Categoria: Santos do dia

  • Santiago, Admirável continuidade de bênçãos

    Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor nos áureos tempos da Cristandade conservam ainda hoje, e com intensidade por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas, a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu o povo espanhol nos leva a  encontrar, nesta nação, significativos exemplos dessa continuidade.

    Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago de Compostela. Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva do latim “Campus Stellae”, isto é, Campo da Estrela. Segundo as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior, ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos para aquela região hispânica e ali o sepultaram.

    Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um dia em que, no século IX, alguns camponeses avistaram uma luz inusitada refulgindo sobre o local.

    Começaram a escavar e depararam com os ossos do grande Apóstolo. Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se tornar um dos maiores centros de peregrinação de  toda a Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!

    É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro espírito de peregrinação e a alma voltada para o  sobrenatural, não pode deixar de sentir as bênçãos  inapreciáveis de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que se nota em outros santuários igualmente  veneráveis como Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num ambiente repassado de fervor e entusiasmo.

    A igreja é o maior templo românico do mundo, embora sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa, magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é  ordenada e muito bonita. As fachadas laterais também se revestem de uma extrema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso, digno e lindíssimo conjunto com os  outros prédios da praça em que ele se encontra.

    Internamente, possui a formosura própria da arte românica, com um pormenor bem espanhol: não há vitrais. A luz penetra através de uma claraboia cuja abertura foi cuidadosamente estudada para que todo o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores laterais abrem-se diversas capelas, consagradas a certas invocações de  Nossa Senhora e a alguns santos.

    E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham para adorar o  Rei dos Reis, perpetuamente exposto, são acolhidos por uma tocante imagem do  Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de bondade celestiais.

    Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é, a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão conservados é, na  verdade, uma bela e rica imagem do Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com traços de inspiração ainda pré-gótica.

    Êmula dessa bênção toda particular é a que se sente noutra capela do Santuário, situada embaixo da escadaria principal. Trata-se de uma construção dos tempos de Carlos  Magno, o grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão, muito devoto de São Tiago e que ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda mais nítida a noção da continuidade desse presente com as magníficas tradições da Cristandade, e mais viva a ideia de que as graças de hoje e as de ontem se respeitam e se entrelaçam,  constituindo um tesouro espiritual que nada poderá destruir!

    Duas coisas merecem especial destaque no conjunto dos atraentes aspectos do Santuário. Uma é o “botafumero”, imenso turíbulo de prata que, em dias de festa, costuma ser levantado para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo um gigantesco semicírculo, se põe a espargir o odorífero incenso por todo o recinto sagrado.

    Para alguém que o assista pela primeira vez, esse interessante e louvável ritual de incensamento pode tomar um certo ar de exercício de força, como quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um lugar como Santiago de Compostela.

    Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.

    Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha. Séculos depois, durante os heroicos feitos da  Reconquista espanhola, São Fernando de Castela recuperou estes mesmos sinos e ordenou que fossem recolocados em seu lugar de origem.

    Quando ali estive, eu também como peregrino, ao ouvir o timbre desses bronzes, testemunhas de tantas epopeias, pensei no triunfo daquele grande rei espanhol e no triunfo  ainda maior da Igreja Católica. E os dobrares que ecoavam das torres imponentes encheram minha alma de uma harmonia extraordinária.

    Uma vez mais, reluzia a admirável continuidade das bênçãos da Civilização Cristã.

  • São João Maria Vianney, modelo para os sacerdotes

    Homem pobre e pouco inteligente, São João Maria Vianney tornou-se um exemplo da Onipotência Divina pela santidade de sua vida e eficácia de sua ação.

    A vida de São João Maria Vianney, um dos maiores santos do século XIX, apresenta muitos aspectos passíveis de comentários.

    Ele foi, nas primeiras décadas do século XIX, um seminarista muito pobre e, além disso, de inteligência notavelmente pequena. Precisou fazer seus estudos de seminário com um esforço extraordinário, e, durante algum tempo, até duvidou-se da sua vocação sacerdotal, por causa dessa insuficiência de inteligência. Formou-se a duras penas — pode-se dizer que ele conseguiu o diploma de fim de curso de seminário apenas no limite mínimo da suficiência — e, por ser um homem tão apagado, de tão poucos predicados naturais, foi encaminhado pelo seu Bispo para um vilarejo minúsculo do Sul da França: a aldeiazinha de Ars.

    Ali começou então a sua atuação sacerdotal, que encheu de luz a Europa inteira e depois se propagou para o mundo novo; posteriormente, ele foi proclamado modelo e patrono do clero.

    Modelo de sacerdote

    O que distinguia esse santo?

    Embora não tivesse nenhuma das qualidades naturais para exercer um sacerdócio extraordinário, ele, entretanto, foi um sacerdote magnífico, um apóstolo estupendo, um confessor dotado de raríssimo discernimento, um pregador que exercia profunda influência sobre as almas e, acima de tudo, com um título que é a arquitetura de todo o resto: foi o próprio modelo de sacerdote.

    Qual era a razão da eficácia do seu apostolado?

    Como bem disse Santa Teresinha do Menino Jesus, para o amor, nada é impossível, e quem verdadeiramente ama a Deus Nosso Senhor e a Nossa Senhora obtém os meios para fazer aquilo a que a Providência Divina o chama.

    Um ensinamento dotado de potência

    Ele era um pregador extraordinário. Estudava os seus sermões, procurava prepará-los com cuidado. Não subia às altas regiões da Teologia, mas suas homilias cuidavam das noções catequéticas comuns com as quais um sacerdote instrui o povo. Entretanto, o santo Cura d’Ars ensinava com tanta unção, compenetração, Fé e amor que tudo quanto ele dizia se tornava atraente. E muitas vezes, tendo ele voz fraca — naquela época em que não havia microfones —, não conseguia se fazer ouvir pelas multidões que ficavam acumuladas na porta do templo e até do lado de fora. Mas, só de vê-lo e de escutar uma ou outra frase que ele pronunciava, as pessoas se convertiam.

    Deus num homem

    Dom Chautard, na “Alma de Todo Apostolado”, conta esse fato característico:

    Curioso pela fama de São João Maria Vianney, um advogado de Paris foi fazer uma visita à cidadezinha de Ars para conhecê-lo. Quando o advogado voltou a Paris, perguntaram-lhe: — O que o senhor viu lá em Ars?

    Ele deu esta resposta, que é a maior glória que um homem pode ter:
    — Eu vi Deus num homem.

    Quer dizer, notava-se que Deus estava nele.

    Era só ele começar a falar, que as almas se comoviam e se modificavam; as conversões que ele fazia eram espantosas e numerosíssimas.

    Pergunta Dom Chautard: Por que o Cura d’Ars conseguia converter, sendo pouco dotado intelectualmente, enquanto outros padres tão inteligentes muitas vezes não convertem ninguém? E responde: Ele tinha uma grande vida de pensamento, de meditação, uma intensa vida interior. E porque tinha essa vida interior, ele estava imbuído e compenetrado das doutrinas que ensinava. E quando ele falava, as pessoas tinham a sensação de ter um contato vivo com as verdades das quais ele era o arauto.

    Ele possuía a unção, o carisma da pregação, e Ars se tornou um centro de peregrinação: à semelhança do advogado há pouco mencionado, pessoas de toda a França, e também de outras regiões da Europa, iam a Ars a fim de ver e ouvir esse sacerdote.

    Verdadeiro mártir do confessionário

    Além disso, ele foi um verdadeiro mártir do confessionário, onde permanecia horas inteiras ouvindo confissões. Podemos imaginar o que representa para um padre ficar sentado numa verdadeira cabinezinha de escuridão, a ouvir os pecados das pessoas e dar-lhes os conselhos, durante horas e horas. Que tremenda penitência isto representa!

    São João Maria Vianney era um sacerdote que seguia o conselho dado por Santo Afonso de Ligório: ouvia cada confissão sem pressa, como se tivesse só aquela pessoa para ser atendida, e lutava corpo a corpo com os pecados daquele indivíduo.

    Ele aconselhava, insistia; e quando a pessoa não tinha o propósito sério e verdadeiro de se emendar de seus pecados, ele negava a absolvição.

    Isso chegava a tal ponto, que havia paroquianos que iam confessar-se noutras paróquias, para obter absolvição. Ele dizia: “Se outros padres querem lhes mandar para o Inferno… Eu sou seu pároco, e não lhes dou a absolvição.”

    Após um dia inteiro na igreja, começava a batalha noturna com o demônio

    Este padre extraordinário passava o dia inteiro na igreja: no púlpito, no confessionário, no altar. Poder-se-ia pensar que, quando ele ia à noite para casa, gozaria de um bom repouso. Entretanto, aí começava uma das mais estranhas facetas da vida dele: era a batalha noturna com o demônio.

    Contam os biógrafos de São João Batista Vianney que ele teve, certa vez, um sonho no qual se viu julgado por Deus, e o demônio dizer contra ele: “É preciso castigá-lo, porque em tal ocasião ele estava muito cansado e, passando perto de uma cerca, comeu dois cachos de uvas.” De fato, ele estava fugindo do serviço militar, porque Napoleão obrigava os seminaristas a servir na guerra. E o demônio acrescentou: “Ladrão! Comeu dois cachos de uvas, deve ser punido!”

    E São João Maria Vianney respondeu: “Tu mentes, ladrão não sou, porque eu deixei em tal local o dinheiro correspondente ao preço dos cachos de uvas, para que o dono, quando passasse por lá, o pegasse.”

    E quando vinha confessar-se uma alma particularmente dominada pelo demônio, este começava a atormentar São João Maria Vianney na noite anterior. Em certa ocasião, ateou fogo em sua cama, tendo uma parte do colchão ficado toda tisnada pelas chamas. Ele, felizmente, não se feriu. O demônio o odiava porque sentia que uma de suas vítimas lhe seria arrancada pelo santo.

    O santo Cura d’Ars fazia penitências, se flagelava, rezava por aquelas almas, para conseguir depois que suas palavras fossem portadoras das graças necessárias para operar as conversões delas. Além disso, levou uma vida de jejum intenso, e fez de seu confessionário um longo martírio de sua existência.

    Atribuía seus milagres a Santa Filomena

    Para acentuar ainda mais o seu apostolado, a Providência deu-lhe o dom dos milagres.

    Na igreja dele havia uma relíquia insigne de Santa Filomena, mártir. E antes de fazer algum milagre, ele dizia: “Rezemos a Santa Filomena!” E quando o milagre era realizado, afirmava ter sido Santa Filomena que o fizera, para não tocar a ele a graça e a glória de ter operado o milagre.

    Revelando o passado miraculosamente

    Encerro recordando um fato extraordinário, contado por uma penitente dele.

    Uma moça foi confessar-se e São João Maria Vianney disse para ela:
    — Minha filha, você se lembra de que esteve em tal ocasião num baile?

    Podemos imaginar a sensação dela.

    E continuou ele:
    — Lembra-se de que, em certo momento, entrou na sala de baile um rapaz muito bem apessoado, elegante, correto, e dançou com várias moças?
    — Sim, lembro-me.
    — Lembra-se de que você teve muita vontade de que ele dançasse consigo?
    — Lembro-me.
    — Lembra-se de que o rapaz não o fez, e por isso você olhou para ele com uma espécie de tristeza? E, na hora de ele sair da sala, fitando incidentemente os pés dele, notou uma luz azul que lhe saía dos pés?
    — Lembro-me.
    — Aquele homem era o demônio, que tomou a forma humana e dançou neste baile com várias moças. Ele não lhe pediu para dançar porque você é Filha de Maria e estava com a Medalha Milagrosa no peito.

    Ele estava revelando um passado que não podia conhecer; logo, isso não podia deixar de ser verdade. Tratava-se uma revelação espantosa.

    Pode-se imaginar a atmosfera criada na pequena igreja de Ars quando os peregrinos saíam, uns convertidos, outros com seu passado desvendado, todos regenerados e cantando louvores a São João Maria Vianney.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de10/7/1968, 22/5/1976, 6/10/1990)

  • Santo Estêvão, Rei Apostólico

    Assim como cada indivíduo, também o Estado deve praticar os Dez Mandamentos. Ele existe, antes de tudo, para servir à Igreja e favorecer o Reino de Deus. Esse princípio foi praticado eximiamente por Santo Estevão, e constitui o fundo das concepções políticas de Dr. Plinio.

    Santo Henrique, Imperador do Sacro Império Romano Alemão, se interessou pela conversão do povo húngaro, e destinou para isso a sua irmã Gisela, cujo casamento ele promoveu com o rei pagão daquele povo. Pela ação de Santo Henrique, da Rainha Gisela e de pregadores santos que foram para a Hungria, foi possível converter o rei, e com a conversão dele se tornou mais fácil a conversão dos húngaros. Este rei foi Santo Estêvão.

    O enorme império dos maometanos

    A Hungria passou a ser um baluarte da Cristandade no Ocidente. Nação de um papel muito importante, porque o que são hoje os comunistas para a Cristandade de nossos dias, para a Cristandade até começo do século XVIII — certamente desde o século VII até o século XVIII, portanto, mais de mil anos — foram os maometanos.

    Estes, que eram na sua maioria árabes, também conseguiram trazer para seus erros os turcos. Os maometanos ocupavam a metade do litoral mediterrâneo. Além de todo o Norte da África, chegaram a conquistar durante algum tempo quase toda a Espanha, parte da França até Poitiers e grande parte de Portugal. Posteriormente, no Oriente Próximo, eles ocuparam os Lugares Santos, tomaram Constantinopla e algumas zonas territoriais adjacentes, chegaram até a Albânia, a qual, ainda hoje, é mais ou menos maometana. Isso formava, então, um império enorme.

    O Mediterrâneo, considerado naquele tempo o centro do mundo — Mediterrâneo, “no meio da Terra” —, estava dividido, portanto, em dois blocos: um grande bloco católico, que tomava todas as nações da Europa, também a Espanha depois que ela foi reconquistada; e o maometano, que abrangia o Norte da África, regiões da Ásia e uma parte dos Bálcãs. Os dois blocos estavam numa contínua guerra de caráter religioso, numa constante fricção.

    E os pontos de ataque mais frequentes foram, nos dois extremos de Europa: a Península Ibérica, onde está a Espanha e Portugal e, de outro lado, a Hungria. Os maometanos subiam em hordas, a partir de Constantinopla, e o intuito deles era de chegar à Hungria, depois até a Áustria, tomar Viena e posteriormente descer à Itália para ocupar a Sé de São Pedro.

    O Imperador Bajazet, que foi talvez o mais famoso dos chefes maometanos, dizia que ele queria fazer o seu cavalo comer no altar de São Pedro, como numa manjedoura. E os povos que aguentavam, do lado do Ocidente, a invasão maometana eram o espanhol e o português, que se tornaram famosos por causa de seu heroísmo.

    Um povo-baluarte

    Não focalizamos bastante o papel que tinham nesse ponto os húngaros. Estes, precisamente, suportavam a pressão maometana, para defender o Ocidente na Europa oriental, do outro lado do alicate, ou da tenaz maometana. E com batalhas heroicas, guerras, santos lutando do lado deles, com milagres, etc., algo que pode legitimamente ser comparado, nos seus pontos altos, ao heroísmo dos espanhóis e portugueses contra os maometanos.

    A conquista desse povo-baluarte, ao qual a Europa deveu em grande parte a sua integridade contra as investidas maometanas, e que também soube resistir muito bem ao protestantismo — a Hungria era uma nação de fortíssima maioria católica, apenas uma parte dela passou para o protestantismo —, a conversão dos húngaros teve, portanto, uma série de consequências para a História do Ocidente, para a História da Cristandade.

    Tudo começou com a conversão de Santo Estêvão e se consolidou com o reinado de Santo Américo, filho de Santo Estêvão e educado por ele.

    Tudo quanto diz respeito e esses primórdios da Cristandade na Hungria nos deve interessar profundamente. Então, comentarei uma ficha(1) que nos fala do modo pelo qual Santo Estêvão instruiu seu filho, Santo Américo, na arte de governar.

    ”Ninguém deverá aspirar à realeza se não for católico fiel”

    Santo Estêvão deixou para seu filho, Santo Américo, uma instrução em dez artigos, sobre a maneira de bem governar.

    Esses dez artigos são como que florões que deviam ornamentar a coroa real. O primeiro desses florões é o seguinte. Diz Santo Estêvão:

    Como ninguém deverá aspirar à realeza se não for católico fiel, demos o primeiro lugar das nossas instruções à nossa santa Fé. Recomendo-vos, antes de tudo, meu querido filho, se quiserdes ilustrar a coroa real, professar com tanta firmeza a Fé católica que possais servir de modelo aos súditos, e fazer com que todos os filhos e ministros da Igreja vos reconheçam como verdadeiro cristão. Pois aquele que professa uma falsa crença, ou que, professando a verdadeira, não a pratica em suas obras, esse não reinará com glória nem participará do Reino eterno. Porém, se conservardes o escudo da Fé, tereis o capacete e o elmo da salvação. Com essas armas podereis combater legitimamente os inimigos visíveis e invisíveis, pois disse o Apóstolo: “Só será coroado aquele que combater legitimamente.” É esta a Fé a que me refiro — relembra o Símbolo de Santo Atanásio.

    Se, pois, alguém sob o vosso domínio procurar dividir, diminuir ou aumentar essa Trindade Santa, ficai ciente de que é filho da heresia e não filho da Santa Igreja. Evitai, pois, seja alimentá-lo, seja defendê-lo, sob pena de parecerdes seu amigo e querer favorecê-lo, pois as pessoas dessa espécie contaminam os filhos da Santa Fé; sobretudo perderiam e corromperiam miseravelmente esse novo povo da Santa Igreja. Velai, acima de tudo, para que tal não aconteça.

    Primeira tarefa do rei: ser bom católico

    Santo Estêvão se refere a um Credo chamado “Símbolo de Santo Atanásio”, que se conserva até hoje na Igreja, contendo as principais verdades da Fé. Ele, então, deixa ao filho esse Credo e diz que contém a verdadeira Fé católica. Se alguém quiser acrescentar ou tirar algo desse Credo, seja maldito. Porque o acréscimo não será feito pela Igreja, mas por uma iniciativa puramente individual e contra o espírito da Esposa de Cristo. A sua redução é uma mutilação da obra da Igreja.

    Só quem pertence verdadeiramente à Igreja merece apoio do rei. Aquele que não é filho da Igreja, que não aceita o Credo católico, não deve ser apoiado pelo monarca; o rei não deve nem alimentá-lo, nem ajudá-lo em nada, mas sim isolá-lo e isolar-se dele, porque o herege contamina aquele que tem Fé. E seria uma tristeza que esse reino novo, nascido há pouco da Fé católica, se contaminasse com a heresia.

    E Santo Estêvão acrescenta que a primeira tarefa do rei é ser bom católico. A finalidade do reino é de ser um reino católico. E por causa disso o monarca, por cima de tudo, há de dar provas de que ele é um bom católico, respeitar os ministros do Altíssimo, amar o povo de Deus; ele deve ser o chefe deste povo de Deus na luta.

    Se for bom católico, continua Santo Estêvão, então ele terá glória como rei. Se for mau católico, não terá esta glória e vai acabar se perdendo, porque só tem salvação aquele que adota a verdadeira Fé católica.

    Procurar antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça

    Esse princípio é muito verdadeiro. Os países, como os indivíduos, têm obrigação de crer em Deus, servi-Lo e amá-Lo sobre todas as coisas. Um país é comparável a um indivíduo, pois constitui o que se chama uma pessoa jurídica. Essa pessoa tem as mesmas obrigações do indivíduo. Um país, coletivamente, o Estado, tem a obrigação de conhecer e professar a Fé católica. E assim como cada um de nós tem por principal missão nesta vida praticar a Fé e propagá-la, o Estado tem como primordial missão ser instrumento da Igreja para a difusão da Fé católica.

    Antes de cuidar de finanças, boa administração, diplomacia, exércitos, ou de qualquer outra coisa, o Estado deve tratar de, dentro de suas próprias fronteiras, servir a Igreja Católica, favorecer a influência dela por todos os meios que estejam ao alcance do poder temporal; e perseguir os inimigos da Igreja, ajudar os amigos dela, fazer com que todos os instrumentos do poder público sejam utilizáveis pela Igreja para influenciar o país.

    Se o Estado fizer isso, alcançará todas as outras coisas, pois se aplica a ele o mesmo que Nosso Senhor Jesus Cristo disse aos indivíduos: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo.”

    Quer dizer, se em algum lugar um rei faz todo o possível para servir a Igreja, ele terá realizado o resto; possuirá bons súditos e será amado por eles. O bom súdito é corajoso, leal, bom pagador de impostos, ordeiro, trabalhador, tem grandeza de alma, amor ao maravilhoso, idealismo, entusiasmo pelo sublime, produz uma grande cultura, uma grande civilização. A questão é ser bom católico.

    Se, pelo contrário, não é bom católico, não produz nada que preste.

    A verdadeira felicidade está muito mais nos bens da alma do que nos do corpo. E abaixo da virtude, o primeiro bem da alma é o equilíbrio mental. A prosperidade de quem não é católico, com desequilíbrios, maluqueiras, crimes, não é verdadeira prosperidade. É preciso procurar o Reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas serão dadas de acréscimo.

    Santo Estêvão e Santo Américo foram profundamente venerados pelos húngaros de todos os tempos que se seguiram a eles.

    Santo Estêvão recebeu uma coroa enviada pelo Papa, e que até hoje se venera na Hungria como sendo o símbolo do poder. E, com a coroa, foi outorgado pelo Sumo Pontífice a Santo Estêvão o título de Rex Apostolicus — Rei Apostólico —, porque ele tinha feito um tão magnífico apostolado, a Hungria estava de tal maneira como uma ponta-de-lança apostólica voltada para as nações bárbaras, a fim de convertê-las e jugulá-las, que mereceu este título. E com um privilégio que nenhum rei da Terra tinha: em toda parte onde ele fosse, podia ser precedido por um dignatário que levava diante dele a Cruz de Cristo. E era tão elevado esse título de Rei Apostólico, que os imperadores da Áustria, até o último deles, que também eram reis da Hungria, se chamavam “Vossa Majestade Imperial Apostólica”, porque o Rei Apostólico era o Rei da Hungria.

    O Estado existe para favorecer a Igreja

    O que é melhor para um rei: ter esse prestígio ou uma polícia supermoderna, com espias, com escutas, etc.? É evidente que esse prestígio vale mais do que todas as polícias. Significa dominar as almas, influenciar pelos corações. E quem destrói um poder espiritual? Ninguém.

    Dou uma prova lindíssima disso: houve um rei que, na Boêmia, teve o papel de Santo Estêvão na Hungria; foi São Venceslau. Até hoje a estátua de São Venceslau está no centro de Praga e não houve comunista que ousasse abatê-la. Os comunistas acabaram com tudo, fecharam as igrejas, e até prenderam o clero. Na estátua de São Venceslau ninguém tocou. E até hoje, quando há movimentos de protesto contra o regime comunista, a estátua de São Venceslau amanhece cheia de flores. É a marca deixada num povo por um rei que procurou antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça, e, por isso, todas as coisas lhe foram dadas por acréscimo.

    Quem me analisar encontrará no fundo de minhas concepções políticas esta ideia, esta doutrina católica de que o Estado existe, antes de tudo, para servir a Igreja e favorecer o Reino de Deus; e, quando ele realiza esta missão, torna-se grande em todos os sentidos e debaixo de todos os pontos de vista.

    (Extraído de conferência de 17/1/1970)

    1) Não possuímos referências bibliográficas da obra citada.
    2) Mt 6, 33.

  • São Pedro Julião Eymard e o amor apaixonado à Eucaristia

    “Para a glória de Deus é preciso ter uma paixão que nos domine a vida e produza os frutos necessários e desejados por Nosso Senhor. O amor só triunfa quando é em nós uma paixão vital, e esta deve ser ardentíssima em relação à Eucaristia. Pois, o que é o amor, senão o exagero?”

    Fervorosas palavras de amor eucarístico, brotadas dos lábios deste novo Elias que foi São Pedro Julião Eymard, fundador dos Sacramentinos. Com o fogo de sua alma interpela ele — num texto arrebatador comentado por Dr. Plinio — os “espíritos fortes” e “equilibrados” de sua época… e da nossa.

    Um santo do qual se poderia afirmar ser uma espécie de nova edição do Profeta Elias, pelo fogo de sua alma, é São Pedro Julião Eymard, fundador dos Sacramentinos. Celebrado pela Igreja no dia 2 de agosto, dele temos os seguintes dados biográficos:
    Nascido em 1881 na cidade de La Mure-d’Isére, foi artesão antes de entrar no Seminário maior. Sua família era pobre, e o pai de Pedro Julião opunha-se à vocação sacerdotal do filho. Uma primeira tentativa de chegar ao presbiterato redundou num fracasso devido a uma grave enfermidade. Sem desanimar, algum tempo depois entraria no Seminário de Grenoble, sendo ordenado sacerdote dessa diocese em 20 de julho de 1834, aos 23 anos de idade.
    O jansenismo que impregnava o mundo religioso da época, considerava o ser humano como pecador e indigno diante de um Deus transcendente e perfeito. O Padre Eymard, como seminarista e jovem sacerdote foi influenciado por essa espiritualidade de reparação e teve de lutar ao longo de toda a sua vida para encontrar da perfeição interior que o poderia tornar capaz de oferecer a Deus o dom de sua pessoa.

    Religioso marista e fundador dos sacramentinos

    Terá sido, provavelmente, essa procura da perfeição espiritual, aliada ao desejo de realizar importantes coisas por Deus, que o conduziram à vida religiosa. Em 20 de agosto de 1839 o Pe. Eymard tornou-se membro da Congregação Marista, fazendo profissão dos votos de pobreza, castidade e obediência.
    Excelente educador de jovens, São Pedro Julião Eymard distinguiu-se na congregação dos maristas como exímio organizador de associações leigas, formador devotado e um requisitado pregador, alcançando particular êxito em suas homilias sobre a devoção eucarística.
    Seu intenso amor ao Santíssimo Sacramento, aliás, motivou-o a escrever uma regra eucarística para a Ordem Terceira de Maria, da qual era o diretor. O Superior Geral não a julgou conveniente, mas a idéia de tal regra estava já inscrita no espírito e no coração do Pe. Eymard.
    Fascinado cada vez mais pela espiritualidade eucarística e convencido de sua necessidade para a salvação das almas, retirou-se, sem dificuldades, dos Maristas em 1856 e fundou diversas congregações: a dos Padres do Santíssimo Sacramento, das Servas do Santíssimo Sacramento, dos Padres da Adoração e a Pia União de leigos do Santíssimo Sacramento.

    Dom de si mesmo

    O Pe. Eymard passou pouco a pouco de uma espiritualidade de reparação para uma piedade centrada no amor de Cristo. Três anos antes de sua morte, fez um retiro em Roma onde se viu inteiramente subjugado pela força do amor de Deus em sua alma, sentindo que tão ardente caridade tomava posse inteira de sua pessoa.
    Aos 57 anos, após ter adorado fervorosamente seu Senhor sob o véu das espécies eucarísticas, foi enfim chamado a vê-Lo na plenitude da luz eterna. Era o dia 1º de agosto de 1868.
    Canonizado em 1962, as relíquias de São Pedro Julião Eymard são veneradas na Capela de Corpus Christi, da Congregação dos Padres do Santíssimo Sacramento, em Paris.

    Virtude abrasadora

    Trata-se, portanto, do fundador de uma ordem com uma finalidade admirável: a adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento. Ou seja, nas igrejas dos Sacramentinos, Nosso Senhor, sob a espécie eucarística, acha-se exposto continuamente à adoração dos fiéis, que afluem para render o tributo de sua devoção a Ele, seja durante o dia, seja nas horas silenciosas da noite. Assim, nas grandes e nas pequenas cidades, o Sagrado Coração de Jesus é venerado pelo menos por uma alma que ali está, ajoelhada diante d’Ele e Lhe fazendo companhia.
    Pois essa inestimável devoção é fruto da piedade eucarística de São Pedro Julião Eymard. Foi, na verdade, um homem de virtude abrasadora, e suas eloqüentes palavras sobre o amor sem limites que devemos render a Jesus Sacramentado constituem páginas maravilhosas da espiritualidade católica, dignas de serem analisadas.

    O amor: que é, senão o exagero?

    Afirma ele:
    A Eucaristia é a mais nobre inspiração do nosso coração. Amemo-la, pois, apaixonadamente. Dizem: mas é exagero tudo isso. Mas o que é o amor senão o exagero? Exagerar é ultrapassar além. Pois bem, o amor deve exagerar. Quem se limita ao que é absolutamente de seu dever, não ama. Nosso amor para ser uma paixão, deve sofrer a lei das paixões humanas. Falo das paixões honestas, naturalmente boas, pois as paixões são indiferentes em si mesmas. Nós as tornamos más, quando as dirigimos para o mal, mas só de nós depende utilizá-las para o bem.
    Sem uma paixão nada se alcança. A vida carece de objetivo, arrasta-se numa vida inútil.
    Nesta passagem, São Pedro Julião Eymard vai de encontro a uma concepção talvez generalizada no seu tempo, segundo a qual a verdade é uma posição responsável e adulta diante dos fatos, e exige a ausência de paixão. Ou seja, somente depois de se libertar de qualquer paixão é que o homem se torna capaz de ver, julgar e agir de modo acertado.
    Ora, ele sustenta que há paixões más e boas. Estas últimas, impulsionadas pelo bem, devem conduzir a alma ao extremo do amor a Deus. Então diz: “O que é o amor senão exagerar?”. O santo não afirma que a paixão é necessariamente um exagero, e sim que o amor, continuamente, vai além do que o ambiente no tempo dele qualificava de exagero. Portanto, este exagero deve ser entendido como que entre aspas: “O que é amar, senão fazer o que vocês entendem como exagero?”
    Seria, então, uma espécie de choque de São Pedro Julião Eymard contra essa lei do desapaixonamento, comum para o espírito dos seus contemporâneos.

    O homem desapaixonado é um mutilado

    E continua:
    Pois bem, na ordem da salvação é preciso também ter uma paixão que nos domina a vida, e a faça produzir para a glória de Deus todos os frutos que o Senhor espera.
    Faço notar o categórico dessa afirmação. Para que nos salvemos, é uma condição que tenhamos esse amor apaixonado. E ele corrobora, ademais, a sua tese de que para a glória de Deus é preciso ter uma paixão que nos domine a vida e produza os frutos necessários e desejados por Nosso Senhor. Portanto, essa produtividade total resulta da colaboração da paixão com as outras faculdades da alma. Isto é eminentemente humano.Os chineses da última época da monarquia tinham um hábito terrível de cortar as pontas dos pés para se equilibrarem nos seus diminutos tamancos. É algo assustador. Pois bem, ainda mais chocante é cortar uma faculdade da alma e viver sem ela. O homem desapaixonado é um mutilado.

    Palavras a serem gravadas com fogo na alma

    A seguir, ele escreve:
    Amai tal virtude, tal verdade, tal mistério apaixonadamente! Devotai vossas vidas, consagrai vossos pensamentos e trabalhos. Sem isso nada alcançareis jamais. Sereis apenas um assalariado e nunca uns heróis! Todo pensamento que não se termina em uma paixão, que não acaba por tornar-se uma paixão, nada de grande produzirá jamais.
    O amor não transfere a ninguém as suas obrigações. O amor tudo faz por si mesmo, é a sua glória.
    São afirmações esplêndidas, repassadas de veracidade. De fato, quando um católico não tem essa paixão, torna-se medíocre, preguiçoso, inerte. Desapaixonado, não produz coisa alguma. Pelo contrário, se for movido pela boa paixão, mesmo sem tempo, aceita trabalhos e obrigações, produzindo maravilhas.
    Para o homem sem paixão, todo tempo é pouco para nada fazer; enquanto o homem com paixão transforma qualquer minuto numa eternidade.
    Palavras de São Pedro Julião Eymard:
    Ai de nós, se o amor de Jesus no Santíssimo Sacramento não nos conquistar o coração. Jesus estará vencido. Nossa ingratidão será maior que sua bondade, nossa malícia mais poderosa que sua caridade. Oh, não, meu Salvador, vossa caridade me oprime, me atormenta e me constrange.
    Trata-se de um dito apaixonadíssimo, mas uma tomada de atitude lúcida, diante da realidade da frágil natureza humana decaída pelo pecado. Esta, a meu ver, seria uma frase a ser gravada com fogo nos corações, pelos rogos de Maria Santíssima, para fomentar neles esse necessário e ardente amor eucarístico.

    Amor apaixonado ao Santíssimo Sacramento

    Continua:
    Nosso Senhor quer estabelecer em nós o amor apaixonado por Ele. Toda virtude, todo pensamento que não acaba por tornar-se uma paixão, nada de grande produzirá jamais. Não é amor a afeição de uma criatura. Ela ama por instinto, porque se sente amada. O amor só triunfa quando é em nós uma paixão vital. Sem isso podem produzir-se atos isolados de amor, mais ou menos freqüentes, mas a vida não é tomada, não é dada.
    Ora, enquanto não tivermos por Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento um amor apaixonado, nada teremos feito.
    Ele insiste na idéia do amor infrutífero, se não for movido pela paixão boa.
    Parece-me interessante observar o profundo vínculo entre essa expressão de amor a Nosso Senhor Jesus Cristo sacramentado, nos lábios de São Pedro Julião Eymard, e a manifestação igualmente fervorosa de devoção à Santíssima Virgem, pregada por São Luís Grignion de Montfort. Os dois são movidos pelo mesmo estado temperamental, a mesma paixão, a mesma piedade. A Oração Abrasada, composta por São ­Luís Grignion, transmite sentimentos análogos aos que nos colhem ao lermos esse texto do santo fundador dos Sacramentinos.
    Essa relação estreita entre as duas devoções é algo magnífico. Ambas se baseiam em pensamentos que continuamente nos apaixonam. Assim como São Luís Grignion de Montfort desejava uma devoção ardente a Nossa Senhora, São Pedro Julião quer uma piedade apaixonada para com a Sagrada Eucaristia. Isto é fogo! Isto é uma alma eucarística, uma alma mariana.

    Não temer de ser arrastado pelo amor de Jesus Eucarístico

    E São Pedro Julião Eymard vai mais longe. Diz:
    Tende um amor apaixonado pela Eucaristia, amai Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento com todo ardor que se ama no mundo, mas por motivos sobrenaturais. Para consegui-lo, começareis por colocar vosso espírito sobre a influência desta paixão, alimentai em vós o espírito de Fé, e persuadi-vos da verdade da Eucaristia, da verdade do amor que Nosso Senhor nela vos testemunha. Tende uma grande idéia, uma contemplação arrebatada do amor e da presença de Nosso Senhor. Assim dareis a vosso amor o fogo que alimentará a chama, o vosso amor será então constante.
    Vede Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento, vede o seu amor, e que esse pensamento vos domine, vos arrebate. Por quê? Porque Nosso Senhor se abre a ponto de sempre se dar, sem jamais fatigar-se.
    Considerai os santos. Seu amor os transporta, abrasa, faz sofrer, é um fogo que os consome, despende suas forças e acaba por lhes causar a morte. Morte feliz. Mas se não chegarmos todos a este ponto, ao menos podemos amar apaixonadamente Nosso Senhor, deixando que nos domine por seu amor. Há pessoas que amam até a loucura os pais, os amigos, e não sabem amar o bom Deus. O que se faz com a criatura, é o que se deve fazer com Deus. Somente ao Bom Deus é preciso amá-Lo sem medida, cada vez mais.
    No juízo não serão tanto os nossos pecados que nos aterrorizarão, e nos serão censurados. Estão irrevogavelmente perdoados. Mas Nosso Senhor nos censurará por seu amor: ‘Criaturas, vós não fizestes de mim a felicidade de vossa vida?! Vós me amastes bastante para não me ofender mortalmente, mas não para viver de Mim?!’. Mas, poderíamos dizer: somos então obrigados a amar assim? Bem sei que o preceito de amar assim não se acha escrito. Não há necessidade. Nada o diz, tudo o clama! A lei está em nosso coração!
    Sim, o que me aterroriza é que os cristãos pensarão de boa vontade seriamente em todos os mistérios, e votar-se-ão ao culto de algum santo, e não a Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento. Por quê? Ah, porque não se pode considerar atentamente o Santíssimo Sacramento sem dizer: é preciso que eu O ame, que vá visitá-Lo, não posso deixá-Lo sozinho, Ele me ama demais!
    É um texto tão magnífico que as palavras nos fogem para comentá-lo. Comove-nos, cumula-nos de admiração e fervor. São Pedro Julião se exprime com a paixão que ele prega e recomenda. A lei desse amor está inscrita no seu próprio coração e ele a quer transmitir aos homens.
    A par disso, oferece uma explicação ao mesmo tempo teológica e psicológica da razão pela qual algumas almas não se entregam como deveriam a essa devoção extrema: evitam de ir aos pés do Santíssimo Sacramento porque O sabem por demais envolvente e arrebatador. Receiam que Ele as atraia e as arraste por seu amor. Então, como que contornam essa situação ao praticarem outros atos de piedade, dando-se ao culto exclusivo desse e daquele santo, em vez de praticar a perfeita adoração ao Coração Eucarístico de Jesus.
    Essas são almas que temem o exagero, contentam-se com algo menor porque temem que a graça as convide para a virtude apaixonada.

    Pedir a Nossa Senhora o fervor eucarístico d’Ela

    Cumpre concluir, então, que esses extraordinários pensamentos de São Pedro Julião Eymard devem produzir efeitos concretos em nossos corações, alimentando neles esse amor ardoroso à Sagrada Eucaristia.
    Procuremos refletir nessas considerações antes da Comunhão, não nos esquecendo de que Maria Santíssima é também medianeira na nossa devoção eucarística. Todas essas verdades consignadas no texto que acabamos de contemplar pulsavam no Coração Sapiencial e Imaculado d’Ela, com uma intensidade perto da qual o ardor de São Pedro Julião não é senão uma fagulha.
    Imaginemos Nossa Senhora no recinto onde seu Filho celebrou a primeira Missa e operou pela primeira vez na História a transubstanciação: como descrever os fulgores de amor e adoração que, naquele instante, inundaram a alma da Mãe de Deus? A caridade de todos os anjos reunidos empalideceria diante desse fervor.
    Pois então peçamos a Ela que nos conceda, por sua insondável misericórdia, algo do incomparável fogo eucarístico que A consumia.

  • O inestimável tesouro da oração

    o dia 1º de agosto a liturgia católica festeja Santo Afonso Maria de Ligório, Fundador dos Padres Redentoristas, Doutor da Igreja e autor de renomadas obras sobre moral, muitas voltadas  especialmente para a orientação de Confessores. Entre as que dedicou ao comum dos fiéis, há uma admirável — “A Oração, o grande meio da salvação” —, apreciada de modo particular por Dr.  Plinio, que, nos idos de 1957, acerca dela teceu diversos e luminosos comentários.

     

    Ao tratar da oração, Santo Afonso de Ligório não o faz à maneira de um teólogo que ensinará a respeito dela tudo quanto é possível. Ele escreve como diretor de consciências, mostrando o precioso proveito a se tirar da oração na vida espiritual.

    Acompanhando seu ensinamento, vemo-lo constantemente em face de uma determinada situação espiritual, não enunciada, mas que devemos conhecer com toda a clareza. É o que poderíamos  chamar o encalhe.

    Com efeito, na vida de piedade existe o encalhe e, depois, o desencalhe. Sabe-se bem o que significa encalhar. Por exemplo, um automóvel encalha quando encontra qualquer obstáculo que o  impede de andar, ou  quando sofre algum tipo de avaria interna, falta de combustível, etc.

    A idolatria na Antiguidade, um “encalhe”

    Inúmeras almas encalham na vida espiritual, em qualquer estágio dela, às vezes de um modo completo, e até aparentemente irremediável. O mais prodigioso exemplo de encalhe espiritual  verificou-se, a meu ver, com a idolatria nos povos antigos.

    O célebre pregador francês Bossuet, ao se referir à situação do mundo naquele período, invectiva a crença idólatra como um defeito grosseiro e um erro evidente praticado por aquelas populações.  Os antigos estavam profundamente aferrados a esse erro, não obstante possuírem muitos deles uma inteligência privilegiada, como os gregos e os romanos.

    Não que a razão humana não fosse bastante forte para perceber o erro da idolatria. Prova-o as diversas vozes discordantes dela, entre as quais Sócrates, Aristóteles e Platão. Contudo, esses três  homens, dos mais inteligentes de todos os tempos, falando para um povo também dos mais sábios do mundo, renunciaram a abolir esse mal, por considerar que o povo estava encalhado na  idolatria.

    Isso é o que notamos no encalhe da vida espiritual: há todas as possibilidades para se ver o erro em que se caiu, mas as pessoas estão enraigadas no apego a ele. Não existem argumentos nem  recursos que obtenham resultados, por causa de um ponto encalhado.

    Em contrapartida, o cristianismo é o exemplo do maior desencalhe da História. Depois da vinda de Nosso Senhor, homens menos inteligentes, dirigindo-se a povos por vezes menos favorecidos no tocante à inteligência, lograram vencer com facilidade a idolatria. De modo repentino, porque entrou um fator novo diferente de todos os anteriores, eles desencalharam.

    Temos então, na idolatria e no cristianismo, casos coletivos de encalhe e desencalhe. Características do “encalhe” espiritual O que propriamente caracteriza um encalhado na vida espiritual é o fato  de ele se recusar a sair do erro em que se encontra preso. Alguém pode ter um defeito, mas se empenha na atitude de o deixar, acatando os conselhos que lhe dão nesse sentido.

    Este inidvíduo não deve ser tido como um encalhado.

    Pelo contrário, a vítima do encalhe é aquela que toma em relação ao seu defeito um apego tal que não quer abrir mão dele, apesar de todas as admoestações e orientações que receba. Esse defeito  não será, necessariamente, um pecado mortal. É uma falta venial ou uma mera imperfeição. Mas, à medida que a pessoa não quer renunciar àquele ponto, ela estagna. Por isso a vida espiritual é  semelhante a uma montanha em cuja encosta se pode encalhar, a qualquer altura. Há quem pare num ponto muito elevado dela. Não raro, quanto maior a altitude alcançada, tanto menor a  bagatela pela qual se fica preso.

    Dir-se-ia existir uma espécie de enfermidade das alturas, pois o indivíduo que não se deixou encalhar por medo de leões, detém-se por causa de uma borboleta. É uma forma de vertigem na vida espiritual, um tremendo complexo contra o qual é preciso se defender com dez mil cuidados.

    Às vezes, uma pessoa que renunciou a tudo julga-se muito engraçada e se toma de apego pelos gracejos que prodigaliza. Noutros casos, o homem se apega ao que não tem. Por exemplo, um grande jurista com mania de ser poeta, tem pouco ou nenhum apego por seu saber jurídico, mas vive com receios de que não o reconheçam como autor de versos inspirados.Nasce daí a vaidade, vem o
    encalhe…

    O salutar e valioso remédio da oração

    Posto, então, diante desse problema que se apresenta na vida espiritual de incontáveis almas, Santo Afonso faz uma afirmação bem característica no começo do seu livro, indicando um elemento  para a sua solução. Escreve  ele: Vejo que os cristãos pouco  cuidam de empregar este grande meio de salvação [que é a oração]. E, o que ainda mais me aflige…. é ver que os pregadores e  confessores tampouco recomendam a oração a seus ouvintes e penitentes. E mesmo os livros espirituais que hoje em dia correm pelas mãos dos fiéis não tratam suficientemente desse assunto,  quando é certo que todos os pregadores e confessores e todos os livros outra coisa não deveriam incutir, com mais empenho e afinco, do que a necessidade de orar. Ensinam eles às almas tantos  meios de se conservar na graça de Deus, como fugir das ocasiões, frequentar os sacramentos, resistir às tentações, ouvir a palavra de Deus, meditar as máximas eternas e outros meios. Todos eles  são certamente utilíssimos, mas, digo eu, de que valem as prédicas, as meditações e todos os outros meios aconselhados pelos mestres espirituais, se falta a oração, quando é certo que o Senhor diz  não conceder graças senão a quem pedir? “Petite et accipietis: Pedi e recebereis”.

    Sem a oração (falando segundo a providência ordinária) serão inúteis todas as meditações que se fazem, todos os propósitos e todas as promessas. Se não orarmos, seremos sempre infiéis a todas  as luzes d’Ele recebidas e a todas as nossas promessas. (…) Eu quisera, caro leitor, antes de tudo  que vou escrever aqui, explicar este meu sentimento, para que agradeçais ao Senhor, o qual, por  meio deste meu livrinho, dá a graça de fazer a oração com maior entendimento e conhecimento deste grande meio de salvação que temos, pois todos os que se salvam, falando dos adultos,  ordinariamente se salvam por este único meio.¹

    A oração é, portanto, o mais seguro caminho que nos conduz à salvação. E o primeiro fundamento para compreendermos este valor da oração, no plano da Providência, é considerar como Deus  deseja ser, Ele mesmo, o nosso Cireneu. Com efeito, Nosso Senhor Jesus  Cristo aceitou sofrimentos superabundantes para nos salvar na Cruz.

    Mas, Ele quis dar ao homem a possibilidade de se associar a esses padecimentos, completando o que era necessário por meio do sacrifício de cada um. É o papel da expiação que forma o tesouro  da Igreja, Corpo místico de Cristo. Assim, se Deus quis que fôssemos os cireneus d’Ele, também quer ser o nosso divino Cireneu.

    Ele não é, portanto, um estranho na nossa vida. Ele, fonte de toda a consolação, quer entrar em nossa existência pessoal, tomando parte nela a pedido nosso, ajudando-nos, tanto em nossas  necessidades espirituais quanto nas terrenas. Seria mesmo compreensível que alguém fizesse uma imagem de um homem carregando a cruz, auxiliado por Nosso Senhor, como outro Simão  Cireneu.

    Sim, Ele é um Cireneu que nunca nos abandona. E se nalgum momento deixa a Cruz pesar em nossos ombros, é para nosso bem, a fim de que alcancemos méritos e frutos para o Céu. Devemos,  pois, nos compenetrar dessa confortadora verdade: Deus é o nosso Cireneu infinitamente afável, infinitamente misericordioso, disposto a nos socorrer e amparar sempre. Para isso, basta o nosso  pedido, ou seja, a nossa oração.

    Preparar o espírito, antes da oração

    E como fazer para adquirir o valioso hábito da oração? Antes de rezarmos é preciso preparar o espírito, colocando-o diante das verdades que fazem com que nossa prece tenha alimento, do  contrário será completamente mecanizada. Então, um ponto de nosso exame de consciência seria preguntar se preparamos o nosso espírito para a oração, considerando os motivos pelos quais se reza bem. Por exemplo, tendo presente que Deus sabe como nos modificar e tem a força para fazê-lo.

    Que Ele nos transformará, desde que peçamos. E que a condição para o nosso pedido ser atendido é a importunidade, virtude evangélica tão recomendada por Nosso Senhor:  Se algum de vós tiver um amigo, e for ter com ele à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, porque um meu amigo acaba de chegar à minha casa de viagem e não tenho nada  que lhe dar; e ele, respondendo lá de dentro, disser: Não me sejas importuno, a porta já está fechada, os meus filhos estão deitados comigo; não me posso levantar para te dar coisa alguma.

    Se o outro perseverar em bater, digo-vos que, ainda que ele se não levantasse a dar-lhos, por ser amigo, certamente pela sua importunação se levantará e lhe dará quantos pães precisar (Lc 11,5-8).

    Esta é a imagem d’Ele mesmo, querendo ser importunado e pedindo de nós, não o que alguns dizem: “reze pouco, mas reze bem”, mas o contrário: “reze como puder e reze muito, seja maçante,  reclame, e se Deus demorar em atender, peça ainda mais, porque Ele acabará atendendo com uma generosidade maior!”

    Ora, se eu, antes de rezar, lembro-me bem que Nosso Senhor quer e sabe como me curar, e que a condição é ser importuno, eu preciso pedir muito. E fazê-lo por meio de Nossa Senhora, pois  através d’Ela realmente obtemos tudo.

    Deus deseja nos fazer o bem

    Além disso, é muito proveitoso tomarmos os trechos do Evangelho a respeito da oração — Nosso Senhor a ela se refere inúmeras vezes — e analisá- los sob o seguinte ponto de vista: o desejo de  Deus de nos fazer bem. O próprio fato de Nosso Senhor nos ensinar a rezar o Padre Nosso é a prova de que Ele nos quer conceder tudo quanto está dito ali. Senão, seria da parte de Deus uma  aberrante contradição.

    Imaginemos um rei que dissesse: — Plinio, se você quiser obter graças de mim, reze de acordo com esta fórmula…  Se eu não fizer uso dela, o rei poderá ficar zangado comigo e pensar: “Esse homem me está tomando como palhaço, porque se eu lhe forneço um modo de obter aquilo que ele quer, deve admitir que darei mesmo, se ele pedir.” A parábola do Bom Pastor encerra um  tocante ensinamento a esse respeito: a ovelha está toda emaranhada, numa posição em que não pode se mexer mais. E o Bom Pastor toma a iniciativa de tirá-la da má situação na qual se encontra.

    É bem a imagem de Deus, pegando a alma escangalhada, arrebentada, colhendo-a e conduzindo-a. O Bom Samaritano também faz isso com o homem que está à beira da estrada todo ferido. Ele  pára e o socorre. Pois de igual maneira procede Deus conosco. Estarei eu, então, fazendo a minha meditação do Evangelho orientada neste sentido? Não é o caso de incluir este ponto no meu exame de consciência? Por outro lado, cumpre lembrar  que, ao atender as nossas orações, Deus nos faz um imenso favor. Mas, Ele faz também uma ação que O glorifica  e, portanto, temos toda a razão de achar que, movido pelo amor de Si mesmo, Ele encontrará motivos para nos ser favorável.

    Importa pedir sempre, e pedir muito

    Seguindo a linha de seu ensinamento, Santo Afonso cita alguns trechos interessantes do Evangelho que provam a necessidade de pedirmos para  recebermos. O primeiro é uma promessa de Nosso Senhor, exposta em São João (16, 24): “Pedi e recebereis”. Noutro passo: “Pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á concedido” (Jo 15, 7). Num terceiro se afirma: “Todo o que pede recebe, e o que busca acha” (Lc 11, 10). E ainda: “Se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la dará” (Jo 16, 24).

    Santo Afonso insiste para que vejamos a estrutura dessas frases e a natureza de suas promessas.  “Pedi e recebereis”. É uma verdadeira condicional. Devemos pedir, do contrário não recebemos. É  como  quem diz: “preencha a condição, e eu faço”. E não está escrito que apenas o homem bom, justo, casto ou puro recebe o que pede, mas simplesmente: “quem pede, recebe”! É difícil haver afirmação mais incisiva que esta. “Pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á dado”. Excetuando os pedidos que não forem para o nosso bem, tudo quanto rogarmos, ser-nosá concedido. Que  palavras poderiam ser usadas para afirmar isto com mais clareza?

    Portanto, a promessa está formulada de um modo límpido e preciso. O mal está em não nos convencermos  disto, não sabendo manejar a oração como deveríamos. Ademais, Nosso Senhor não  especifica o pedido. Portanto, podemos solicitar tudo o que quisermos, até mesmo os bens materiais, desde que estes não ofendam a Deus. E se o pedido não convier, Ele não dará o que rogamos, porém nos compensará com algo melhor. Dessa maneira, acabaremos  alcançando o que desejamos.

    Nesses dias difíceis em que vivemos, semeados de problemas, tenho certeza de que se rezássemos jaculatórias para cada necessidade, mesmo temporal, implorando a Nossa Senhora que nos  facilite isto, que nos simplifique aquilo, etc., conseguiríamos muitas coisas. Com o desgaste que as dificuldades da vida moderna causa nos temperamentos, e os problemas que podem acarretar  para a vida espiritual, esse gênero de pedido é altamente recomendável.

    Tanto mais quanto a linguagem de Nosso Senhor é claríssima. As mesmas regras do Evangelho em virtude das quais acreditamos que, tendo Ele dito “isto é meu corpo”, opera-se a transubstanciação quando o sacerdote consagra as espécies, levam-nos também a crer que tendo Ele dito: “Pedi e recebereis”, de fato receberemos, se pedirmos.

    Outra frase típica nesse sentido: “Todo o que pede, recebe; e o que busca, acha”. Ora, eu sou um que pede; logo, recebo. Eu sou um que busca; logo, acho. Naturalmente pode demorar, levar mais  tempo ou menos, mas a promessa de Nosso Senhor permanece imutável. Às vezes, no nosso apostolado precisamos de algo que não temos, e desanimamos. Peçamos! Rogando, obteremos. E se  não for o que necessitamos, será algo melhor. Nunca se perde por pedir.

    Como a vida seria mais fácil e mais suave se nos compenetrássemos desse valor da oração! Ela é, verdadeiramente, um cetro posto em nossas mãos. A bem dizer, governamos os acontecimentos  com a prece humilde e persistente. Se nós não tomamos a sério estes ensinamentos, por falta de espírito de fé, privamos de tesouros inestimáveis a Igreja.

    A via régia da vida espiritual

    Consideremos, ainda, esta outra promessa de Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes a meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vo-la dará” (Jo 16, 23). Santo Agostinho diz que a expressão “em verdade, em verdade” é uma espécie de juramento. De tal maneira quis Nosso Senhor acentuar o sentido exato das suas palavras, que chegou a usar esta frase: “Em verdade, em verdade Eu vos digo…”. Ou seja, “Eu vos juro: se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la dará”.

    Assim, dificilmente haverá melhor oração do que esta: “Padre Eterno, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo eu vos peço: lembrai-Vos das promessas de vosso Filho e concedei-me essa graça de  que necessito”.

    Compreende-se que talvez não seja fácil nos compenetrarmos deste inestimável valor da oração, e de nos colocarmos nesta perspectiva. Nosso Senhor, a Sabedoria infinita, compreende essa nossa  deficiência melhor do que nós mesmos. A prova está na insistência d’Ele, pois encontramos inúmeras promessas do gênero nas Sagradas Escrituras. Ele sabe não terem os homens muita  propensão para se humilharem e pedir com perseverança. Diversas razões os desviam dessa atitude tão necessária: o desejo de fazerem as coisas pessoalmente, de escalar o Céu por seu esforço  próprio e não pela graça de Deus; por não quererem acreditar nos juramentos e nas misericórdias de Nosso Senhor em nosso benefício, enfim, por misérias de toda ordem.

    Mas, note-se bem, é este o principal ponto de batalha da vida espiritual. Se a pessoa de fato pedir a graça de se compenetrar das verdades acima consideradas — e é preciso implorar essa graça, não  basta fazermos um exercício mental de compenetração — Nossa Senhora nos alcançará tudo. Quanto a isto não se pode ter dúvidas. Esta é a via régia da vida espiritual.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • São Pedro Julião Eymard

    São Pedro Julião Eymard foi um homem de uma virtude abrasadora, uma espécie de nova edição do Profeta Elias, pelo fogo de sua alma.

    O católico ideal é um católico de fogo. E o sacerdote só é verdadeiramente digno deste título quando possui uma alma de fogo. Por isso, os bons sacerdotes são os que têm almas de fogo, como São Pedro Julião Eymard. O sacerdote deve ser aquele que puxa todos para a frente, que está na primeira fila.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/4/1993 e 2/8/1995)

  • São Pedro Julião Eymard

    São Pedro Julião Eymard, glorioso fundador da Congregação dos sacramentinos, foi em tudo um sacerdote digno desse nome. Varão com alma de fogo, levava até o fim suas santas aspirações,  convicções e princípios. Soube compreender que, revestido da unção sacerdotal, tinha de estar na primeira fila, no primeiro lugar, atraindo e levando todos para a frente, para a perfeição nas vias  do bem. Por isso recomendava a seus fiéis:

    “Na ordem da salvação, é preciso ter também uma paixão que nos domine a vida e a faça produzir, para a glória de Deus, todos os frutos que o Senhor espera. Amai tal virtude, tal verdade, tal  mistério apaixonadamente. Devotai-lhe a vossa vida, consagrai-lhe os vossos pensamentos e trabalhos; sem isso, nada alcançareis jamais. Sereis apenas um assalariado, nunca um herói. Dizem: “É  exagero tudo isso”. Mas, que é o amor, senão exagero?  Exagerar é ultrapassar a lei. Pois bem, o amor deve exagerar!”

    [São Pedro Julião Eymard, O Santíssimo Sacramento]

  • Santo Afonso Maria de Ligório um modelo de perseverança

    Quando contemplamos um céu estrelado, extasiamo-nos com as miríades de astros a cintilarem nas etéreas vastidões. Entretanto, outra constelação há, ainda mais bela e reluzente que a fixada no firmamento: são os Santos da Igreja Católica, fulgurantes exemplos para todos os fiéis . Um desses grandes luminares do cristianismo é Santo Afonso Maria de Ligório, cuja vida edificante e heróica Dr. Plinio aqui faz brilhar aos nossos olhos.

    No dia 1º de agosto se comemora a festa de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo, Confessor e Doutor da Igreja. Fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, é o tratadista por excelência da moral católica, e se destacou por sua profunda devoção a Nossa Senhora, em louvor da qual escreveu uma de suas mais belas obras, as Glórias de Maria. Dele temos essa síntese biográfica, escrita por Dom Guéranger:

    Afonso Maria de Ligório nasceu de pais nobres, em Nápoles, a 27 de setembro de 1696. Sua juventude foi piedosa, estudiosa e caritativa. Aos 17 anos ele era doutor em direito civil e canônico. E começava pouco depois uma brilhante carreira de advogado. Mas nem seu sucesso, nem as instâncias de seu pai, que o queria casado, o impediram de deixar o mundo. Diante do altar de Nossa Senhora, fez o voto de se tornar sacerdote. Ordenado padre em 1726, consagrou-se à pregação. Em 1729, uma epidemia permitiu-lhe que se dedicasse aos doentes em Nápoles. Pouco depois retirou-se, com companheiros, a Santa Maria dos Montes, e com eles se preparou para a evangelização dos campos.

    Em 1732, estabeleceu a Congregação do Santíssimo Redentor, que lhe deveria acarretar numerosas dificuldades e perseguições. Mas enfim os postulantes afluíram e o instituto se expandiu rapidamente. Em 1762 foi nomeado Bispo de Santa Ágata dos Godos, perto de Nápoles. Empreendeu ato contínuo a visita à sua diocese, pregando em todas as paróquias e reformando o clero. Ele continuava a dirigir seu Instituto e o das religiosas que tinha fundado para servir de apoio, por sua oração contemplativa, a seus filhos missionários.

    Em 1765, demitiu-se do ministério episcopal e voltou a viver entre seus filhos. Dentro em pouco uma cisão se produziu no Instituto dos Redentoristas, e Santo Afonso se viu expulso de sua própria família religiosa. A provação foi muito grande, mas ele não perdeu a coragem e predisse mesmo que a unidade se restabeleceria depois de sua morte. Às suas doenças se acrescentaram sofrimentos morais que lhe causaram longas crises de escrúpulos e diversas tentações. Porém, seu amor a Deus não fez senão crescer.

    Enfim, no dia 1º de agosto de 1787, entregou sua alma ao Senhor, na hora em que os sinos tocavam o Ângelus. Gregório XVI o inscreveu no catálogo dos Santos em 1839, e Pio IX o declarou Doutor da Igreja.

    No meio de uma situação eminente, o túnel escuro

    Pela descrição acima, percebe-se que a trajetória terrena de Santo Afonso teve um determinado momento comparável a um túnel escuro, por onde ele foi obrigado a passar. Não se trata de uma provação ou sofrimento, mas de uma espécie de desengano pelo qual tudo quanto ele podia humanamente considerar como dando significado à sua vida, parecia ruir. Ele se tornava privado de qualquer dom, vantagem ou bem que não fosse a pura graça de Deus, atuando de um modo provavelmente insensível no interior de sua alma.

    Era um advogado brilhante, dotado de invulgar inteligência, nascido de família nobre, que abandonou uma situação humana auspiciosa e capaz de lhe favorecer a carreira e as ambições, para se dedicar apenas ao sacerdócio. Num passo seguinte, constitui uma congregação religiosa. Esse instituto floresce, e seu fundador se torna um homem bem visto pela Santa Sé. Escreve ótimos livros, difundidos por toda a Europa, e é aclamado como um mestre de grande peso na vida intelectual católica de seu tempo. Pouco depois é elevado ao episcopado.

    Sem dúvida, uma situação eminente, com todos os aspectos de uma vocação bem sucedida: como padre, se fez religioso; como religioso, fundador e superior geral; além disso, com a honra do episcopado, percebendo que o bom odor de sua doutrina perfumava a Europa inteira. Dir-se-ia, pois, que os anseios pelos quais se ordenara haviam se realizado, e a sua vida tinha atingido o objetivo desejado pela Providência. Nesse apogeu, ele poderia morrer e dizer a Deus, parafraseando São Paulo: “Combati o bom combate, dai-me agora o prêmio de vossa glória!”

    Ora, no momento em que tudo isso parecia alcançado, uma catástrofe. Bispo resignatário, doutor e moralista, superior geral da congregação religiosa que fundara, Santo Afonso é dela expulso por causa de intrigas, mal entendidos e informações erradas. Imagine-se o que representa para um fundador, ser despedido de sua instituição pela Santa Sé, vendo-se de um momento para outro sem recursos e sem meios de subsistência!

    Destino das almas amadas pela Providência

    Acrescente-se a esse revés outra provação: começam a lhe atormentar as doenças, que o acometeram até fim da vida. Entre elas, uma febre reumática que o paralisou por certo tempo e lhe afetou a posição do pescoço, impedindo o de permanecer ereto. Passou a viver com a cabeça inclinada, atitude esta refletida em alguns retratos que dele fizeram. Além das enfermidades, sobrevieram escrúpulos, tentações fortíssimas, inclusive contra a pureza e contra a Fé. Tudo se acumulando num homem alquebrado dessa forma.

    Porém, era este exatamente o prêmio máximo para coroar a sua existência. Era a crucifixão depois de um longo apostolado e uma incansável ação em benefício do próximo.

    Assim age, o mais das vezes, a Providência em relação às almas que Ela ama. São certas situações em que todos os infortúnios se congregam e há uma espécie de crepúsculo geral. Depois, a alma purificada, lavada pelo sofrimento, volta a gozar da graça de Deus. Então ela respira, sente-se outra, transformada.

    Naturalmente, essa foi a última nota da santificação, o derradeiro esforço que Nosso Senhor exigiu de Santo Afonso de Ligório.

    Lutas contra o jansenismo

    Cumpre dizer que grande parte das perseguições sofridas por Santo Afonso foram motivadas pelo jansenismo que grassava no seu tempo, e ao qual ele se opunha com zelo e vigor intensos. A corrente jansenista, a pretexto de severidade, acabava inculcando os preceitos morais tão erradamente que a pessoa desanimava de se salvar, pois afinal de contas não podia cumprir aquela moral de fariseus, como eles a apresentavam.

    O ponto mais desconcertante defendido pelo jansenismo dizia respeito à doutrina da predestinação. Segundo esta, o homem deveria cumprir aquela moral tremendamente severa, pairando sobre ele o olhar propenso à irritação e à vingança de um Deus, cuja santidade consistia apenas em estar à espera do pecado para infligir o castigo.

    De outro lado, entretanto, afirmavam os jansenistas que o Céu e o inferno não são dados aos homens em razão de suas boas ou más obras, porque Deus predestina para este ou aquele quem entende. De maneira que a pessoa pode passar a vida inteira pecando e ir para o Céu, ou praticando bons atos e cair no inferno, conforme o desejo divino.

    Ora, sendo assim, fácil é compreender como os homens perdiam completamente o alento para praticar a virtude e também o motivo para não cair no vício. Pois, em última análise, se eu acabo condenado embora passe a vida inteira realizando atos de virtude, em suma não sou livre de fazer ou não fazer algo, porque é Deus quem resolve e não eu. Então, para que me esforçar em levar uma vida santa?

    No fundo, era uma pregação da imoralidade. Por causa disso, segundo muitos vislumbres históricos, os jansenistas tinham suas falsidades ocultas. Por exemplo, jejua-vam amiúde, mas eram grandes gastrônomos. E uma das omeletes reputadas por mais saborosas no tempo era chamada de La Janseniste, com a qual eles se regalavam escondidos durante seus “jejuns”.

    Não bastassem esses desvios, os jansenistas atacavam ainda as devoções mais elevadas e recomendáveis como, por exemplo, o culto ao Sagrado Coração de Jesus. Conta-se mesmo o caso de certo Bispo de Pistoia, Scipione de’ Ricci, que mandou pintar em sua residência um quadro representando uma devota lançando ao fogo a estampa do Sagrado Coração de Jesus, como se fosse objeto supersticioso, enquanto ele, Ricci, segura a cruz e o cálice com a Eucaristia, símbolos da autêntica piedade (como a entendiam).

    Essa recusa se explica pelo fato de a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ser, de algum modo, o antijansenismo. Ela inculca a bondade, a misericórdia, a paciência do Salvador, e demonstra a verdade de que o homem, por meio de suas boas obras, pode agradar a Deus e alcançar a salvação. Manifesta, outrossim, que nosso Deus justo é repleto de amor, e não um tirano arbitrário, um implacável cobrador de impostos em relação à humanidade. Compreende-se, portanto, que em face dessa corrente jansenista Santo Afonso Maria de Ligório tenha tomado uma posição muito enérgica nas suas obras de moral. E que haja sofrido, em conseqüência, toda sorte de ataques e perseguições de seus oponentes, chegando ao auge dos reveses e infortúnios acima mencionados.

    Lição de vida para os católicos

    Devemos considerar nessa existência de Santo Afonso, laboriosa, semeada de provações mas coroada pelo triunfo da virtude, uma lição de confiança e de perseverança para todos nós. Nos piores momentos das tentações, nas dores e enfermidades, nas rudezas das perseguições, quando os seus mais próximos lhe infligiram cruéis dissabores, ele jamais desanimou, nunca flectiu no seu desejo de alcançar a santidade, crescendo em piedade e devoção à medida que avultavam os sofrimentos.

    Vem a propósito recordar aqui um pequeno episódio do fim da vida dele, quando já não podia transitar por si próprio, sendo conduzido em cadeira de rodas por um irmão leigo redentorista. Então passeavam pelo convento, percorrendo os jardins e os pátios internos, enquanto fa-ziam suas orações. Mais de uma vez aconteceu de Santo Afonso perguntar ao seu companheiro:

    — Irmão, já rezamos tal Mistério do Rosário?

    O bom discípulo, igualmente alquebrado pela idade, não se recordava ao certo, e respondia:

    — Sr. Bispo, não me lembro muito bem, mas acredi-to que sim. Em todo o caso, já rezamos tantos terços, que Nossa Senhora não se importará se não tivermos con-templado tal ou tal outro Mistério…

    E Santo Afonso replicava:

    — Oh! Meu caro Irmão, isso não! Se eu passar um dia sem recitar o Rosário completo, posso perder a minha alma!

    Essa é a constância, a coragem, o ânimo perseverante de um Santo sobre o qual se abateram todas as tempestades. Ora, o que se deu com ele, pode suceder na vida de qualquer um de nós. Quantas vezes já não teremos passado por aflições e reveses semelhantes aos que ator-mentaram Santo Afonso?! E, não raro, trazendo consigo a impressão de um desabamento, de algo que ruiu por terra, de um caminho intransponível.

    Entretanto, após um período curto ou longo de agruras, surge mais luz, mais amparo, outras vitórias, outras alegrias. E assim, com sucessões de túneis e de estradas largas, Nossa Senhora vai nos conduzindo para realizarmos os desígnios d’Ela e de seu Divino Filho a nosso respeito.

    Imitemos, pois, Santo Afonso na sua perseverança, na sua confiança humilde e profunda, compreendendo que em nossa vida espiritual haveremos de nos deparar com túneis escuros, sem termos de nos aterrorizar com eles. Para além dessa escuridão, a Providência nos traça uma via ainda mais luminosa e mais bela que a anterior.

    Essas são algumas reflexões que nos sugerem a extraordinária e edificante existência de Santo Afonso de Ligório.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • São Germano de Auxèrre – Apóstolo da Gália, da Itália e Grã Bretanha

    Ao comentar alguns significativos episódios da vida de São Germano de Auxèrre, Dr. Plinio analisa os diversos aspectos da manifestação da graça de Deus através dos tempos, como resposta d’Ele a uma receptividade mais generosa da parte dos homens — ontem, hoje e, sobretudo, no Reino de Maria, essa época vindoura que há de ser favorecida por uma especial refulgência dos dons  divinos.

     

    A respeito de São Germano de Auxèrre, cuja festa se celebra em 31 de julho, temos a seguinte nota biográfica: “Nascido no século V, foi ele uma das figuras extraordinárias de bispos dos primeiros séculos da conversão da Europa. Antes de receber a vocação episcopal, tinha sido duque de Auxèrre e general das tropas dessa província; estudou letras e jurisprudência nas Gálias (região da qual  fazia parte a atual França) e em Roma. Casou-se com uma jovem tão nobre e tão rica quanto ele.

    Santo de majestosa fisionomia

    “Entretanto, o Bispo de Auxèrre, pressentindo sua morte, recebeu de Deus a revelação de que Germano deveria ser seu sucessor. Assim, pedindo permissão a seus superiores, convidou Germano  para ir à catedral e ali cortou-lhe os cabelos, revestiu-o com um traje especial que, segundo o costume da época, o distinguia como clérigo. Após algumas acerbas resistências, acabou assumindo o cargo. Como sacerdote e bispo, transformou-se completamente, sendo um exemplo para todos. Em obediência a uma ordem do Papa, partiu para a Grã-Bretanha a fim de combater o  pelagianismo.

    Ao passar por Paris, discerniu no meio da multidão Santa Genoveva e profetizou o futuro da jovem.

    “Sua vida decorreu em meio a milagres, realizando grandes trabalhos apostólicos. É conhecida  sua intervenção a favor dos bretões, tornando-os vitoriosos numa batalha contra os ingleses. Combateu tenazmente os adeptos de Pelágio. Certa ocasião, dirigindo-se a Ravena (Itália), logo após atravessar os Alpes, vestiu-se pobremente para não ser reconhecido.

    Chegando a Milão, entrou na catedral num dia de festa, como anônimo. Porém, um possesso começou a gritar no meio dos fiéis: ‘Germano! Por que viestes nos procurar na Itália?! Contenta-te em  nos expulsar das Gálias e de nos ter vencido com tuas preces!’. Admirado, o povo acabou reconhecendo o Santo, pela majestade de sua fisionomia. “São Germano era muito estimado por São Pedro  Crisólogo e pela Imperatriz Gala Placídia, para a qual, certo dia, enviou um pedaço de pão numa bandeja de madeira. A soberana recebeu o presente cheia de respeito, mandou colocar a bandeja num relicário de ouro e guardou o pão a fim de utilizá-lo como remédio para suas enfermidades. Faleceu São Germano em 448, e o quarto onde seu corpo era velado regurgitava de  grandes personagens, que disputavam suas relíquias.”

    Uma revelação e um corte de cabelo…

    Por esses dados podemos notar uma constante a ser analisada: a diferença profunda entre o modo como as pessoas daquele tempo consideravam as coisas e como o fazem as de hoje. Havia, então, uma mescla de barbárie e espírito rudimentar com sentimentos, disposições de alma extraordinárias e intervenções sobrenaturais sublimes.

    Germano era duque de Auxèrre, província situada na importante Borgonha. Atualmente, o título de duque é apenas honorífico, pelo qual alguém se distingue dos demais por um cartão de visita e  algumas atenções num salão. Mas naquele tempo significava possuir o governo vitalício e hereditário de um grande território, uma pessoa com quem o monarca deveria contar para exercer a realeza. O duque era um pequeno rei no local onde tinha seu ducado.

    Ora, o bispo daquele lugar, Amator, prevendo sua morte próxima, recebeu a revelação para designar o duque Germano como seu sucessor. O prelado não duvidou da inspiração da graça divina,  mas sim de que o duque aceitasse.

    Mandou então chamá-lo à catedral e ali cortou-lhe o cabelo. Como um homem repleto de senhorio, autoridade e poder permitiu que agissem dessa forma com ele? Importa salientar que naquela época os homens usavam cabelos até os ombros, ou mesmo caindo pelas costas. E a cabeleira longa não era apenas um sinal distintivo dos nobres, mas também um elemento de vaidade masculina. Daí o costume de cortá-lo, chamado de “tonsura”, quando se ingressava nas ordens sacras, simbolizando a renúncia aos hábitos mundanos.

    Não sabemos como o bispo convenceu Germano a lhe permitir cortassem os cabelos. Porém, deve ter sido uma espécie de pressão moral: diante de todo o povo reunido, ele explicou qual era a  vontade de Deus. O duque, um tanto constrangido, não teve alternativa senão deixar que os aparassem.

    Candura e profunda seriedade

    E assim ele se tornou clérigo, o que resultava na sua destituição do ducado. Diante dessa perda de senhorio, Germano se julgou vítima de um golpe de Estado e se levantou em armas na defesa dos  seus direitos. Era um modo de ver as coisas inteiramente diverso do contemporâneo. Havia, então, uma certa candura aliada — e aí se sente os sabores espirituais da Idade Média nascente — a  uma profunda seriedade.

    Se acontecesse algo semelhante a um indivíduo de hoje, ou seja, se lhe cortassem os cabelos para torná-lo clérigo, ele sairia da igreja e diria: “Isto é nulo, pois houve coação moral; continuo minha vida como antes e não me importo com as conseqüências. Sr. Bispo, adeus!” Em sentido oposto, o duque Germano se achou lesado de tal sorte, e todo o mundo o considerava tão comprometido por aquela cerimônia, que ele levantou tropas e fez uma revolução. Pode-se ver nisso um pouco de primitivismo, mas, de outro lado, uma intensa seriedade no dar verdadeiro valor ao significado  das coisas.

    Esse bispo terá agido bem? Quanto a Germano, creio estava no direito de reagir. Porque se ele foi objeto de  uma coação moral — o corte de cabelo não sendo um sacramento, mas uma coisa delével — parece-me que ele poderia perfeitamente se libertar daquele modo. Porém, tocado pela graça, ele se converteu. Renunciou aos seus direitos de nobre, aceitou o episcopado e começou sua grande carreira de Santo.

    Convém apreciar como é interessante o trabalho da graça. O bispo de fato havia recebido essa missão de Deus, mas o Criador quis dar ao duque uma graça fulgurante, de maneira que ele ficasse esmagado pelo convite.

    Permitiu-lhe até que oferecesse resistência. Contudo, em certo momento realizou seu desígnio: deu-lhe novas graças e Germano acabou cedendo, tornando-se um herói da Fé. E dessa forma maravilhosa, um dos maiores bispos da história da França deu início ao seu pontificado.

    “Onde está Germano?!”

    Consideremos outro episódio da vida de São Germano que também traduz de modo eloquente o espírito daquela véspera de Idade Média. Como em todas as épocas, tinha então o demônio permissão de Deus para tentar os homens, embora possamos concebê-lo com uma ação maléfica não tão agressiva quanto seria nos séculos sucessivos, em virtude da decadência da Civilização Cristã. Assim, compreende-se o ocorrido com nosso Santo na Catedral de Milão. Um possesso gritou: “Germano, que fazes aqui? Tu não te contentas de nos ter expulso da Gália, e ainda vens à  Itália nos aborrecer?”

    Esses rugidos devem ter induzido ao mal certas pessoas lá presentes. Mas, de outro lado, o demônio tinha licença para tentar alguns sob a condição de dizer coisas que, em última análise,  pudessem abrir os olhos de todos para as grandes qualidades de São Germano. Então, o povo começou a procurá-lo: “Onde está Germano? Onde está Germano?”. Ele, embora pobremente vestido, era o ex-duque de Auxèrre e conservara a fisionomia e porte ducais, aliados à nobreza pastoral. E foi reconhecido pela majestade de sua pessoa, sendo logo objeto de homenagens e reverências.

    Matizes diversos na economia da graça

    Por fim, constatemos o belo uso feito pela Imperatriz Gala Placídia do presente enviado a ela por São Germano, cujo gesto encerrava provavelmente um sentido simbólico. É notável o espírito de Fé que animava essa soberana. Ela toma o prato de madeira e o coloca num relicário de ouro, porque fora presenteado por um santo. Embora ele ainda não tivesse sido canonizado pela Igreja, a Imperatriz estava convencida da heroicidade de virtudes do bispo. E sendo notórias, sólidas, incontestáveis as provas dessa perfeição espiritual, ela guardou o pão para usá-lo como remédio em  suas doenças. E certamente esse alimento operou muitos milagres!

    Tal atitude da parte da soberana indica outra intensidade da Fé, das bênçãos divinas, outro regime da graça de Deus para com os homens naquele período histórico. E nesse ponto cumpre fazer uma insistência. Não se trata de dar aqui à palavra “outro” o mesmo sentido da diferenciação entre o Antigo e o Novo Testamento. Quer isto dizer simplesmente que havia um matiz diverso entre a economia da graça naquele tempo e o existente nos dias de hoje.

    Séculos mais tarde, na época medieval, a graça era generosa, abundante, triunfante. Atualmente, por ser tão mal recebida pelos homens, apesar de ser igualmente copiosa, o seu triunfo é mais  difícil… Assim, é-nos dado compreender algo sobre o Reino de Maria, no qual, em sua substância mais íntima e importante, haverá um mais amplo leque de manifestação da graça nas almas.

    Quer dizer, após o triunfo do Imaculado Coração de Maria, anunciado em Fátima, Deus perdoará os pecados dos que se arrependerem, e — atendendo aos rogos de sua Mãe Santíssima — dará  início a esse novo tipo de manifestação, ao mesmo tempo em que da parte dos homens, purificados de suas faltas, haverá outra receptividade e reciprocidade para com os dons divinos.

    Pedir um  perdão novo e uma nova graça

    Portanto, a condição essencial para que venha uma futura e nova Idade Média, é um perdão que deve descer do Céu e mudar todas as coisas. Houve em determinado momento da História um  pecado instigado pelo inferno, que determinou a ruína da cristandade medieval e alterou tudo na Terra. Uma vez perdoado este pecado, começará o Reino de Maria, pelo favor e misericórdia de  Nossa Senhora.

    Devemos, pois, por meio de São Germano de Auxèrre, implorar com insistência que nos venha do Céu uma graça nova, um perdão novo, e a Virgem Santíssima se digne de estabelecer com os  homens um teor de relações  baseado numa outra situação. Não se pense que simplesmente com a derrota da Revolução e dos adversários da Igreja Católica estaria tudo resolvido. É preciso esse  perdão, um fato de ordem sobrenatural que será o alicerce do Reino de Maria.

    É necessário orar muito, porque os fenômenos sobrenaturais não podem ser produzidos pelo homem. Eles provêm de Deus, pela intercessão de Nossa Senhora. Quanto mais pesar sobre nós a  dureza da época em que vivemos, tanto mais nos cabe pedir a vinda desse perdão e dessa graça inéditos, para mudar cada um de nós e o mundo inteiro.

    Seja, portanto, este convite a um espírito de oração mais fervoroso e constante, a conclusão desses comentários à edificante vida de São Germano de Auxèrre.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • Santo Afonso Rodrigues – O carisma da boa conversa

    A boa conversa é uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

    m 31 de outubro comemora-se a festa de Santo Afonso Rodrigues, confessor. Sobre ele, Schamoni, em seu livro A verdadeira fisionomia dos Santos(1), dá as seguintes notas:

    Porteiro de convento durante 45 anos

    Santo Afonso Rodrigues nasceu no ano de 1531, em Segóvia. Era filho de um piedoso negociante.

    Deve considerar-se como transcendental em sua vida a influência do Bem-aventurado Padre Fábio, que durante algum tempo viveu entre eles, assim como mais tarde o santo religioso Francisco de Vilanova.

    Com a morte de seu pai, Santo Afonso passou a cuidar dos negócios familiares, porém a sua pouca habilidade levou os negócios à falência, ao mesmo tempo em que a morte arrebatava a sua esposa, seus filhos e sua mãe.

    “Na desgraça — disse o Santo — vi a majestade de Deus e reconheci a maldade de minha vida. Fizera, por causa do mundo, pouco caso de Deus e agora estava na iminência de perder-me eternamente. Ante mim vi a sublime grandeza de Deus, enquanto eu jazia no pó da minha própria miséria. Imaginei ser um segundo Davi, e um comovedor Miserere foi a expressão do meu estado de espírito.”

    Dirigiu-se então à Companhia de Jesus e, depois de seis meses de noviciado, mandaram-no para o colégio de Monte Sion, em Palma de Mallorca, de cujo convento foi irmão porteiro durante quarenta e cinco anos.

    Doutor de Mallorca

    A confiança que sua conduta despertava contribuiu para que muitas pessoas a ele acudissem, pedindo conselhos e ajuda em seus conflitos espirituais. Santo Afonso possuía em especial o dom da conversa espiritual. Seu próprio reitor concordou que nenhum tratado religioso lhe proporcionara tanto bem como o contato com o irmão leigo. Atendia também os pedidos que lhe faziam através de numerosas correspondências. Por isto foi chamado o “Doutor de Mallorca”.

    O Santo podia ter dado bons conselhos porque ele mesmo precisou suportar numerosas dificuldades íntimas e materiais e enfrentar duras batalhas.

    “Sentia — comentou — cada vez com maior profundidade a grandeza do Senhor, enquanto se aguçava em mim a consciência da debilidade do meu ser. Graças a esta experiência, mergulhava no estado de absoluta inconsciência. Então só sabia amar.”

    Três dias antes de sua morte, depois da sua última Comunhão, permaneceu iluminado e em êxtase.

    “Que felicidade — escreveu uma testemunha ocular — despertava em nosso espírito ao contemplá-lo! E eram somente algumas migalhas da sua felicidade. Decidimos chamar um pintor para que fizesse um fiel retrato de Afonso.”

    O Santo faleceu em 31 de Outubro de 1617.

    Sua cadeira de porteiro tornou-se um trono de sabedoria

    Esta é uma vida verdadeiramente magnífica porque traz três notas muito importantes.

    A primeira delas costuma ser comentada a propósito da vida de Santo Afonso Rodrigues, e é digna de ser recordada: este Santo fez um bem imenso a toda a Espanha, a todo o mundo, e conseguiu realizar este bem num posto humílimo. Ele era porteiro de um convento numa ilha que, naquele tempo, tinha comunicação difícil com o continente, e ficava muito mais isolada do que está hoje. Ali ele consumiu 45 anos de sua existência.

    Pois bem, apesar de estar nesse recanto, o bom odor de Jesus Cristo que havia nele espalhou-se por toda a ilha de Palma de Mallorca, depois pela Espanha, e mais tarde pelo mundo, com a figura venerável deste porteiro velho, acolhedor, afável, sempre ao alcance de todo mundo na portaria e, portanto, podendo ser consultado por todos os que quisessem, o que fez de sua cadeira de porteiro um trono da sabedoria. Todos iam lá vê-lo e ouvi-lo.

    Vemos o que há de magnífico numa vida mesmo muito humilde como esta, quando é toda integrada e empregada no serviço de Deus Nosso Senhor e da Santa Igreja Católica. Por quê? Porque a santidade, a sabedoria tem uma irradiação própria, que não é comparável a nada. Não é tão importante que o Santo esteja num lugar onde todos veem porque para atrair, quer o afeto, quer a admiração, em qualquer lugar onde ele esteja este afeto e esta admiração confluem. Basta que seja um Santo verdadeiro e autêntico, com uma santidade, como diziam os antigos, victa et non picta, quer dizer, verdadeira e não pintada.

    Com essa consideração devemos fazer duas outras, que me parecem bem mais importantes.

    Considerar a grandeza divina

    O modo pelo qual este Santo foi chamado a contemplar a Deus Nosso Senhor fala muito à minha alma. Considerar a grandeza divina: Deus infinitamente grandioso, majestoso, sábio, transcendente a tudo, excelente, magnífico, sublime, radioso, absoluto em toda a sua essência, misterioso, insondável!

    Quando percorremos com o olhar todas as coisas e as analisamos, acabamos descobrindo tal insuficiência, tal debilidade, que chegamos à seguinte conclusão: ou valem porque são um reflexo de Deus, ou não são absolutamente nada.

    Chegou a me passar pela mente o que eu faria de minha vida se não cresse em Deus. Sentiria, ao cabo de algum tempo, uma insipidez, uma sensação de vazio… Por exemplo, diante de um belo objeto: Aqui está esta peça de ouro, está bem, mas o que importa? Custa muito? Sim, porém o que me interessa? Satisfaz as minhas necessidades? Suponhamos que sim. E do que me adianta satisfazer minhas necessidades? Prolongar esta vida para quê? Tudo isto não é nada!

    Mas se eu tomo em consideração que isso tudo não é senão um véu por detrás do qual está o Ser absoluto, perfeito, eterno, sapientíssimo, sublime, transcendente, então encontro algo que é inteiramente superior a todos os homens, a mim, aos que me rodeiam, e no qual as minhas vistas exaustas e maravilhadas podem repousar. Afinal encontrei algo inteiramente digno de ser visto, amado, e de que a Ele eu me dedique completamente. E isto por causa da grandeza d’Ele. Porque Ele não é uma simples criatura concebida no pecado como eu, mas é o próprio Criador perfeitíssimo!

    Agora a vida tomou sentido, a existência é alguma coisa! A grandeza de Deus me ergueu do pó e me deu o desejo das coisas infinitas.

    Jesus Cristo concentra todas as formas e matizes de grandeza

    Este homem, este Santo, na consideração da grandeza de Deus, subiu alto, e até o fim da vida dele se arrependia dos seus pecados, e desejava ir para o Céu a fim de conhecer essa infinita grandeza.

    Confesso, francamente, que me é impossível pensar nisto sem sentir uma grande alegria dentro de minha alma. Muitos morrem com medo de pensar na grandeza de Deus. Eu, pelo contrário, tenho a impressão de que, se Nossa Senhora me ajudar — e não duvido que me ajudará —, na hora da minha morte morrerei radioso, com a ideia de que, afinal de contas, vou encontrar a grandeza de Deus, vou me libertar do cárcere de todas as limitações, de todas as mesquinharias, de todas as pequenezes, de todas as contingências, para encontrar a Deus Nosso Senhor infinitamente grande. Senhor meu, Pai meu, Rei meu, tão grande, que nem sequer, apesar da visão beatífica, poderei dispensar um intermediário junto a Ele.

    Então eu terei a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado.

    Uma forma de grandeza… quando se fala as palavras Jesus Cristo, todas as formas, todos os sons, todos os matizes de grandeza se concentram ali de um modo superlativo. E logo junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, infinitamente abaixo d’Ele e incomensuravelmente acima de mim, Nossa Senhora, Rainha de uma majestade insondável.

    Então, o que sou eu? Uma poeira, um grão de areia perdido no meio disto tudo. Pois bem, me enche a alma a ideia de que não sou senão um grão de areia, uma poeira, mas que existe aquilo, que eu vou para aquilo, que eu me reúno àquilo e aquilo me acolhe, me aceita, me envolve, e eu passo ali a eternidade inteira. Confesso que é nesta consideração que a minha alma se dilata.

    Não será talvez assim para outras pessoas. Mas há várias moradas no Céu. Que a misericórdia me receba nessa morada, porque para ela eu sinto uma atração superlativa.

    A via do silêncio e a da conversa

    Parece-me haver outro aspecto que deve ser muito notado aqui, e é o seguinte:
    Muitos autores espirituais falam do perigo das conversas e da vantagem que há em não conversar.

    Lembro-me de que, quando o nosso Movimento estava no começo, tínhamos muita dificuldade com certos elementos do clero e do laicato católico que diziam: “Vocês conversam muito. Todas as noites reúnem-se para conversar! Não era muito melhor que vocês tomassem um serviço? Por exemplo, confeccionem envelopes para auxiliar alguma obra de caridade em favor dos mendigos, e que precisa mandar propaganda para milhares de pessoas. Cada um faça, por exemplo, cem envelopes por noite; isso é muito mais abençoado do que essas conversas.”

    Eu era moço naquele tempo, não conhecia muitos pontos de doutrina e não sabia defender-me inteiramente; então tentava, laboriosamente, explicar que podia haver maior bem numa conversa do que numa obra de caridade material.

    “Cuidado — replicavam eles —, as muitas palavras enredam o homem em vaidades e orgulhos tolos. Mais vale calar do que falar, porque o silêncio é ouro e o falar é prata. Muitos são os homens que nesta hora padecem o Inferno porque não retiveram a sua língua. Quantos estarão no Céu felizes a esta hora porque passaram pela Terra quietos!?”

    É uma via para muitos, mas para muitos outros não é. Vemos em Santo Afonso Rodrigues um exemplo desta via de conversas abençoadas.

    A conversa pode ser um meio de santificação

    Há um eremita que me encanta: o Bem-aventurado Charbel Makhlouf(2). É uma maravilha de silêncio, e aquele silêncio me deslumbra! Mas uns devem falar e outros devem calar. Aparece nesta biografia de Santo Afonso a doutrina de que este homem tinha uma graça especial para conversar.

    Portanto, a conversa pode ser uma graça e existe um carisma próprio a ela. E as conversas abençoadas são exatamente aquelas nas quais intervém este fator sobrenatural.

    Há, entretanto, um carisma negativo, que não vem do Céu, para a “anticonversa”. Está-se numa roda onde se desenvolve uma conversação muito boa; de repente chega alguém, senta-se e não diz nada… A conversa morre. Creio que vários experimentaram isso, pois é de observação comum.

    Qual é a razão deste fenômeno? É a ação de presença de uma pessoa que pensa em si.

    Quando o indivíduo entra para uma roda onde a conversa vai alta, mas ele está pensando em si, carregando um ressentimento, uma preocupação, uma ambição, uma preguiça, e procura fazer com que a conversa tome a orientação deste seu pensamento em vez de seguir, ao sopro da graça, o tema dominante — ainda que ele seja tartamudo e diga uma palavra em cada dez minutos —, corta a bênção da conversa.

    Qual é o carisma da boa conversa? É uma forma comunicativa do amor a Deus, à Santa Igreja, a Nossa Senhora, que extravasa do coração para a boca de quem fala.

    Temos na vida de Santo Afonso, portanto, um ponto de nossa doutrina bem firmado: a conversa pode ser uma graça e, quando assim é, decorre em geral de um carisma que Nossa Senhora dá para fazer do convívio das almas um meio para que elas se santifiquem.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/10/1967)

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.
    2) Canonizado em 9 de outubro de 1977.