Categoria: Santos do dia

  • Perfeição do espírito da Contra-Revolução

    Encarnação do Verbo é a Festa da escravidão a Nossa Senhora e da Contra-Revolução, na qual se celebra o espírito de obediência, o amor à hierarquia, à ordem, à dependência, a tudo quanto a Revolução odeia.

    O espírito humilde e contrarrevolucionário de Maria Santíssima se manifesta em face deste mistério, pois quando Ela soube que o Verbo Se encarnaria n’Ela, sua reação não foi de Se vangloriar, mas de proferir esta frase humílima: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

    Como se dissesse: “Se Deus quer de Mim essa coisa inimaginável, isto é, que Eu mande n’Ele, por obediência a Ele, n’Ele mandarei. Porque Ele é o Senhor, e em tudo farei a sua vontade”.

    À luz deste mistério, ganha especial realce a atitude da Santíssima Virgem dizendo-Se escrava de Deus no momento em que Ele queria fazer um ato de escravidão em relação a Ela.

    Aí vemos a perfeição do espírito da Contra-Revolução.

    Plinio Corrêa de Oliveira – (Extraído de conferência de 16/3/1971)

    Revista Dr Plinio (Março de 2016)

  • Paixão de Cristo, Senhor nosso: dai-me forças!

    Sexta-feira Santa de 1991. Aos pés do Crucifixo diante do qual sua mãe costumava recordar, nesse dia, a Paixão e Morte do Redentor, Dr. Plinio, reunido com alguns de seus discípulos, medita na indizível misericórdia do Filho de Deus em se imolar pela salvação dos homens, e na necessária reforma de vida com que devemos retribuir esse resgate de valor infinito.

     

    O sacrifício da Vítima Divina no alto do Calvário nos propõe diversos e importantes pontos para nossa reflexão. Tomemos em consideração alguns deles.

    Nosso Senhor Jesus Cristo consumou seu holocausto e acabou de morrer por nós. Como narra o Evangelho, após o brado lancinante de “Eli, Eli, lamma sabactani — meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes” — Ele entregou seu espírito nas mãos do Padre Eterno e, em seguida, tendo inclinado a cabeça, expirou. Tudo estava terminado.

    Pináculo da tristeza, aurora de uma imensa alegria

    Até esse augusto e trágico momento, reinavam no mundo a desolação, o pecado e a miséria. Porém, sobre tudo isso derrama-se agora o preciosíssimo Sangue de Cristo. A Redenção acaba de se operar, o gênero humano é resgatado, e o caminho para o Céu novamente aberto para ele. Assim, o pináculo da tristeza, da tragédia e do horror vizinha a mais radiosa aurora da mais intensa das alegrias.

    Aos pés da Cruz encontra-se Nossa Senhora, cujo Coração Imaculado e Sacratíssimo está rachado de dor. Ao mesmo tempo, Ela preliba todas as alegrias da salvação das almas. Maria tudo compreende, vê e mede, não só a regeneração do mundo nesta vida, mas, sobretudo, o esplendor eterno que todas as almas justas receberão para maior glória de Deus.

    Diante dessa atitude da Santíssima Virgem, peçamos-Lhe que interceda por nós junto ao seu Divino Filho, e nos obtenha um inflamado zelo por nossa própria santificação. Desse modo, saberemos aproveitar tanto sangue vertido e tantas lágrimas, tanta dor e tanta tragédia, para igualmente sabermos participar da glória da Ressurreição de nosso Salvador.

    As almas dos fiéis defuntos à espera da Redenção

    Noutra consideração, pensemos como, há milhares de anos, as almas de Adão e Eva, juntamente com as de todos os seus descendentes justos, que cumpriram a Lei nesta vida, esperavam o momento bendito da Redenção. Aguardavam, naquela misteriosa mansão dos mortos à qual a própria alma de Cristo haveria de descer para libertá-las. Aguardam: espera longa, espera indefinida quase até à aflição, durante a qual a alma se torna cada vez mais sedenta de fazer cessar esse estado provisório em que se encontra, e de entrar na sua condição definitiva de bem-aventurada, repleta de glória e de grandeza!

    Em seus insondáveis desígnios, quis a Providência que essas almas padecessem esse sofrimento da espera. Contudo, podemos imaginar também, após uma tão longa expectativa, a alegria inenarrável e ilimitada quando viram aparecer diante delas a luminosíssima e santíssima alma de Nosso Senhor Jesus Cristo!

    Pensemos nessas almas justas. Antes de tudo, nas de nossos primeiros pais, Adão e Eva, cujas figuras devemos recordar nesse instante, com sumo amor e respeito. Lembremo-nos, no extremo oposto da perspectiva histórica, de São José, esposo castíssimo de Nossa Senhora e pai legal do Verbo Encarnado. Durante muitos anos esteve ele com a Santíssima Virgem e Jesus. Privado, pela morte, desse convívio que tanto o maravilhava e cumulava de contentamento, São José não terá se contido de felicidade, ao perceber ali, junto dele, o Redentor radioso e glorioso, trazendo-lhe a boa nova do término da longa espera e da sua passagem para o Céu.

    Lá já estava, recém-chegada, a alma do bom ladrão, justificado pelos próprios lábios do Salvador: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

    Esperar com paciência nossa salvação

    Pensemos, então, nessa libertação depois da prolongada espera. Comparemos a situação daquelas almas justas com a nossa, peregrinos neste mundo incerto, na esperança de alcançarmos o porto da bem-aventurança eterna. E peçamos a Nossa Senhora que nos auxilie e ampare a cada momento dessa nossa caminhada, a fim de que, salvando-nos, nossa libertação seja igualmente gloriosa — não para nós, mas para a honra d’Ela e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, à maneira da glória dos fâmulos que se associam ao triunfo dos mestres.

    Que a Santíssima Virgem nos alcance a graça de esperarmos com paciência, não de uma espera negligente e indolente, mas sofrida e semeada de santas ansiedades. Espera sem nenhuma revolta; espera de almas que compreendem ter o Divino Senhor seu tempo para tudo, e, por isso, amam as horas de Deus.

    “Sangue de Cristo, inebriai-me”

    Num passo seguinte, consideremos que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo nos redimido e aberto para nós as portas do Céu, é o momento de olharmos para nossas almas pecadoras. Pensemos em todo o sangue vertido por ele para limpar e purificar nossas almas, e para inebriá-las com suas graças. E digamos: “Sanguis Christi, inebria me; acqua lateris Christi, lava me; passio Christi, conforta me”. Sangue de Cristo, inebriai-me; água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo Senhor nosso, dai‑me forças.

    Que Nosso Senhor nos dê, pelos rogos de Maria, a graça de olharmos para nossas almas, com todos os seus defeitos, contorções e misérias, com tudo o que nos desvia do que deveríamos ser, que nos afasta do caminho da santidade para a qual somos todos chamados. Peçamos perdão por nós, por nossos próximos e por nossos irmãos de vocação, a fim de que, encarando cada um seus próprios defeitos, tenhamos coragem e força, alcançadas para nós pelo Sangue de Cristo, para empreender uma séria e honesta reforma de nossas almas.

    Senhor Jesus, Maria Santíssima, Mãe dos pecadores, tende pena de nós. Amém.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da meditação feita em 13/4/90)

  • São Dimas

    São Dimas, o “bom ladrão”, foi escolhido por Nosso Senhor Jesus Cristo para simbolizar a sua infinita misericórdia para com os homens e, de modo especial, os pecadores. Além de padecer tudo o que sofreu por nós, quis o Filho de Deus dar-nos uma suprema prova de como seu perdão é ilimitado: no derradeiro momento de sua vida, pregado na Cruz, Ele perdoou o bom ladrão e lhe concedeu a graça da santificação. Como se nos quisesse afirmar: “Se esperardes numa clemência que desafia completamente o que sois capaz de imaginar, vossa alma será salva!”

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 14/2/1972)

  • Os Impropérios cântico de dor e esperança

    Na liturgia da Sexta-feira Santa, enquanto os fiéis se aproximam para adorar a Cruz do Salvador, ecoa pelo recinto sagrado o cântico dos Impropérios: dolorosas e compassivas admoestações postas nos lábios de Nosso Senhor em relação aos homens que Lhe retribuem com ofensas e pecados, o benefício infinito da Redenção.
    Como assevera Dr. Plinio, essas estrofes nos devem incitar ao arrependimento e à conversão, bem como alimentar em nossa alma uma firme esperança na misericórdia divina.

     

    Um dos mais belos modos de se fazer a meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo consiste em analisar os Impropérios, texto inspirado nos profetas do Antigo Testamento e cantado na liturgia da Sexta-feira Santa.

    Em certo sentido, exprime o que há de mais dilacerante na Paixão do Redentor, tornando patente aos nossos olhos a suprema injustiça perpetrada contra o Filho de Deus. Por outro lado, como Nosso Senhor sofreu devido aos pecados dos homens de todos os tempos, os Impropérios se aplicam a cada um de nós.

    Colher sentimentos de contrição

    Assim, num ato de piedade, devemos imaginar Jesus — e também Nossa Senhora, presente espiritual ou corporalmente nos vários passos da Paixão — na agonia do Horto e, mais tarde, sendo flagelado, oprimido com a cruz às costas, crucificado e morto por nosso amor. Ao rezarmos a Via Sacra, convém considerarmos que Nosso Senhor nos dirige perguntas semelhantes às dos Impropérios, e cada estação nos reserva graças especiais de compunção e arrependimento.

    Desse modo, podemos tomar as diversas estrofes desse texto e aplicá-las à nossa alma, colhendo ditos sentimentos de contrição. Aos pés do Bom Jesus, nosso remorso deve ser repleto de confiança, tranqüilo, suave, e ao mesmo tempo amargo como o de São Pedro. Não agitado, perturbado e horrendo como o de Judas. Será útil um exame de consciência para nos lembrarmos de nossos pecados da vida passada, das graças recebidas e o uso que delas fizemos, pois esses dons celestiais custaram pedaços da carne e gotas do sangue de Nosso Senhor, bem como lágrimas da Santíssima Virgem.

    Cabe a nós, no momento em que recebemos tantas dádivas do alto, nos perguntarmos: “Ó Deus, não haverá um recanto de minha alma que eu poderia entregar e não o fiz? Não devo pedir a Nosso Senhor que me o faça conhecer? Se conheço, preciso rogar-Lhe — pelas suas chagas, pelo seu pranto dulcíssimo, pelos seus gemidos amargos, pelo “consummatum est” da última agonia — que tenha pena de mim e me conceda coragem para entregar tudo a Ele”.

    Portanto, ao meditarmos na Paixão do Salvador, supliquemos graças superabundantes, pois essa é a hora da misericórdia, na qual até o bom ladrão foi perdoado, e de malfeitor que era tornou-se santo. Peçamos e confiemos: em toda Sexta-feira Santa, Nosso Senhor nos reserva dons semelhantes e até maiores aos por Ele concedidos no dia de sua morte.

    Interpelação sem resposta

    Analisemos, agora, os Impropérios 1.
    Povo meu, que te fiz Eu, ou em que te contristei? Responde-me!

    Nosso Senhor é perfeito, não contristou nem fez mal algum a ninguém. Conhecendo o silêncio da pessoa a quem se dirige, Ele diz: “responde-me”. Ou seja, “pelo mutismo de teus lábios, note até que ponto deves te arrepender de teu pecado”.

    Porque Eu te tirei da terra do Egito, preparaste uma cruz para o teu Salvador?

    A migração do povo judaico — que vivia como escravo no Egito — para a Terra Prometida é um símbolo da libertação do estado de pecado original, no qual nascemos, para a ordem da graça obtida pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Simboliza, também, nossas conversões ao longo da vida.

    Quando alguém comete pecado mortal, perde a vida da graça, sua alma fica como que morta. Se ele falecesse neste estado, seria condenado ao inferno. Entretanto, pelo Sacramento da Penitência, Deus se compadece dele e o tira da “terra do Egito”. Ou seja, da “sepultura” do pecado, onde sua alma como que “jazia” morta, restitui-lhe a vida da graça. Porém, se o mesmo indivíduo recai no pecado, caberia a ele a pergunta feita por Nosso Senhor aos hebreus: “Eu tirei tua alma da lepra do pecado mortal, livremente contraído por ti; por causa disto tu agora me odeias?”

    É uma indagação pungente, cujo significado mais profundo é este: “Meu filho, veja o estado de tua alma, converte-te!”

    A única solução: mudar de vida

    Porque Eu te conduzi quarenta anos pelo deserto, te alimentei com o maná e te introduzi na terra esplêndida: preparaste uma cruz para o teu Salvador?

    O maná é um símbolo da Eucaristia, O Redentor pergunta a cada um de nós: “Eu me fiz hóstia no Santíssimo Sacramento para habitar no meio dos homens e ser alimento de suas almas, e tu me persegues? Eu te introduzi numa terra esplêndida (isto é, na Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, a instituição perfeita, a pátria de nossas almas), te concedi a maior honra e felicidade que o homem possa ter no mundo, a de ser filho da Igreja: por causa disso tu me persegues?”

    Nota-se que, ponto por ponto, ao mesmo tempo a recriminação é doce e repassada de uma lógica irretorquível. A possibilidade de uma justificação de nossa parte desaparece completamente.

    A única solução para cada um de nós é mudar de vida, ajoelhar-se diante de Nosso Senhor e dizer: “Pequei, tende piedade de mim! Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, lavai minha alma, extirpai minhas faltas.”

    Que mais devia ter feito por ti, e não fiz?

    Tudo que é para nosso bem, Jesus realizou. Entre outras coisas inapreciáveis, deu-nos como Mãe a própria Mãe d’Ele. Que mais Ele deveria ter feito? Não há resposta…

    Insisto, a única atitude conveniente de nossa parte é o pranto ou a batida do nosso punho no peito. O som dessa batida é o cântico no qual o Redentor pede nossa contrição, num misto de força e doçura que exprime bem a infinita santidade de Jesus.

    Não ser como uvas amargas

    Eu te plantei como vinha escolhida e preciosa: e tu te tornaste excessivamente amarga para Mim; vinagre me deste a beber na minha sede, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.

    Quer dizer, o povo eleito foi colocado na Terra Prometida como uma vinha de grande qualidade a qual, ao invés de produzir uvas doces, deu frutos de excessivo amargor. Quando Jesus teve sede, deram-Lhe vinagre no lugar de água e, pela lança do centurião, transpassaram o flanco de Nosso Senhor. Fato pungente: foi ferido o coração, símbolo do amor, e dele jorraram as últimas gotas de sangue. A crueldade não poderia ter ido além.

    Como nas estrofes anteriores, essas palavras são figurativas e se aplicam às nossas almas. Cada um de nós é uma vinha plantada pelo Divino Salvador no solo precioso da Igreja Católica, mais valioso que dez mil terras prometidas. A Igreja é a habitação de nossa alma, e cada um de nós poderia dizer a si mesmo: “Eu deveria produzir frutos de doçura para Nosso Senhor, amá-Lo, cumprir os Mandamentos, obedecê-Lo em tudo e não praticar ato algum que me afastasse d’Ele. Porém, não foi essa minha vida; cometi ações contrárias a meu Salvador, pequei e me transformei na uva amarga que depõe contra o agricultor cuidadoso. Pior. Quando Nosso Senhor, no auge de seus tormentos, tinha sede e me pedia Lhe desse ao menos água para beber, ou seja, reparação límpida, eu pequei…”

    Ou seja, em todos os momentos, devo procurar consolar Nosso Senhor pregado na cruz. Do contrário, sou tíbio, imperfeito… E se cometi algum pecado mortal, fiz como o centurião romano, ferindo o Coração de Jesus. Preciso, então, bater no peito, pedir perdão. Não é apenas a ofensa grave, mas também o ensabugamento”2″, o ficar estacionado e não progredir na vida espiritual.

    Não haverá aqui um impropério de Nosso Senhor para mim, em razão dos sofrimentos que Lhe causei? É-me necessário, pois, suplicar a Ele tenha pena de mim. E, repleto de esperança, lembrar-me do que nos diz a tradição a respeito de Longinos, o soldado de César cujo golpe de lança perfurou o coração do Redentor. Segundo escreveu alguém, parece que Longinos era catacego e foi milagrosamente curado das vistas quando o precioso Sangue de Cristo jorrou da ferida e respingou sobre a sua face. Converteu-se e tornou-se um santo. Quem sabe se, durante as cerimônias da Sexta-feira Santa, ao serem entoados os Impropérios, sou eu também curado de minha cegueira espiritual? Eis uma inestimável graça que devo pedir.

    Como correspondemos aos favores divinos?

    Por tua causa flagelei o Egito e os seus primogênitos; e tu aos açoites me entregastes.

    Para que o povo hebreu finalmente pudesse sair do Egito, Deus feriu com uma praga todos os primogênitos da maior nação do mundo de então. E, durante sua Paixão, Nosso Senhor foi açoitado… Ora, quando cometo algum pecado, eu flagelo Nosso Senhor. Trata-se, aqui, de uma censura pungente, continuando sempre numa lógica inflexível.

    Eu abri o mar à tua passagem; tu me abriste o lado com uma lança.

    Há benefício mais esplêndido do que abrir o mar para um povo fugitivo passar? Existe forma mais ingrata de retribuir o autor de uma dádiva, que perfurar o seu coração com uma lança?

    Caminhei diante de ti em uma coluna luminosa e tu me levaste ao pretório de Pilatos.

    Deus, através de uma coluna luzente, orientou o povo de Israel pelo deserto. E Nosso Senhor foi conduzido ao pretório para ser julgado por Pôncio Pilatos…

    Esta lamentação de Jesus também se aplica à minha vida. Deus iluminou meus caminhos à maneira de uma coluna de luz, constituindo a alegria de minha existência. E tive a desfaçatez de pecar contra Ele!

    Alimentei-te com maná no deserto: e tu me feriste com bofetadas e açoites.

    O maná era um alimento delicadíssimo, possuía toda espécie de gostos e caía do céu com abundância, para todos se fartarem. Ora, como acima mencionamos, a Sagrada Eucaristia é como um maná: abundante, contém para as almas todos os sabores, a fim de saciá-las. Quando pecamos, retribuímos esse dom divino com bofetadas! Note-se, mais uma vez, a contradição flagrante. Fiz brotar da pedra a água de salvação para te saciar; e tu me deste a beber fel e vinagre.

    Em determinado momento de sua peregrinação pelo deserto, os judeus desfaleciam de sede. Então Moisés bateu com seu cajado numa pedra e desta começou a jorrar água suficiente para dessedentar todo o povo. Quando ofendo Nosso Senhor, pago-Lhe com vinagre e fel os refrigérios que Ele misericordiosamente me concede…

    Por tua causa feri os reis de Canaã; e tu com uma cana feriste a minha cabeça.

    Antes de tudo, vale observar que essa estrofe contém um interessante jogo de palavras: cana e Canaã. Pois bem, Deus feriu de morte os reis de Canaã — ou seja, da Terra Prometida — para esvaziá-la de povos impuros e entregá-la aos hebreus. Jesus, por sua vez, foi coroado de espinhos e golpeado na cabeça pelos esbirros com a vara da ignomínia, aumentando suas dores.

    Da Cruz de Cristo nasce a verdadeira alegria

    Senhor, nós adoramos a vossa Cruz, celebramos e glorificamos a vossa santa Ressurreição porque foi pelo madeiro da cruz que veio a alegria para todo o mundo.

    Percebe-se aqui o belo contraste apontado na liturgia. Esta fala da tristeza, do sofrimento representados pela cruz, e também da esperança, da alegria que ela trouxe para o mundo. E quão autêntica é a alegria católica! Pensemos no júbilo do verdadeiro Natal, não o do comercializado de hoje, e compreenderemos a felicidade que a fé católica nos proporciona. Ora, foi do sofrimento de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora, que nasceu a alegria genuína, fruto da virtude e não do vício.

    A esse propósito, lembro-me das alegrias da Páscoa no meu tempo de moço. As cidades ainda pouco ruidosas nos permitiam ouvir, próximo ao meio-dia de sábado, o bimbalhar dos sinos anunciando a Ressurreição de Cristo. Alguns meninos saíam pelas ruas espancando bonecos que representavam Judas, e por toda a parte se cantava o Aleluia.

    Iniciavam-se, então, as festas: parentes e amigos se cumprimentavam, trocavam ovos de chocolate; algumas famílias faziam piquenique nos parques, para exprimir seu contentamento. As igrejas ficavam repletas, a liturgia se revestia de imensa pompa. Essa alegria, no fundo, originou-se no episódio mais trágico da Paixão, quando Nosso Senhor, ao morrer, disse aquelas palavras lancinantes, as quais podem até parecer de desespero: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).

    Entretanto, são essas as primeiras palavras de um salmo que, ao final, contém manifestações de alegria (cf. Sl 21), porque de fato o abandono não foi real, e de toda aquela tristeza e dor nasceu o grande júbilo da Páscoa.

    Uma vez mais, é a afirmação da alegria da cruz.

    Manifestação da infinita misericórdia divina

    Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça resplandecer sobre nós a luz de sua face e tenha piedade de nós. Senhor, nós adoramos a vossa cruz.

    A beleza dessas frases está em que os Impropérios poderiam nos causar atitude de alma quase de liquidação, de prostração, porém a liturgia nos lembra o contrário. Deus é a fonte de todas as misericórdias. Daí o reiterado pedido: Tenha piedade de nós!

    Nosso Senhor se compadece de nós, mas deseja receber a nossa súplica nesse sentido. O Redentor nos salvará se soubermos recorrer a Ele por meio das lágrimas e preces de Nossa Senhora, Medianeira Universal. Portanto, tenhamos coragem, confiança e ânimo.

    Termina-se essa meditação compungido, mas repleto de esperança e com alegria de alma. Em determinado momento, receberei uma graça tão insigne que serei limpo de meus pecados e defeitos espirituais. Donde a beleza do pedido: “Deus faça resplandecer sobre nós a sua face”, exprimindo o fato de que Deus, ao se alegrar com os homens, volta sua face para eles e tudo se torna fácil, suave, brilhante. Pelo contrário, nas épocas de castigo, o Altíssimo desvia seu rosto e não olha para os homens, como se o sol desaparecesse…

    Nosso Senhor Jesus Cristo volta para nós sua face divina — não mais com aquele aspecto sublime e sob certo ângulo um tanto terrificante do Santo Sudário — com semblante de misericórdia, com bondade e perdão, como fitou São Pedro. E neste momento, em que também o rosto de Nossa Senhora se dirige para nós, a graça nos ilumina, sentimos piedade, devoção, como que ressurgimos e nossa vida espiritual ganha novo impulso.

    Com o auxílio da Virgem, abracemos nossa própria cruz

    Quando dizemos a Deus que adoramos sua cruz, podemos acrescentar uma súplica.

    Peçamos-Lhe amor à nossa própria cruz. Cada um de nós gostaria de ser algo que não é, ter algo que não tem, poder algo que não pode, realizar algo que não realiza. Precisamos, então, fazer uma renúncia e aceitar a realidade concreta. É a cruz que devemos carregar.

    Se possuíssemos uma relíquia do Santo Lenho, a adoraríamos, como nos ensina a liturgia. Imaginemos que alguém nos desse um pedaço de madeira o qual simbolizasse aos olhos de Deus nosso próprio sofrimento. Deveríamos amá-lo, depositá-lo sobre nosso leito, portá-lo à maneira de relíquia, rogando a Nosso Senhor que abençoasse nossos dias e nossas noites.

    Aquilo que Deus pede de nós, evidentemente nos dói mais, exige maior renúncia. Importa querermos fazê-la, pois Ele merece toda nossa dedicação. Contudo, essa atitude de espírito só se alcança por meio da graça. Assim, peçamos a Nosso Senhor que pela santidade da sua Cruz, O imitemos e abracemos a nossa: com lágrimas, com carinho, embora nos custe. E, à força de rezar, cada um poderá dizer: “É isto que eu quero; tomarei esta cruz e a levarei até o alto do meu calvário!”

    Estejamos certos de que Nossa Senhora nos acompanhará, como seguiu Jesus pela Via Crucis, bendizendo nosso holocausto e martírio interior, porque Ela deseja que todos carreguem a própria cruz, a exemplo de seu adorável Filho.

    1) Tradução do Missal Romano de 1967.
    2) Processo pelo qual o indivíduo se torna “sabugo”, ou seja, estagnado na vida interior (cf. “Dr. Plinio” número 79).

  • São Dimas: “Roubaste o Céu!”

    O  que se passou com São Dimas é algo inimaginável! É o auge do perdão porque, embora fosse um pecador péssimo, ele não só foi perdoado, mas confirmado em graça, pois ao dizer-lhe “tu, hoje, estarás comigo no Paraíso”, implicitamente Jesus afirmava: “Tu perseverarás!”

    Assim, de um ladrão crucificado, o Salvador fez o primeiro santo canonizado. Ele, que tinha podido transformar a água em vinho, podia também transformar um ladrão num santo, e o fez. Feliz ladrão que, ao morrer, roubaste o Céu! Os méritos dele não estavam na proporção de alcançar o Céu, mas ele o alcançou porque Deus quis.

    É o símbolo da via misericordiosa das almas que sabem valerem pouca coisa, mas se entregam a Deus Nosso Senhor e são cumuladas pela misericórdia divina.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1971)

  • As três quedas de Nosso Senhor

    Ao discorrer sobre o profundo significado das três quedas de Nosso Senhor na Via Dolorosa, Dr. Plinio estabelece tocante paralelo entre elas e os graus de cansaço do homem na sua vida espiritual e em seu esforço para alcançar o reino dos Céus. A exemplo do Divino Salvador, com o auxílio da graça, devemos sempre recobrar alento, reerguermo-nos e seguir adiante, até atingirmos o almejado objetivo.

    Conforme secular tradição da igreja, a piedosa prática da Via Sacra nos recorda os últimos momentos de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua dolorosíssima Paixão. Entre as meditações, contemplamos suas três quedas no caminho do Calvário, as quais nos fazem refletir acerca do cansaço do Homem-Deus naqueles angustiantes momentos.

    Nós, que sofremos o peso do cansaço quotidiano, que proveito podemos obter ao considerarmos as três quedas de Nosso Senhor Jesus Cristo? E por que foram três? Esse número não é aleatório, fortuito, mas corresponde a altas cogitações a respeito da fadiga, do sofrimento, do simbolismo envolto nesses passos da Paixão, etc., aspectos estes que não se deve ignorar.

    Procurarei tecer alguma resposta, não como a daria um exegeta, mas baseado nas observações da vida feita por um homem de bom senso.

    Duas formas de cansaço

    Podemos distinguir duas formas de cansaço. Um, ilegítimo, procede da falta de amor a Deus e de generosidade. Alguém, desfrutando de perfeita saúde mental e física, viciou-se por exemplo em dormir nove horas durante todas as noites, e acorda pela manhã cansado, sonolento, e assim passa o resto do seu dia: é o cansaço do preguiçoso. Em Nosso Senhor, pela razão óbvia de que é Ele a própria perfeição, tal forma de exaustão não poderia caber.

    Mas, existe também o cansaço do homem ativo e dedicado. Demonstra-nos a experiência que há três graus de resistência humana para se fazer o esforço necessário e, provavelmente, têm eles relação com as três quedas do Divino Redentor.

    Mobilização de energias latentes

    O primeiro grau de cansaço se verifica quando a pessoa, carregando um fardo, sente seu vigor comum exaurido e cai sob o peso que a acabrunha. Porém, ao se deter no caminho, ela não só consegue se recompor um tanto, mas, devido ao admirável império da alma sobre o corpo, opera uma mobilização de todas as energias mais profundas, latentes dentro dela, as quais não se manifestam na vida habitual. Então faz este raciocínio: “Que peso imenso! Não consigo prosseguir; entretanto, é necessário e quero absolutamente levar esse fardo, esse esforço, esse ato de dedicação até o último ponto”. E se pergunta: “Analisando bem, encontrarei razões para um novo alento, um novo impulso, arrancando de dentro de mim insuspeitadas energias, a fim de chegar onde desejo?!”

    Nesse momento, ele recobra ânimo, ergue-se e retoma seus passos, até cair novamente. É o segundo grau de cansaço.

    Ainda algo a imolar

    Agora o homem pensa: “Fiz tudo quanto podia, e eis que me acho uma vez mais vergado sob o peso desta dor. Tirei de mim aquilo que não imaginava. Contudo, não quero parar, mas continuar para frente. Como é santo e nobre o que desejo! Como é digno de ser atingido o objetivo que tenho em vista! Mas, sinto um peso maior que o anterior me esmagando. É o fardo do desalento, da perplexidade. Não tenho mais energias e, por isso, rezo mais do que o fiz nas outras vezes e digo a Nossa Senhora: Minha Mãe, vedes que dei tudo quanto podia. Ou Vós me ajudais nesse instante, mais do que nas etapas anteriores, ou não serei capaz de fazer o que esperais de mim.

    “Entretanto, observando-me melhor, e, por assim dizer, correndo honestamente a mão na sacola onde estão as reservas de minhas forças, encontro ainda algo a imolar.

    Tenho energias por mim mesmo desconhecidas, que constituem uma suprema reserva para eu lutar. Tendo sido atendida minha oração, vejo-me também assistido por forças sobrenaturais capazes de me levar até onde desejo. Assim, levanto-me uma segunda vez e continuo, mais sustentado pelos anjos do que por meus próprios pés.

    Arrasto-me mais do que ando; porém, resolvi prosseguir. Chegarei até o fim, realizarei meus anelos, mesmo que para tal seja preciso pedir a Deus um milagre completo.”

    Confiança contra toda esperança

    Quando o homem cai pela terceira vez, torna-se um molambo. Percebe que no farnel de energias disponíveis nada mais existe. Então ele espera contra toda esperança. Põe-se de pé e dá um passo. O resto é confiança cega, a noite escura, o despojamento total. Nesse momento, brota do seu interior algo que é realmente o último fôlego de sua alma, a mais lúcida visão de seu ideal, o ato mais completo de seu amor, sua entrega inteira. Dá mais alguns passos cambaleantes, é pregado na cruz e se deixa sacrificar.

    Estes são os três graus de cansaço, correspondentes às etapas da dedicação humana. Na primeira, o homem despende as energias que sabe possuir e suplica o auxílio de Nossa Senhora dentro da assistência comum da graça.

    Na segunda, emprega as forças que entrevia, mas não conhecia exatamente. Roga à Santíssima Virgem com maior instância que lhe conceda socorros especiais, pois pela economia normal da graça não conseguirá.

    Na última, entrega uma capacidade de dedicação e de esforço que lhe era inteiramente ignorada. Caminha mais por milagre, pela fé absoluta em meio à escuridão, do que por qualquer outro motivo. E chega até o fim por um extraordinário socorro do Céu. Ou seja, ele está completamente unido ao sobrenatural.

    Abnegação que atrai os outros para o bem

    A alma humana, à medida que se levanta de cada prostração — não de uma queda moral — vai espargindo de si a incomparável beleza da abnegação. Para atrair os outros ao bem, cumpre que o homem seja desprendido, desapegado. Somente assim as pessoas o seguirão. Ele conquistará as almas para Deus, quando chegar no último ponto de seu desprendimento, quando tiver dado tudo quanto podia.

    Embora, absolutamente falando, Nosso Senhor não precisasse se submeter a essa regra geral, quis entretanto nos deixar seu divino exemplo e, após as três quedas, estava pronto para ser mostrado do alto da cruz a todos os homens. O Redentor passara por essa imolação interior, em que tudo Lhe havia sido tirado. Por mais sublime que seja a crucifixão — não há palavras suficientes para exaltá-la — ela é um ato no qual o sacrifício já estava feito. Ele carregou a cruz até onde devia. E no alto do Calvário, com dores ainda maiores, se deixa crucificar. Sofre cada vez mais até o derradeiro momento do “consummatum est” (tudo está consumado), mas aquela imolação de levar sua própria cruz, cessa com a crucifixão. Jesus se deita sobre o madeiro; doravante, é a cruz que O carrega.

    No último alento, a proclamação da vitória

    Como frisamos, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo a própria perfeição, o Homem-Deus, n’Ele as coisas se passam de modo misterioso e não exatamente da maneira que se dá em relação a nós, meras criaturas. Contudo, em sua natureza humana, ter-se-á verificado algo de análogo. Assim, percorreu as três etapas do cansaço e os três graus de forças recobradas. Considerado na sua humanidade santíssima, teve Ele de desenvolver cada vez mais esforço à medida em que maior era o peso da cruz, devido ao depauperamento de seu organismo extenuado pela Paixão.

    E no alto do Calvário, já pregado na cruz, o Salvador deixou registrado para todos os homens, até o fim dos tempos, que Ele sofrera tormentos inimagináveis, insondáveis até para Si próprio, ao bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. À primeira vista, tem-se a impressão de que tais palavras exprimem uma ideia de derrota.

    Porém, logo depois, como verdadeiro Herói no seu último alento, Jesus acrescentou: “Tudo está consumado!”, como se dissesse: “Sofri quanto Eu devia sofrer; minha vontade não se alquebrou porque meu Pai Eterno me ajudou. Venci. A morte está aniquilada: para o homem, redimido do pecado original, abriram-se as portas do Céu. Sou o Rei da glória por todos os séculos!”

    Noutros termos, quando tudo parecia perdido, Jesus proclamou sua vitória.

    Aplicação à nossa vida espiritual

    Ao concluirmos essas reflexões, importa considerarmos que, também nós, em nossa vida espiritual, temos de carregar a cruz, devemos passar por etapas de cansaço e de energias reavivadas. Nosso Senhor deseja que, por amor a Ele, ponhamos os sofrimentos sobre os ombros e tomemos a iniciativa de caminhar de encontro à dor, à renúncia, ao desagradável. Depois de caminharmos por nossas próprias forças, o Redentor nos socorre com o auxílio do alto, nos toma e nos crava na cruz, unindo-nos a Ele estreitamente.

    Que essas considerações nos ajudem a nos dedicarmos cada vez mais ao nosso apostolado. E ao sentirmos o peso da fadiga nos vergar, lembremo-nos das três quedas de Nosso Senhor: supliquemos o amparo de Maria Santíssima e recobremos ânimo. Não há dúvida de que sairemos vitoriosos.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/9/1970)

  • Admirável lição de humildade

    Entre tantas e tão insondáveis belezas que refulgem no Mistério da Encarnação do Verbo, o maravilhoso relacionamento — todo feito de amor e humildade — que Mãe e Filho mantiveram durante os nove meses da gloriosa gestação, tocava de modo particular a alma de Dr. Plinio. Acompanhemos outros expressivos comentários dele a esse propósito.

    No dia 25 de março a Igreja celebra a festa da Anunciação e da Encarnação do Verbo no seio puríssimo de Nossa Senhora. Para se avaliar a extraordinária importância desse fato, convém estabelecermos algumas considerações prévias.

    Em Nazaré, a realização de um anseio milenar

    Há quatro mil anos, ou mais, em todos os homens — e de certo modo em todos os seres — latejava um desejo de que, afinal, nascesse Quem seria o centro de todas as criaturas e em função do qual tudo se ordenaria.

    Devido ao pecado original e aos pecados atuais da humanidade, o mundo se achava imerso em grande desordem, cujos efeitos se faziam sentir não apenas entre os pagãos como também no povo eleito, que fora escolhido para o cumprimento da promessa messiânica. Decadência e afastamento dos preceitos divinos: a terra inteira estava desolada.

    Entretanto, uma virgem pura, concebida sem a mácula original expressamente em vista da missão de gerar o Verbo Encarnado, nascera de Santa Ana e de São Joaquim. Unida em matrimônio com o varão virgem São José, Ela meditava, sabendo que a única solução para o gênero humano era a vinda do Redentor. Maria percorria as páginas das Escrituras, das quais possuía perfeita ciência, considerava as promessas e refletia a respeito do Messias.

    Segundo revelações privadas, Nossa Senhora compunha em sua alma a figura moral e física do Filho de Deus, e quando delineou o último traço nessa obra-prima da sabedoria d’Ela, fruto de sua virtude e amor a Deus, eis que se vê envolta num intensíssimo fulgor: São Gabriel Lhe aparece e diz: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28).

    Ela se perturbou, pois não entendeu o significado dessa saudação. O mensageiro celeste então Lhe explicou que o Verbo eterno se encarnaria em seu claustro virginal. Podemos imaginar o humílimo susto que A tomou! “Como se fará isso, pois não conheço homem?”, indagou a Virgem. E o anjo respondeu: “Serás a Esposa do Espírito Santo, que em Ti engendrará o Filho do Altíssimo”.

    Esse anúncio representava um tal cúmulo de graças e de favores, uma tão superlativa generosidade que nos é difícil calcular como Nossa Senhora se sentiu confundida naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, enlevada e feliz, conhecendo que Deus A escolhera para tão sublime obra. Sua gratidão foi ilimitada, e a alegria de se sentir unida dessa forma a Deus, houve de ser maior que todos os mares e oceanos!

    Donde sua resposta: “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa palavra!” (Lc, 1, 38).

    Maravilhoso mistério

    Realizou-se, então, o estupendo milagre, o maravilhoso mistério dos desponsórios do Espírito Santo com Nossa Senhora e a concepção de Jesus Cristo no seio puríssimo d’Ela, recebendo da Virgem e unicamente da Virgem os elementos para a formação de seu Corpo: “caro Christi caro Mariae” — a carne de Cristo é a carne de Maria.

    E desde o primeiro instante dessa augusta gestação, teve início o indizível relacionamento entre Mãe e Filho, com recíprocos atos de amor e carinho que excedem a qualquer imaginação.

    Belo ao extremo, aliás, é o paralelo que se pode traçar considerando-se, de um lado, o primeiro ato de veneração de Jesus a Maria Santíssima quando Ele se encarnou, e de outro, o último, por ocasião da morte d’Ele no alto do Calvário. De fato, nada nos impede de supor que, antes de exalar o derradeiro suspiro, esse Filho infinitamente amorável voltou os olhos da alma para a Mãe e Lhe dirigiu uma carícia suprema.

    E como terá sido a correspondência de Maria a essa ternura filial? Quanto mais Ela O via sofrer de modo tão trágico e terrível, mais O amava. Não se terá lembrado, então, dos primeiros afagos, da primeira troca de carícias?

    Tais correlações esplendem tantas e tão especiais pulcritudes que só podem nos encantar e entusiasmar!

    União e santidade incomparáveis

    Por mais magníficas que sejam, porém, elas apenas abrem o pórtico para uma série de maravilhas ainda maiores. Ressaltemos, à guisa de exemplo, o fato de que durante nove meses o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo ia se nutrindo dos elementos necessários para crescer até atingir o tamanho normal próprio ao nascimento. Houve, portanto, durante esse período, uma entrega de elementos (se assim se pode dizer) do corpo d’Ela para o d’Ele, e de assimilações do que a natureza humana do Filho recebia da mãe.

    Ora, à medida que essa comunicação de elementos se dava no terreno orgânico, verificava-se uma crescente união de amor entre as duas almas, maior a cada etapa sucessiva da gestação. Donde se supor que, quando o Corpo do Verbo Encarnado estava pronto para nascer, a alma de Nossa Senhora se encontrava embelezada com todos os adornos inexprimíveis que Lhe vinham dessa íntima união com Ele.

    Aguardado há quatro ou cinco mil anos por todos os justos, cantado pelos profetas, glorificado pelos anjos, Nosso Senhor Jesus Cristo ali estava. Mas, antes de tomar contato com os homens, quis passar nove meses exclusivamente em companhia de Maria, dizendo-Lhe palavras, confidenciando-Lhe maravilhas, instruindo-A acerca das grandezas divinas, como não faria com nenhuma outra criatura.

    Ou seja, estabeleceu-se entre os dois uma união, nimbada de santidade, incomparável. Com esse algo de contraditório e magnífico, no que diz respeito a Nossa Senhora: Ela possuía todo o esplendor de uma Virgem e toda a majestade de uma Mãe. Virgem antes, durante e após o parto; Mãe acima de todas as mães. De maneira que, olhando para Ela não se sabe o que exclamar: Ó Virgem! Ó Mãe!

    O Filho de Deus se fez escravo de Nossa Senhora

    Cumpre observar que o mistério da Encarnação encerra outra insondável maravilha, à qual São ­Luís Grignion de Montfort alude com a força e delicadeza de expressão que lhe são características. Conforme ele nos ensina, quando Nossa Senhora disse a São Gabriel: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, realizou-se o inimaginável e o próprio Deus Encarnado se fez escravo d’Ela. Não há maior sujeição nesta Terra do que a do filho para com sua mãe, enquanto esta o traz consigo em seu seio. E durante nove meses consecutivos Jesus, com essa submissão, quis pertencer inteiramente à Virgem Santíssima. O esperado das nações, o Homem-Deus, tornou-se escravo de Maria(1).

    Ao discorrer sobre essa completa dependência de Nosso Senhor Jesus Cristo em relação a Nossa Senhora, São Luís Grignion acentua que o Divino Salvador, no sentido mais estrito da palavra, quis vir a nós por meio de Maria. Ela como que O produziu para a humanidade; devemos a Ela o fato de termos recebido o Redentor, e se algo quisermos d’Ele, importa recorrermos à divina Mãe. Ela foi o caminho para Jesus vir até nós; é o caminho para irmos até Ele(2).

    Durante esse período, Jesus e Maria propiciaram aos homens uma admirável lição de humildade. Pois, sem dúvida, Nossa Senhora, sendo como que um ostensório vivo, deveria se sentir aniquilada pela desproporção entre Ela e o Hóspede divino que habitava no seu interior. Por seu lado, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, onipotente, superior a todas as coisas, tomou nossa natureza, abateu-se, reduziu-se a uma espécie de cárcere maravilhoso, sujeitou-se a uma simples criatura. Mostrou-nos como é belo e nobre obedecer.

    Glória acima de todas as glórias

    Vemos, assim, como o Divino Salvador, em sua sabedoria, dispõe de meios admiráveis para nos instruir. Modelo de todas as virtudes, Ele o é, portanto, da humildade, e a demonstrou desse modo magnífico. Supremo, perfeito, absoluto, a praticou em relação a uma mulher. Lição concludente, dir-se-ia até “desconcertante”: o Criador do universo se sujeitou a Nossa Senhora.

    Glória existe em ser rei de um reino, imperador de um império, superior de um convento, bispo de uma diocese, Papa da Santa Igreja. Que são essas glórias diante do augusto privilégio de se tornar Senhora do Senhor da criação? Essa glória, Deus a reservou à Santíssima Virgem, da qual quis ser Filho e escravo. Mistério fascinante, refulgente de cores e luminosidades indizíveis!

    No Céu, filiais perguntas…

    Ao concluirmos essas breves reflexões sugeridas pela festa da Anunciação, caberia exprimirmos um desejo repassado de veneração e respeito.

    Nossa Senhora se encontra no Céu em corpo e alma. Quando — pela misericórdia d’Ela — lá também estivermos e nos lembrarmos dessas considerações, quiçá nos aproximemos de seu trono, tão junto ao de seu Divino Filho, e Lhe peçamos: “Minha Senhora e Mãe, podeis me contar tudo o que meditastes desde o momento da Encarnação até o do nascimento de Jesus? Quero saber tudo, e que nada me fique ignoto. Minha Mãe, perdoai meu atrevimento, mas peço que me seja contado por Vós mesma!”

    E Nossa Senhora, régia, bondosíssima, dulcíssima, condescenderia em nos responder: “Filho, começou assim…”

    Imagine quem puder, a torrente de alegria, de emoção e de felicidade que nos inundaria ao ouvirmos dos próprios lábios puríssimos de Maria, a narração de tudo quanto Ela sentiu e viveu a partir do instante em que, por obra do Espírito Santo, o Verbo de Deus se fez carne no seu claustro materno!

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência em 24/3/1984)

    1) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 18 e 139.
    2) Cf. Idem, n. 50.

  • A hora do beijo

    Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

     

    O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

    Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

    Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

    Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

    Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

    A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

    Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

    Por vezes, para curar é preciso gritar…

    Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

    Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

    “Senhor, que ouçamos!”

    Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

    Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

    O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

    Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, ut audiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

    Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

    Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

    Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

    Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

    1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.

  • São Leão IX: ascendendo ao ápice pela virtude

    Comentando uma biografia do Papa São Leão IX, Dr. Plinio analisa o importante papel da graça e da virtude, bem como os benfazejos perfumes da santidade.

     

    Tendo-me sido fornecida uma sintética, porém atraente, biografia de São Leão IX(1), pediram-me para que tecesse a respeito dela alguns comentários, o que farei de bom grado.

    Aliança entre a grandeza terrena e o serviço de Deus

    ão Leão IX nasceu no ano de 1002, nos confins de Alsácia. Seu pai era Conde de Ingersheim e primo-irmão do Imperador Conrado, o Sálico. Sua mãe lhe deu o nome de Bruno. Ao atingir a idade de 5 anos, foi confiado, por seus pais, à educação de Bertoldo, o venerável Bispo de Toul, o qual dirigia então uma escola no próprio palácio episcopal.

    Como vemos por esses dados, São Leão viveu em plena Idade Média. Neste trecho já se encontra uma nota interessante e peculiarmente medieval, ou seja, o fato de haver uma escola dirigida pelo bispo e que funcionava no próprio palácio episcopal.

    No colégio, Bruno foi confiado particularmente a um primo seu, chamado Aderico, filho do Príncipe de Luxemburgo; os dois se tomaram de uma íntima amizade. Seu primo foi-lhe modelo de todas as virtudes e serviu extraordinariamente para sua formação.

    Havia na Idade Média, pessoas pertencentes à mais alta categoria social e que se destacavam, sobretudo, por sua extraordinária virtude. Formava-se assim uma aliança entre a grandeza terrena e o serviço de Deus.

    A Igreja Católica como centro de tudo

    Tendo recebido do Bispo de Toul as sagradas ordens, foi nomeado clérigo da Capela do palácio do Imperador Conrado, o Sálico.

    Todos os Imperadores tinham sua própria capela, na qual um conjunto de capelães mantinha o culto. O fato de ser clérigo na capela imperial era, portanto, uma situação de alta confiança, pois conferia a oportunidade de estar em contato direto com o Imperador.

    Por outro lado, é digno de nota o fato de o Imperador ter sua capela própria, donde decorre que o elemento central de sua vida de corte era a recitação do Ofício Divino, a Santa Missa e outras práticas de culto católicas.

    Esse piedoso costume, por sua vez, provinha da convicção profunda e verdadeira que estava radicada na sociedade daquele tempo: a Igreja Católica deve estar no centro de todas as coisas. E, portanto, na Corte imperial o elemento central devia ser a capela, onde estava presente o Santíssimo Sacramento, ou seja, Nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei dos Reis. Também ali devia estar a imagem de Nossa Senhora Rainha e Mãe. Como isso é diferente dos costumes laicos e divorciados da verdadeira posição católica!

    A virtude outrora era um título de ascensão

    Bruno foi imediatamente bem visto pelo Imperador, que impressionado com suas virtudes passou a tratá-lo de “meu sobrinho”.

    Ser tratado de primo e sobrinho do Rei era considerado pelas cortes daquele tempo uma honra extraordinária. Ele realmente era parente do Imperador, mas não em grau tão próximo; era filho de primos e não de irmãos do Imperador, portanto não era de fato seu sobrinho. Mas, o Imperador o tratava como sobrinho, elevando-o assim à categoria de Príncipe da Casa Imperial. A principal razão dessa honraria era a alta consideração do Imperador pelas virtudes de Bruno.

    Como na Idade Média a maior parte das pessoas procurava a todo custo manter a posse do estado de graça, criava-se um ambiente onde a virtude era bem vista, e constituía um título de ascensão e não um título de perseguição como cada vez mais vem se tornando nos dias atuais.

    Algum tempo depois, no ano de 1026, o Imperador recebeu a visita de clérigos da Diocese de Toul, que lhe anunciavam a morte do Bispo e o desejo de toda a população que Bruno fosse designado para a diocese vaga. Conrado acedeu, apesar de Bruno não ter ainda a idade canônica.

    Aqui vemos um costume medieval que como outros é preciso ser bem entendido. É preciso levar em conta que a nomeação de um Bispo sempre foi privilégio papal. Porém, para isso o Papa pode receber indicações, as quais ele é livre de aceitar ou recusar. Ora, na Idade Média mantinha-se o costume proveniente dos primeiros tempos da Cristandade, pelo qual o povo da diocese podia aclamar ou propor um nome, mas cabia ao Papa ratificar ou não a proposta.

    Com a implantação do Sacro Império, os Imperadores também tomaram o hábito de propor candidatos ao episcopado. Então se formava uma corrente de mediações, onde o povo propunha ao Imperador um nome e este, por sua vez, estando de acordo, propunha ao Papa. Mas, a palavra final sempre cabia ao Sumo Pontífice.

    Apesar da pouca idade, Bruno imediatamente se destacou entre os Bispos da região por sua capacidade e pela virtude com que dirigia a diocese.

    Note-se, portanto, a rapidez dessa ascensão, a qual se deve, acima de tudo, às suas notáveis virtudes.

    Quem se humilhar será exaltado!

    Durante 22 anos Bruno governou pacificamente e com brilho a Diocese de Toul. Com a morte do Papa Dâmaso II no ano de 1048, os romanos mandaram uma deputação ao Imperador Henrique III para pedir-lhe que designasse um novo Papa. O Imperador Henrique III reuniu, para esse efeito, uma Dieta em Worms, da qual participavam todos os Bispos do Império. Logo, todas as vozes designaram Bruno, Bispo de Toul, como futuro Papa. Tendo sido consultado, Bruno, por humildade, de nenhum modo queria aceitar o cargo; pediu então que lhe dessem alguns dias para refletir.

    Pediu tempo para refletir, mas de fato, o que ele queria era escapar do encargo de ser Papa.

    Terminado o prazo, apresentou-se diante de toda a Dieta de Worms reunida e disse que ele iria fazer uma confissão pública de todos os seus pecados, para fazer notar quanto ele era pecador e de nenhum modo digno do papado. Ajoelhou-se e fez sua confissão pública.

    A confissão constava de matérias tão leves, que o fato que ele considerava mais grave e pavoroso, mal dava matéria de um pecado venial. Tendo terminado, todos se levantaram e o aclamaram.

    Só um Bispo com tal limpeza de consciência poderia ser o Papa.

    Como última tentativa, ele levantou um sério problema: o Imperador não tinha direito de nomeá-lo Papa. O Papa só pode ser eleito pelo clero de Roma, na forma canônica, ouvindo, quando queira, o povo de Roma.

    Então ele iria a Roma a fim de lá consultar se o clero e o povo o queriam como Papa.

    Retirou-se e, tomando o traje de peregrino, saiu a pé de Worms em direção a Roma.

    Que extraordinária firmeza possuía esse homem, para tomar tal decisão, pois viajar a Roma supunha, entre outras dificuldades, a travessia dos Alpes, com suas neves eternas, montanhas escarpadíssimas e caminhos de cabras para transpor, pelo que essa viagem sempre foi considerada perigosa.

    Ele poderia ter ido andando até o mar Adriático e lá tomar um barco. Mas ele quis, como um penitente, ir a pé até Roma, onde esperava ser recebido como um mero peregrino.

    Ao chegar às cercanias de Roma, encontrou a população da cidade à sua espera.

    A cidade de Roma naquele tempo deveria somar entre duzentos a trezentos mil habitantes.

    Vestido como peregrino, com as vistas baixas e sem olhar nem dar atenção para ninguém, entrou em Roma, dirigindo-se diretamente ao túmulo de São Pedro para rezar.

    É possível a abundância do estado de graça numa época

    Este é realmente um homem reto, que faz as coisas como devem ser feitas.

    O povo de Roma, aclamando-o, quis naquele mesmo dia entronizá-lo. Mas ele disse que esperassem até o dia seguinte, para ainda poderem pensar. Mas, por fim, chegou o dia seguinte e o povo estava de tal maneira decidido de que ele deveria ser o Pontífice, que ele acabou por aceitar, sendo então entronizado na Sé Romana.

    Este apreço geral pela virtude daquele homem dá uma ideia do espírito que vigorava naquele tempo, e faz ver como é possível o estado de graça ser tão abundante em determinada época. Pois, sem ele, esses atos e gestos verdadeiramente extraordinários não se realizariam desta forma.

    Por inspiração divina, tomou o título de Leão, considerando que devia, à testa da Igreja, lutar como verdadeiro leão. De fato, não tardou em começar a luta contra os verdadeiros inimigos da Igreja.

    Um “Leão” em defesa da Igreja

    Quais eram os verdadeiros inimigos da Igreja?

    Naquele tempo, havia se difundido um abuso péssimo chamado simonia. Que consistia no seguinte: como a indicação dos cargos clericais era frequentemente feita pelo Imperador e pelo povo, acontecia que muitos homens vorazes, querendo ter cargos lucrativos, pagavam ao povo ou ao Imperador para serem indicados para o episcopado, ou então para que um parente ou alguém ligado a ele fosse nomeado Bispo, Abade e até mesmo Cardeal. Chegava-se até o absurdo de subornar os Cardeais e o povo de Roma, para elegerem determinado Papa, comprando assim até a Tiara romana.

    Esse processo de escolha não podia deixar de trazer os piores inconvenientes. Através dele, muitas vezes, eram os mais ordinários que assumiam cargos eclesiásticos, dentre os quais estavam pessoas de costumes inteiramente desregrados, que por um lado constituíam um escândalo geral na Cristandade, e por outro um perigoso amolecimento ante as investidas de pagãos.

    Estes vinham de todos os lados: os normandos vinham através do mar do Norte, penetravam pelo estreito de Gibraltar e atacavam o Sul da Itália; havia ainda restos de bárbaros que vinham dos países eslavos; e também os maometanos que atacavam por todas as partes.

    Neste momento em que a Cristandade precisava lutar especialmente para defender-se, ela se apresentava extraordinariamente debilitada, pela decadência espiritual causada pela simonia.

    Por isso, tendo assumido o papado, Leão IX começou a reunir diversos Sínodos e outros tipos de reuniões eclesiásticas, a fim de imediatamente punir e depor os Bispos que tinham tomado o cargo indignamente, nomeando bons para substituí-los. Isso causava, como é de se esperar, as mais acirradas indignações.

    Zelo na defesa dos súditos

    Ocupava-se ele com esse árduo trabalho, quando recebeu o aviso de que os normandos estavam por invadir a Apúlia, território do qual o Papa era Rei. Portanto, competia a ele defender seus súditos. Sem hesitação, foi a toda pressa à Alemanha a fim de pedir ao Imperador, seu parente, que mandasse um exército para defendê-lo.

    Tendo o Imperador prometido enviar-lhe auxílio, o Papa desceu até a famosa Abadia beneditina de Monte Cassino, uma das mais célebres do mundo, a qual não ficava a muita distância de Roma, e lá permaneceu à espera da chegada do exército imperial. De fato, algum tempo depois chega o exército, porém, para sua surpresa, este era constituído por apenas 500 lorenos. Isto porque o exército imperial, quando chegou próximo aos Alpes, desistiu de descer.

    A este punhado de combatentes tinham se incorporado pelo caminho alguns contingentes italianos, aos quais se somaram ainda alguns romanos, que eram senhores feudais da região. Assim constituiu-se o parco exército de resistência. Chegaram, por fim, os normandos, aos quais, apesar da desvantagem numérica, o exército do Papa ofereceu dura resistência que resultou numa tremenda carnificina.

    Contudo, os normandos acabaram por vencer a batalha e levaram cativo o Papa, ao qual, devido à dignidade e respeitabilidade de sua pessoa, dispensaram toda forma de honras e cuidados.

    Mas de todos os fatos da vida de Leão IX, nenhum me parece tão marcante da aprovação divina ao seu modo enérgico de agir, quanto às circunstâncias de sua morte.

    A doce mensageira da felicidade eterna

    A doença, doce mensageira da felicidade eterna… Como é linda esta expressão e contrária ao horror à doença que se tem em nossos dias. Claro que se deve combater a doença, mas com essa resignação deve-se aceitá-la. …a doença veio anunciar-lhe que sua hora tinha chegado. No dia 12 de fevereiro de 1054, ele celebrou por última vez o Santo Sacrifício da Missa onde dirigiu à multidão uma exortação comovedora.

    No dia seguinte, sabendo que sua hora estava próxima, ele quis ser transportado da cidade de Benevento para Roma. Foram os próprios normandos que reivindicaram a honra de levá-lo numa liteira.

    Que esplêndida glória ser carregado numa liteira pelo próprio “inimigo”!

    Desta forma o Papa voltou ao Palácio de Latrão no mês de abril de 1054, época na qual habitualmente ele reunia o Sínodo dos Bispos das províncias eclesiásticas circunvizinhas de Roma. Ele então as convocou para o dia 17 de abril. Reunidos os Bispos, ele lhes disse: “Eu me recomendo à vossa fraternidade porque o tempo de minha dissolução chegou”.

    Esta frase proferida pelo Papa é a reminiscência de uma citação de São Paulo, que manifestava o desejo de ser dissolvido, quer dizer, ter separada a alma do corpo, para subir a Jesus Cristo.

    “Na última noite, em visão, a glória da Pátria celeste me foi manifestada. Eu reconheci entre os grupos de mártires aqueles que morreram na Apúlia, para defesa da Igreja”. Aqueles valentes lorenos que morreram na Apúlia, em defesa da Igreja, os quais eram mártires, estavam à espera que Leão IX fosse juntar-se a eles no Céu.

    “Vem, nos disseram eles, e permanece entre nós, porque foi por teu intermédio que nós conseguimos as eternas felicidades. Mas uma voz, ao mesmo tempo, se fez ouvir, dizendo: ‘Não já, mas daqui a três dias somente’.”

    No dia seguinte, ele reuniu de novo os Bispos, e sendo posto numa liteira foi conduzido pelos seus fiéis normandos em procissão até à Basílica de São Pedro, onde ele desejava morrer.

    Hoje, carne e sangue; amanhã, poeira e cinza

    Que lindo cortejo deve ter sido aquele! O Papa carregado numa liteira, os Bispos a seu lado, certamente cantando e portando círios, seguidos por um tropel de normandos armados, todos caminhando rumo à Basílica de São Pedro. Creio que não houve desfile militar que tenha superado em beleza aquela cena.

    Prosternado diante da sepultura do Príncipe dos Apóstolos, Leão IX rezou pela Igreja e pela conversão dos pecadores. Assim que terminou, um delicioso aroma, superior ao perfume mais puro, se exalava da sepultura de São Pedro. Era o primeiro Papa manifestando seu agrado diante desse seu digno sucessor. Permaneceu então durante cerca de uma hora em silenciosa contemplação. Bispos, normandos e o povo em grande número estavam a sua volta.

    Em certo momento ele mandou trazer pão e vinho. Os abençoou, comeu três pedaços de pão, bebeu um pouco de vinho e distribuiu o resto entre os assistentes. Ninguém comeu. Todo mundo guardou como relíquia os pedaços de pão que ele distribuiu.

    Levantando-se então, dirigiu-se para o túmulo que ele mesmo tinha mandado preparar para si na Basílica. Lá, dirigindo-se aos Bispos, disse: “Vede, meus irmãos, como é miserável, frágil e efêmera a glória humana. Que esse exemplo jamais saia de vossa memória. Do nada eu fui um dia elevado ao que há de mais alto; e agora vou ser reduzido novamente a nada. Eu terei como moradia esse cárcere escuro e estreito. Hoje ainda convosco sou carne e sangue. Amanhã serei poeira e cinza”.

    Que linda pregação! Qual terá sido a reação dos Bispos e mesmo dos normandos que estavam ao seu redor, vendo aquela cena grandiosa de um homem anunciando sua morte?

    Adormeceu com uma calma indizível e acordou no Céu

    Todos os assistentes se puseram aos prantos… O Papa então os despediu dizendo: Venham amanhã assistir a meu último suspiro.

    São Leão retirou-se ao palácio próximo onde passou toda a noite em oração. Na manhã seguinte, sustentado por dois assistentes, voltou para a Basílica e veio prosternar-se diante do altar-mor. Estendeu-se sobre uma cama que tinham preparado junto ao altar, fez sinal com a mão para impor silêncio e dirigiu ao povo uma última exortação.

    Depois, chamou para junto de si os Bispos e fez a confissão de seus pecados. Mediante uma ordem dele, um deles celebrou a Missa e deu a ele a Comunhão. Depois de ter comungado, o Papa disse: “Fazei silêncio, porque parece que eu vou dormir”. Inclinando a cabeça, adormeceu, com uma calma indescritível, para acordar no Céu.

    Assim, diante do altar de São Pedro, no dia 19 de abril do ano da graça de 1054, faleceu o Santo Pontífice Leão IX.

    Entre aqueles que o assistiam na hora de sua morte estava Hildebrando, que era a uma vez seu inspirador e secretário, e mais tarde viria a ser seu sucessor com o nome de São Gregório VII. Imagine ter como secretário um santo, o qual, a meu ver, foi “o Papa”, não comparando a santidade, mas sim a missão, e o papel na História da Igreja.

    Que sublimidade, maravilha e grandeza devia ter aquela cena na qual um santo contempla outro expirar, onde São Gregório VII, ainda moço, permanece ao lado de São Leão IX, rezando até a hora em que a alma dele se desprende do corpo e sobe ao Céu!

    A contemplação de fatos como este, e o deliciar-se com o perfume das virtudes de um tal santo, constitui um descanso da vida de todos os dias. Assim sendo, resta-nos pedir a São Leão IX que, do alto do Céu, reze e interceda por nós.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/10/1974)

    1) Não possuímos referência da ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

  • Anunciação

    As palavras da saudação angélica nos revelam Nossa Senhora como o Vaso de Eleição, o receptáculo sagrado no qual Deus depositara todas as perfeições e excelências de que uma simples criatura era capaz de conter.

    Imensa na ordem da virtude e da santidade, cheia de graça, bendita entre todas as mulheres, com quem o Senhor estabelecera maravilhosa união: em seu imaculado seio fez-se carne o Verbo de Deus.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 25/9/1990)