precisava adorar de verdade, bastaria dizer que adora –, se expõe a tormentos dos quais elas têm horror e se prive de divertimentos, quando essa privação já lhes parece um tormento.

    O Imperador é um fragilíssimo príncipe, no Céu há um Rei eterno e imutável

    Os juízes, embaraçados com uma resposta tão ousada, deliberavam sobre o que eles deveriam fazer, quando um oficial, querendo caçoar do Santo que tinha dito ser fiel ao Filho de Deus, se pôs a lhe dizer:

    – Então, Teodoro, teu Deus tem um filho? Ele é sujeito às paixões como os homens?

    Respondeu Teodoro:

    – Não, meu Deus não está sujeito a paixões. Todavia, Ele tem um Filho, mas um Filho nascido da maneira digna de Deus e bem superior a vossas ideias baixas e carnais, pois esse Filho é a palavra de verdade, pela qual Ele fez todas as coisas.

    O tribuno lhe perguntou:

    – Podemos nós conhecer esse Filho de Deus?

    Ele respondeu:

    – Eu quereria bem que Deus vos tivesse dado graças para isso.

    Mas, disse o oficial:

    – Se nós o tivéssemos conhecido, não poderíamos abandonar nosso Imperador para dar nossa vida ao seu Deus.

    Disse Teodoro:

    – Se vós O conhecêsseis, teríeis em pouco tempo saído de vossas trevas e, em lugar de pôr uma confiança frágil no vosso fragilíssimo príncipe na Terra, vos ateríeis a Deus, que é o Deus vivo, o Rei e Senhor eterno e vós combateríeis comigo em favor d’Ele.

    Essa increpação de que o Imperador é um fragílimo príncipe da Terra e que há um Rei no Céu, eterno e imutável, é uma coisa de deixar aquela gente boquiaberta. Porque era gente que tinha uma vaga ideia de uma post-vida, mas tão vaga, contraditória e cheia de lendas, que praticamente não funcionava. Eles não tinham senão uma ideia ainda mais vaga, de vez em quando lampejos, de um julgamento segundo leis que ninguém sabia como eram.

    Agora, vem um que afirma, mas trazendo na fronte uma espécie de prova da verdade da Fé que ele proclamava; pode-se imaginar o impacto no juiz, no tribuno e na opinião pública.

    Exortava os católicos que eram conduzidos ao martírio

    “Deixemo-lo por alguns dias, disse o tribuno, ele mudará e virá por si mesmo, e acabará fazendo aquilo que lhe é mais vantajoso.”

    É a regra dos pagãos, que os caracteriza a cem por cento. Vantagem, vantagem, vantagem, não tem mais nada.

    Deram-lhe, então, um prazo dentro do qual ele deveria sacrificar aos deuses, senão seria martirizado.

    O Santo não se perdeu em vãs deliberações, mas se empregou em rezar e louvar a Deus incessantemente.

    O louvar é um estilo de oração, mas é quase mais bonito do que as outras formas de rezar, no caso. Um homem que marcha para o martírio horrível e que louva a Deus, por Quem ele vai ser martirizado, que louvor bonito! Tem-se a impressão de que um Anjo não cantaria melhor.

    Os gladiadores não eram mártires, mas escravos ou pessoas livres de baixa condição que lutavam uns com os outros para o público ver. Eles, antes de começar o combate, alinhavam-se diante da tribuna do imperador e diziam a frase: “Ave Cæsar, morituri te salutant” – “Ave, César, aqueles que vão morrer te saúdam.” Depois começava o combate.

    São Teodoro dizia isto a Deus: “Ave, ó Deus, aquele que vai morrer Te saúda. Mas esse que vai morrer sabe que em Ti ele vai viver.” É belo!

    Entretanto, os perseguidores procuraram cristãos entre os habitantes para serem conduzidos também à prisão. Teodoro os seguia, exortando a serem firmes e fiéis a Jesus Cristo.

    Quer dizer, o tempo que lhe foi dado para hesitar, ele o empregava rezando ou acompanhando outros ao martírio. Era, naturalmente, gente menos importante que ele, a quem os perseguidores não tinham medo de matar. Ele acompanhava os outros ao martírio, exortando-os: “Sustentem, protestem contra o juiz, sejam firmes até o fim, confessem o nome de Jesus Cristo!”

    Podemos imaginar a raiva dos que lhe tinham dado prazo, ao verem como ele o empregava. O transporte para o lugar do martírio era feito por uma espécie de piquete de soldados que levavam os condenados à vista de toda a cidade. Os pagãos vaiavam os que iam morrer. Do lado de fora do piquete, estava Teodoro, o soldado: “Aguentem, dura pouco, a eternidade vem, Deus merece, Jesus Cristo é nosso Deus!”

    Em todas as ocasiões ele marcava dessa maneira o seu zelo para o serviço de Deus.

    Incendeia um famoso templo pagão

    Agora vem um modo de manifestar o zelo que deixa o Padre Rohrbacher hesitante, mas ele menciona pondo ao lado de São Teodoro uma grande autoridade. Diz o autor:

    Havia um templo no meio da cidade, nas margens do rio chamado Ires. Esse templo era dedicado à deusa Cibeli, que as fábulas chamavam “a mãe dos deuses”. Teodoro, encontrando a ocasião favorável, pôs fogo durante a noite no templo, que foi reduzido a cinzas, com os ídolos que nele existiam.

    Pela discussão que vem depois, vê-se que, entre outras intenções, estava a de mostrar que os ídolos não valem nada, qualquer um ateava fogo neles. Era, portanto, uma prova de que ele tinha razão, mas também um escárnio aos idólatras.

    O que São Gregório de Nissa relata como uma generosidade louvável, se bem que o Concílio particular de Euvira pareça censurar ações desse gênero. Teodoro, apesar disso, não ocultou sua ação; ele se gabava até publicamente, nas rodas, que era ele quem tinha posto fogo. Pelo que foi denunciado e compareceu perante o tribunal do governador com tal segurança que mais parecia juiz do que acusado.

    É extraordinário! Com a Fé resplandecendo na fronte, sendo o juiz de seu juiz, sabendo que ele caminhava para a morte terrível.

    Ele reconheceu o fato que lhe era imputado. O juiz lhe perguntou por que ele tinha queimado a deusa do lugar, em vez de adorá-la. O Santo respondeu que ele tinha acendido uma lenha para pôr à prova a deusa e ver se era combustível ou não. E que o fogo a tinha atacado e queimado, porque toda a força dela tinha consistido apenas em matéria e isso se queima.

    Ora, ele estava dando um argumento para não adorar: “Como é uma deusa, se eu a queimei? O que vale isso?” O juiz fez o que tantas vezes fazem os ímpios, isto é, quando os bons dão um argumento, não contra-argumentam porque não têm o que dizer. Então ficam indignados.

    O juiz se encolerizou e mandou chicoteá-lo e o ameaçou de outros suplícios muito mais rigorosos, se ele não obedecesse às ordens dos imperadores.

    Como ele era de uma família influente, o juiz mandou chicoteá-lo, mas não o condenou à morte. Queria ver se ele apostatava, para não ter encrenca com a família, ou ao menos uma encrenca tão pequena quanto possível.

    O Santo respondeu que os suplícios mais terríveis não o fariam obedecer aos homens contra o que Deus mandava, e que a esperança que ele tinha nos bens do Céu lhe tirava todo o temor dos males que o ameaçavam nesta Terra.

    Um dos lados de seu corpo foi rasgado com unhas de ferro

    O governador, vendo-o insensível a essas ameaças, trata de suborná-lo por promessas magníficas que lhe faziam esperar honras, dignidades e até a qualidade de pontífice de um desses deuses.

    Teodoro escarneceu dessas promessas para voltar às suas ameaças, cujo efeito era muito próximo; ele assegurou ao juiz, fazendo um sinal da Cruz sobre todo seu corpo, que ainda que o juiz o fizesse derreter no fogo, o cortasse em pedaços, ele não cessaria de confessar Jesus Cristo até o último alento.

    O juiz, renunciando então a todos os meios de doçura, fez colocar o Santo sobre um cavalete. E ordenou lhe rasgassem um dos lados com unhas de ferro, o que foi executado com tanta crueldade que os seus ossos ficaram todos postos a descoberto.

    Podemos imaginar a dor lancinante que uma coisa dessas causa!

    Ele nada disse ao juiz, mas cantava: “Eu bendirei Deus em todo o tempo, sempre o seu louvor estará na minha boca”.

    Ele cantava esse versículo de um salmo. “Em todo tempo” quer dizer no tempo bom, mas também no tempo ruim. “Por mais que sofra, eu O louvarei!” Se isso não é grandeza de alma, não sei o que é grandeza de alma!

    Luzes pairavam sobre o Santo

    O juiz, espantado por uma tão rara força no sofrimento, disse-lhe:

    – Tu não tens vergonha, miserável como és, de pôr tua confiança neste homem que chamas Cristo, que houve quem fizesse morrer como um infeliz? Tu não tens vergonha de te dispor inconsideradamente aos tormentos e aos suplícios?

    Respondeu Teodoro:

    – Essa vergonha é para mim e para todos os que invocam o nome de Jesus Cristo uma razão de alegria e de glória.

    Ele então foi exposto à tortura e depois mandado para a prisão onde Deus manifestou as maravilhas de seu poder a propósito de Teodoro. Porque, segundo conta São Gregório de Nissa, escutou-se durante a noite a voz de uma multidão de pessoas e viu-se algo como uma multidão de lâmpadas. O carcereiro, surpreso com esse duplo prodígio entrou no cárcere e não viu outra coisa senão o Santo que descansava placidamente no meio dos prisioneiros.

    É uma coisa admirável! Um homem que sofreu essas torturas conseguir dormir! É inconcebível! Na véspera de outras torturas, tranquilamente.

    As vozes e luzes pairavam sobre ele e se tornaram notórias ao carcereiro.

    O juiz mandou, na manhã seguinte, que ele fosse levado de novo para o submeter a outras torturas. E considerando-o invencível em todos os pontos, pronunciou a sentença de morte e o condenou a ser queimado vivo, o que foi feito imediatamente.

    Fortaleza sobre-humana dos mártires

    Termina, assim, a história de São Teodoro. Se não fosse o fato de haver uma caudal de episódios semelhantes, ele poderia ser chamado “São Teodoro, o grande”. Mas a questão é que o conceito de grande tem dois sentidos: um é perante Deus, e nessa acepção todos os Santos são grandes; outro é diante dos homens. Neste sentido, por mais profundo que seja o conceito de grandeza, chamam-se “grandes” os que são maiores do que os do mesmo gênero. Ora, os mártires gloriosos são tão numerosos que se hesita em dizer que ele é maior do que muitos outros. Entretanto, pudemos ver como ele é grande!

    Consideremos agora a repercussão desses fatos na opinião pública. Nós não temos os documentos diretos, tanto mais quanto as fontes pagãs não tratam do Cristianismo a não ser muito pouco e de passagem. Como então podemos saber qual é a reação da opinião pública? Pela marcha progressiva das conversões. Torturas, conversões; torturas, conversões… Compreende-se que, diante de um mundo dividido, atos como esses despertavam, no fundo das almas, restos de razão natural naufragados dentro da podridão romana. Junto com esses restos vinha a graça de Deus que dava às almas um discernimento, uma apetência de bens sobrenaturais que, de si, a natureza humana não tem, despertando por sua luz, por sua força, mesmo nas almas mais pútridas, ímpetos generosos.

    Na luta de séculos entre os mártires e seus perseguidores vemos duas coisas espantosas. De um lado a fortaleza sobre-humana dos cristãos ao suportar tamanhos tormentos. De outro, a crueldade dos algozes.

    Causa surpresa ver que instrumentos não cirúrgicos, e sim de tortura, manipulados não por mãos de cirurgiões votados ao êxito da cura e a que doa o menos possível, mas empenhados em maltratar, os quais pegam o ferro quente e põem a fundo, regozijando-se quando o paciente geme, e que cortam, recortam e estraçalham… Que pessoas dotadas da nossa natureza tenham aguentado coisas dessas é um milagre patente! O ser humano não tem forças para isso por sua natureza. Terá vigor para ir a um combate, sempre com a esperança de sair ileso, mas caminhar para a tortura dessa maneira o homem não tem força.

    Ora, os mártires aguentam desafiando e morrem na serenidade de suas almas. Como se pode compreender isso sem o milagre? Há, pois, um milagre evidente convidando essa gente a se converter.

    Força de Deus que penetra, embebe e toma conta de tudo

    Outra coisa que também excede a estatura humana é a maldade dos homens que ordenam essas execuções e as praticam. Dir-se-ia que a criatura humana desce abaixo de si mesma quando faz isso. Encontram-se menos raramente homens que realizam isso, mas que multidões inteiras o pratiquem é inimaginável! Ainda mais multidões do maior, mais civilizado, mais culto e mais rico império que havia na Terra. Essas multidões se entregarem ao prazer de ver o tormento dos outros, essa manifestação de sadismo coletivo que dá a impressão de psicose sem o ser, isso é uma coisa também inacreditável, dentro da qual se vê a ação do demônio combatendo contra a ação de Deus. Esse é um choque maior do que os homens empenhados, de lado a lado, que dá toda beleza ao episódio. A pulcritude do episódio vem de um modo relevante, a meu ver, disto: o choque no qual Deus vence e escarnece do demônio.

    Com efeito, ao longo de uma tortura dessas, na opinião pública muitos ficam piores. Entregam-se dessa maneira ao demônio! Alguns ficam melhores. Esses alguns já sabem que, melhorando, vão se expor a uma tortura daquelas, e que o caminho deles é o que estão vendo. Não é como uma conversão de hoje, em que o indivíduo é batizado, o padre felicita, ele vai para sua casa tranquilo; se sua família é católica ainda faz uma festinha para ele. Não é isso, não! Naquela época, o convertido sabia: “Isso vai me levar àqueles padecimentos. Minha conversão está me pondo na fila dos que vão morrer. Está bem, eu entro na fila!” É qualquer coisa de admirável!

    Poder-se-ia objetar que o efeito disso na opinião pública é nulo. Uma opinião pública de gozadores e bandidos só pode ser insensível a isso, e jamais os católicos deixarão de ser uma minoria.

    Sem dúvida, a aparência era essa. Os católicos viviam por debaixo da terra. Quando Constantino deu liberdade à Igreja e fez um edito mandando fechar os templos pagãos, não houve protestos e tudo acabou, porque, a bem dizer, não havia mais pagãos em Roma.

    A ilusão era de que os pagãos tinham a popularidade e todo o poder. De fato, existe uma dinâmica do mal à maneira de um gás venenoso que se dilata e conquista facilmente. Contudo, há uma força de Deus que muitas vezes é subterrânea, não se percebe, mas que penetra, embebe, toma conta de tudo sem que se tenha ideia. Em determinado momento, quando se vai ver, Ele venceu.

    Sejamos como São Teodoro e vamos para a frente com coragem!

    Isso se dá com os que, em nossos dias, lutam pela Contra-Revolução. Constituem uma minoria açoitada por todas as severidades da guerra psicológica revolucionária; acossada com múltiplas formas de tortura do desdém, da ignorância, da perseguição dos seus mais próximos, e dentro da própria Igreja, de tal maneira que um católico contrarrevolucionário poderia dizer: “Alienus factus sum in domus matris meæ” – Tornei-me um estranho na casa de minha mãe (cf. Sl 69, 9). De tal maneira o contrarrevolucionário é insultado, isolado, ejetado de todos os lados. Dir-se-ia: “Minoria sem futuro, condenada eternamente a ser insignificante e para quem não trabalha a vitória”.

    Sejamos nós como “Teodoros” e vamos para a frente com coragem! Quiçá não percebamos, como São Teodoro não notou as conversões que ele mesmo ia determinando; mas uma coisa é verdadeira: o sofrimento dos que padecem por Nossa Senhora é semente de novos cristãos. Eis a lição que São Teodoro nos dá. Rezemos a ele.            v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/8/1981)

    Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

     

    1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 261-266.

     

  • “Gustate et videte…”

    Como a maioria dos monumentos medievais, o Mont-Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E o reflexo daquela inocência católica que pervadia as almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.

    Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a realização de belezas que aspiravam o Céu.

    Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar sobre uma paisagem abençoada, envolver e penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor que depositamos aos seus pés.

    Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôr-de-sol. O entardecer transforma o ar numa espécie de matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente esse maravilhoso panorama”.

    A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o convívio do Senhor… (Sl 33, 8-9)

    Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador, o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o próprio São Miguel —, que  transmite a impressão fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto nos parece pequeno. Muito pequeno.

    Há nele qualquer coisa de ordenativo do espírito, sem nada de cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no claustro interno. Poder-se-ia ponderar se este não será ainda mais medieval que a própria silhueta completa do Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade.

    Ou seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa, enlevada, tranquila, pronta a rugir como o leão ou a cantar como um anjo, conforme o exijam as circunstâncias que encontre diante de si.

    inda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo serena, o oceano reflui, e vê-se  uma mulher com criancinhas atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.

    Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e águas que o cercam…

     

  • Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

    Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

    A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

    Pedra angular

    O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

    Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

    Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

    No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

    O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

    Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

    Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

    Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

    Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

    Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

    Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

    Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

    A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

    Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

    Fuga do bom para o ótimo

    O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

    Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

    De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

    Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

    Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

    Entrevendo a luta que aparece no horizonte

    Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

    Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

    Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

    E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

    Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

    Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

    Ação direta e ação supletiva

    Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

    De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

    Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

    O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

    Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Um sol que não cessava de brilhar

    Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

    Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

    Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

    Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

    Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

    Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

    Ato de humildade

    Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

    Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

    Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

    Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

    À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

    Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

    Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

    Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

    De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

    Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

    O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

    Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

    Aparece o ”arco-íris”

    Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

    Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

    Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

    Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

    Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

    Ardor no conhecimento do verum

    Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

    Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

    É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

    Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

    De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

    O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

    Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

    De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

    Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

    Pulchrum e simbolismo

    Sobre o pulchrum, o que dizer?
    Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

    Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

    O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

    São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

    Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

    O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

    Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

    O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

    Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

    Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

     

    1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
    2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
    3) Gl 2, 20.
    4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
    5) Sl 133, 1.
    6) Do latim: deleitável.

  • A primeira gota de uma torrente de graças

    Ele era um pequeno funcionário público de Lourdes. E também um cético diante das recentes aparições da Santíssima Virgem que, naqueles idos de 1858, vinham comovendo essa cidade dos Pireneus. Contudo, movido pela curiosidade, decidiu comparecer certo dia à gruta de Massabielle, nos arredores de Lourdes, no momento em que a Mãe de Deus entabulava mais um colóquio com a camponesa Bernadette Soubirous.

    A partir de então, a existência do incrédulo personagem mudaria para sempre, conforme ele próprio testemunhou: Após assistir à cena, senti-me como saído de um sonho, e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim e um mundo de pensamentos agitava-se em minha alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu percebera sua presença, e estava convencido de que seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando que eu, o homem das ironias e das presunções, fosse admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu!

    Para Dr. Plinio, a história dessa tocante conversão era eloquente motivo para se crescer em confiança na insondável misericórdia de Maria Santíssima. E comentava: “Esse homem teve noção de que realmente existia a pessoa com quem Santa Bernardette conversava. Portanto, aquela visão não podia ser uma abstração, nem era uma fantasia. A camponesa dialogava com alguém, e o seu modo de agir nessa circunstância possuía todas as características objetivas de uma interlocutora. Donde ser inegável a autenticidade da cena. O fato de ter presenciado este diálogo diretamente, o comoveu e o levou à conversão. Ele não viu Nossa Senhora, porém pelas atitudes de Santa Bernadette soube que a Rainha do Céu ali se encontrava.

    “Analisemos a situação de alma desse homem. Sentia-se, ao mesmo tempo, humilhado e pasmo, pois não podia crer que ele, cético, havia sido tão bem tratado por Nossa Senhora e transformar-se no objeto de um milagre gratuito alcançado por Ela em seu favor. De nenhum modo merecia ter essa espécie de visão indireta da aparição, e menos ainda receber aquela inestimável graça concedida pelas mãos de Maria. E entretanto, pelo simples reverberar da presença d’Ela sobre a figura de Santa Bernadette, a Virgem tocou sua alma e venceu todos os seus orgulhos, fazendo-o pensar: ‘É espantoso! Eu, até há pouco tão ruim, tão pretensioso, tão miserável, o menos indicado a obter tamanha dádiva, contra todas as expectativas a recebo. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, e de forma tal que a porta quase não pode recusar-se a abrir!’

    “A obra maravilhosa que a graça realizou na alma desse homem foi precursora dos esplendores que a mesma graça operaria em milhares de almas que passariam por Lourdes e ali seriam tocadas pelo milagre. E em tantas outras que, embora achando-se distante da gruta de Massabielle, converter-se-iam ao ouvirem as descrições dos milagres. O dom extraordinário concedido àquele cético foi como a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, a partir do dia 11 de fevereiro de 1858, quando Nossa Senhora apareceu pela primeira vez a Santa Bernadette.

    “Desse fato devemos colher um importante fruto. Se tomarmos em consideração que, em favor de um incrédulo, Nossa Senhora alcançou graça tão insigne, dádiva muito maior obterá Ela para aqueles que perseveram na Fé. E, portanto, podemos esperar com inteira confiança e devoção que Ela nos consiga de seu Divino Filho graças superlativas, de modo particular na festa de Nossa Senhora de Lourdes. Razão pela qual me parece assaz conveniente que, nessa data mariana, nos ajoelhemos aos pés de uma imagem d’Ela e Lhe supliquemos, com entranhado fervor, as graças de que mais necessitamos, quer para nossa vida espiritual como para remediar nossas dificuldades temporais.”

    Plinio Corrêa de Oliveira

    Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2007)

  • Lourdes e a mediação universal de Maria

    Em 11 de fevereiro comemora-se a festa de Nossa Senhora de Lourdes, recordando a primeira aparição de Maria à camponesa Bernadete Soubirous. Aberta nas montanhas dos Pireneus, a Gruta de Massabielle tornou-se lugar de predileção do sobrenatural, onde uma impressionante sucessão de milagres tem beneficiado, não apenas os corpos, mas sobretudo as almas. Para Dr. Plinio, tais prodígios, alcançados a rogos da Santíssima Virgem, constituem espetacular confirmação da vontade divina de nos conceder todas as graças pela mediação da onipotência suplicante de Maria.

    Dentre os muitos aspectos da devoção a Nossa Senhora de Lourdes, um há que me parece insuficientemente acentuado, e sobre o qual gostaria de fazer incidir os presentes comentários.

    Rainha e Medianeira

    Para se compreender o Reino de Maria, cumpre ter em mente essa verdade fundamental: por vontade de Deus, Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Porque, para ser autenticamente Rainha, deve Ela conseguir do Rei (isto é, de seu divino Filho) tudo quanto quer e dessa forma governar o mundo.

    Por sua natureza humana, Maria não detém mais poder do que os seus semelhantes. Assim, para reinar sobre o universo inteiro — anjos, santos, homens, todo o mundo material, etc. — Ela precisa possuir a graça de Deus. E como ponto de convergência de todos os favores celestes, Maria Santíssima é Rainha. Vale recordar que a intercessão de Nossa Senhora foi chamada, adequadamente, de onipotência suplicante, pois é por meio da súplica que Ela tudo pode junto ao Todo-Poderoso.

    Portanto, a realeza da Virgem se acha em íntima conexão com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. As dádivas divinas nos são concedidas pelas mãos de Nossa Senhora, e por seu intermédio são apresentados ao Altíssimo os pedidos feitos pelos homens. É geralmente aceita pelos teólogos a sentença segundo a qual, se todos os anjos e santos do Céu rogarem algo a Deus sem a mediação de Nossa Senhora, dificilmente lograrão êxito; enquanto que Ela, pedindo sozinha, tudo alcança. Por onde se compreende como o foco da predileção divina se concentrou em Nossa Senhora e através d’Ela se esparge sobre o conjunto da criação.

    A mediação universal corroborada em Lourdes

    As aparições de Lourdes se inserem numa série de outras célebres manifestações de Maria Santíssima a partir do século XIX, as quais culminariam com as revelações de Fátima, no início do século XX. Poder-se-ia dizer que, na noite cada vez mais profunda na qual a civilização contemporânea se vai deixando soçobrar, tais aparições formam um pontilhado de luzes anunciando a vinda do Reino de Maria. E creio ser de grande interesse analisar, em cada uma dessas visões, a presença das idéias da mediação universal e do reinado de Nossa Senhora.

    Em Lourdes, tais noções se verificam patentes, considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter proporcionado essa estupenda fecundidade de milagres em algum santuário a Ele dedicado. Na própria França, onde se encontra a Gruta de Massabielle, ergue-se a magnífica basílica de Paray-le-Monial, votada ao Sagrado Coração, pois ali o Redentor fez suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque. Ora, Jesus poderia dispor que aqueles prodígios de curas e conversões ocorressem nesse lugar ou em outros santuários erigidos em sua honra.

    Porém, quis o Salvador que a maior fonte de milagres conhecida na história da Igreja e do mundo brotasse num local consagrado a Nossa Senhora. Ou seja, que aquelas curas espetaculares fossem obtidas sob a égide da Santíssima Virgem, mediante súplicas a Ela impetradas.

    Assim agindo, Nosso Senhor parece desejar comprovar a verdade de fé da mediação universal de Maria, dando aos homens claras razões para compreenderem que sua Mãe tudo pode. Pelos rogos da Virgem são debelados os maiores males, as piores doenças, os sofrimentos mais horrorosos. Ela consegue suspender as leis mais inflexíveis da natureza, vence qualquer obstáculo, e logra, por exemplo, que um cego de nascença, sem nervo ótico, adquira visão!

    Maior glória, abaixo do esplendor divino

    Essa é a onipotência suplicante, o poder da Soberana, medianeira de todas as graças.

    Recordo-me, a esse propósito, de uma piedosa canção entoada no meu tempo de moço, a qual dizia:
    Salve, ó Mãe! Salve, ó Virgem Santíssima!
    Do universo portento primor.
    Mais esplêndida glória que a tua,
    Só tem Deus do universo Senhor!

    Com efeito, a conclusão de quanto acima consideramos, é esta: mais esplêndida glória que a de Maria, só possui Deus, Senhor de todo o universo. Nossa Senhora se acha infinitamente abaixo do Criador, mas quão incomensuravelmente acima de todas as outras criaturas!

    Milagres físicos para fazer bem às almas

    Pessoas existem que se impressionam com os milagres de Lourdes, e entretanto pedem à Santíssima Virgem apenas favores materiais, esquecendo-se dos espirituais e mais importantes. Não compreendem que os dons temporais, dos quais necessitamos, devem nos induzir a desejar os que aproveitam à nossa salvação eterna. Aliás, é por essa forma que verdadeiramente Deus atrai as almas para Si, pois todos os dons concedidos por Ele têm o objetivo maior de beneficiar o espírito humano.

    Assim, não se deve pensar, por exemplo, que Nossa Senhora curará um homem capenga(No sentido físico da palavra)(1), movida apenas pelo sentimento de pena para com a sua deficiência. Claro, tem Ela compaixão do aleijado, se compraz em corrigir seu defeito. Porém, mais do que isto, a Virgem se serve de um milagre físico para fazer bem à alma do enfermo e às dos que presenciam ou têm conhecimento do prodígio.

    Tal benefício consiste, sobretudo, em infundir nos corações uma imensa fé na verdade de que Ela é a Medianeira universal de todas as graças.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira

    1) Com freqüência e de modo bondoso, Dr. Plinio empregava a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo. E assim como o capenga de corpo precisa de uma muleta para caminhar, o de alma, por ser inseguro, inconstante, volúvel, necessita sempre de especial apoio para progredir na vida espiritual.