Categoria: Santos do dia

  • São Gregório Magno – Fundador da Idade Média

    No início da Idade Média, o povo romano, embora participante dos males da época, discernia o homem santo do não santo e ia ao encalço do varão virtuoso para colocá-lo no Papado, como sucedeu na eleição de São Gregório Magno.

     

    São Gregório Magno foi considerado o fundador da Idade Média no Ocidente. A respeito dele temos as seguintes indicações biográficas(1).

    Enviado a Constantinopla pelo Papa

    São Gregório nasceu em Roma, filho do rico senador Jordano. Uma juventude estudiosa o tornou, pela variedade dos conhecimentos, digno de ser elevado à dignidade de pretor pelo Imperador Justino, o Jovem. Ele se tornou, no cargo, tão notável pelas luzes de seu espírito, a maturidade de seu julgamento e o amor extremo da justiça, que ficou conhecido na Cidade Eterna.

    A única coisa que se imputava a ele era um grande luxo e um esplendor inteiramente mundano em suas roupas e em seus hábitos, e tudo fazia temer que ele dissipasse a imensa fortuna que lhe tinha deixado seu pai. Mas, por ocasião da morte de seu progenitor, Gregório, cuja piedade tinha lutado incessantemente contra seu fausto, apareceu, de repente, como um homem novo. Ele fundou sete mosteiros, dos quais seis na Sicília e um em Roma; distribuiu aos pobres seus ricos trajes, seus móveis preciosos e tomou o hábito monástico no claustro de Santo André, do qual se tornou abade, contra sua vontade, pela escolha de seus irmãos.

    O jejum, a oração e outras práticas de piedade tornaram-se suas ocupações únicas. Impressionado pela beleza de alguns jovens ingleses expostos como escravos, à venda no mercado de Roma, e sabendo com dor que esses insulares não eram cristãos, ele obteve do Papa Bento I a autorização de ir pregar a Fé na Grã-Bretanha. Entretanto, mal ele se pôs a caminho, o clero e o povo o obrigaram a retroceder.  

    Feito diácono da Igreja Romana no ano de 578, ele foi enviado a Constantinopla pelo Papa Pelágio II, mais ou menos no ano de 580. Várias negociações importantes o detiveram por muito tempo na capital do Império do Oriente, onde ele adquiriu a estima de toda a corte.

    Por ocasião de sua volta a Roma, o Papa Pelágio se esforçou para retê-lo junto a si, na qualidade de secretário. Mas Gregório não quis aceitar esse cargo e por isso, à força de orações, ficou, afinal de contas, com a liberdade de se retirar junto a seus monges. Porém, por ocasião da morte de Pelágio, as aclamações de Roma inteira o chamaram ao papado. Gregório estremeceu de temor. Ele fugiu da Cidade Eterna e escreveu ao Imperador para suplicar que não confirmasse sua eleição, e escondeu-se numa caverna. Mas o povo o descobriu, levou-o a Roma e o entronizou, apesar de sua oposição, no dia treze de setembro de 590.

    Converteu os lombardos e destruiu o arianismo

    Esse santo homem tinha, entretanto, inimigos que o acusaram de dissimulação e de hipocrisia. A sua vida inteira repudia essas acusações. Sua modéstia, sua humildade se manifestaram pela simplicidade de sua casa. Suas rendas foram consagradas ao alívio dos pobres. Sua constante ocupação era a instrução do povo.

    De acordo com o Imperador Maurício, ele terminou com o cisma dos bispos da Ístria. A conversão dos lombardos e a destruição do arianismo foram também seu trabalho; e ele testemunhou uma alegria extraordinária pelo fato, nas cartas à Rainha Teodolinda. Gregório não tinha esquecido a Grã-Bretanha. Seus missionários que partiram em 595, sob a conduta do monge Agostinho, chegaram dois anos depois ao Reino de Kent, onde a Rainha Berta tinha preparado o ambiente. O Rei Etelberto e uma grande parte de seu povo se converteram.  

    Gregório teve menos trabalho em reformar a Liturgia do que a disciplina. Depois de ter composto um Antifonário, ele elaborou o Psalmodius com salmos, orações, cânticos. Instituiu uma academia de cantores e, de chicote em punho, ele mesmo dava aos jovens clérigos lições de cantochão.

    Quanto aos templos pagãos, ele queria que fossem respeitados, mas transformados em igrejas. Tantos trabalhos e fadigas não eram próprios a curá-lo das enfermidades que não cessavam de o assediar. A gota o retinha frequentemente por longo tempo de cama, e as horríveis dores causadas por essa doença não detinham sua atividade prodigiosa. Nenhum Papa escreveu mais cartas do que ele. Gregório tinha um tato maravilhoso para distinguir a verdade e a calúnia, nas acusações que lhe levavam contra os padres. Os falsários, os bruxos, os simoníacos, os cismáticos, tiveram nesse Papa um adversário terrível.

    Esse grande pontífice morreu no dia doze de março de 604, depois de treze anos, seis meses e dez dias de pontificado. Os comentários que ele fez da Sagrada Escritura exerceram no pensamento cristão da Idade Média influência considerável, que lhe valeu o título de Doutor. É, com Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerônimo, um dos quatro grandes Doutores da Igreja latina.

    Verdadeiro fundador da Idade Média

    É muito merecida a consideração de que São Gregório Magno foi o verdadeiro fundador da Idade Média, porque, quer enquanto era um simples sacerdote, ou ainda um diácono, quer depois de ser elevado ao pontificado, notamos nos traços de sua vida que ele, de algum modo, acabava de fechar a última réstia da porta que separava os homens da antiguidade pagã, e abria, por outro lado, a porta para a idade nova que ia nascer.

    Do ponto de vista da antiguidade pagã, vemos como São Gregório combateu os restos do paganismo. Determinou que as últimas igrejas pagãs ainda existentes não fossem destruídas, mas transferidas para o culto católico.

    Ele exterminou o arianismo, que era uma praga proveniente ainda do tempo do Império Romano do Ocidente, quando os arianos penetraram na Europa, perverteram os bárbaros que invadiram esse Império. Liquidou com a imoralidade e com outros inconvenientes decorrentes da era antiga e, ao mesmo tempo, nos aparece como o construtor da era nova. Foi um grande fundador de conventos, e a expansão da vida cenobítica é um dos fatos mais característicos do começo da Idade Média.

    São Gregório, de outro lado, trabalhou pelo cantochão. E é interessante imaginar o grande Papa, Doutor da Igreja, político eminente, ensinando cantochão para os seus alunos, não de vareta em punho, mas de chicote. A imagem é pitoresca e pediria uma iluminura, ou talvez um vitral.

    Com a fundação do cantochão ele propriamente deu voz à Idade Média. Porque o cantochão foi a grande voz cantante da Idade Média, de ponta a ponta. E transmitiu o seu caráter à vida beneditina que São Bento tinha lançado, mas que ainda não tinha tomado todo o seu cunho de firmeza e definição que adquiriu com ele.

    Todos os problemas do tempo passaram pela sua mente

    É admirável, na vida de São Gregório Magno, o sentido missionário impulsionando as missões na Inglaterra e na Irlanda. Daí o deflúvio da grande corrente dos missionários que, da Inglaterra e da Irlanda, voltam para o continente onde iriam desbravar a Germânia e deitar as sementes da Idade Média.

    Vemos, ao mesmo tempo, esse homem tratar, mas inutilmente, da grande chaga da Cristandade naquele tempo: o Império Romano do Oriente, cada vez mais tendente ao cisma. Esse império cambaleava sempre entre a heresia e a verdade católica. E por fim, como todos sabem, acabou ruindo. Mas ele tentou segurar esse muro da cidade de Jesus Cristo que ameaçava cair, e aí vemos mais um exemplo da suma ingratidão de Bizâncio diante do zelo dos Papas.

    Mandar para lá homens como esse, que chegam até a ser benquistos e a conquistar influência, mas não conseguem arrancar a cidade maldita, a cidade pervertida, da sua imoralidade, moleza, imprevidência e de seu pendor para a heresia. Assim, pode-se dizer que todos os problemas do tempo passaram pela mente desse grande homem. Ele os analisou, os enfrentou e, ao mesmo tempo, escreveu obras que foram pilares do pensamento medieval.  Vida riquíssima, admirável, toda voltada ao sentir da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

    São Gregório se encontra no Céu. Se ele ressuscitasse, o que diria deste mundo de hoje tão diferente do mundo que conheceu?

    Ele viveu numa época dura, de desordem e até de crimes berrantes. Contudo, o povo que participava dos males da época ao mesmo tempo aclamava um santo como Papa. O santo fugia do povo e este ia ao encalço do santo, e o colocava no papado. Era um povo capaz de discernir o santo de quem não era santo, e de preferir o santo em relação ao não santo. Hoje seria a mesma coisa? O povo iria ao encalço do santo para levá-lo ao papado? Como tudo mudou…

    Roguemos a São Gregório Magno que interceda para conseguir que a nossa época, depois das punições purificadoras pelas quais deve passar, se transforme numa nova Idade Média, ainda mais requintada. Pedido que ele compreenderá, pois foi um dos fundadores da gloriosíssima Idade Média!

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1967)

     

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos.

    Errata: Na seção “Hagiografia” do n. 233, p. 21, na legenda onde está escrito “Papa São Silvestre”, leia-se “Papa Silvestre II”.

  • São Gregório Magno

    São Gregório Magno foi um dos fundadores da gloriosíssima Idade Média. Pois, de fato, pode-se dizer que todos os problemas daquele tempo passaram pela mente desse grande homem. Ele os analisou e os enfrentou, deixando escritos que são verdadeiros pilares do pensamento medieval.

    Quer enquanto simples diácono ou sacerdote, quer depois de ser elevado ao Pontificado, em todos os traços sua vida foi admirável, voltada inteiramente para o sentir da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

    Ele, de algum modo, acabou de fechar a última réstia da porta que nos separava da Antiguidade pagã; e, por outro lado, abriu a porta para a idade nova que ia nascer.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/3/1967)

  • Balduíno IV, o protótipo do católico – I

    Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. E nada mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. Mas Deus suscitou no Oriente uma das mais altas figuras  do mundo do tempo das Cruzadas decadentes: um rei leproso. Seu heroísmo e dedicação à Causa Católica fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso; em suma, o  protótipo do católico.

     

    Os comentários que farei a seguir só podem ser sentidos em toda a sua importância e expressão se tomarmos em consideração os tempos nos quais os fatos que serão narrados se desenrolaram, ou seja, a Idade Média, no ocaso das Cruzadas.

    O brilho da graça das Cruzadas refulge até hoje

    As Cruzadas representaram um dos mais belos movimentos de alma que a Igreja teve, ao longo de todos os séculos de sua existência. Como tudo quanto de belo que se passa na Igreja, a esse  movimento de alma correspondia uma grande graça.

    Era a graça das Cruzadas, da qual um resto de brilho ainda refulge no olhar poluído e cansado do homem contemporâneo, porque quando se fala das Cruzadas, todo mundo compreende.

    Ao ser dito: “Fulano tem o espírito de um Cruzado”, entende-se que comum, mas iluminado de Religião, de Fé, de certezas de toda ordem, com uma disposição e um ânimo extraordinários para  suportar qualquer forma de dor, de sofrimento, de risco.

    Um ímpeto de guerra, uma capacidade de impacto sem precedentes, e provavelmente sem consequentes na História. Todos esses conceitos se reúnem e brilham aos olhos com uma luz de Fé,  quando se fala a respeito das Cruzadas.

    Nada foi tão belo quanto o começo das Cruzadas. Por causa disso, nada foi mais triste do que o ocaso plúmbeo, pardacento, feio no qual elas se afundaram. A razão desse afundamento nós conhecemos. Os primeiros Cruzados eram varões inspirados por uma grande Fé. Mas começaram a se misturar com eles homens que faziam a guerra santa preocupados em obter o brilho, que na  opinião pública do Ocidente lhes alcançaria uma participação heroica nas Cruzadas. Quer dizer, ter refulgido de heroísmo nas Cruzadas dava, no Ocidente, o que hoje chamariam “um grande  cartaz”. E facilmente  até promovia o indivíduo na escala nobiliárquica, que era a escala de ascensão política, social e econômica naquele tempo. De maneira que havia um interesse humano,  conjugado com o interesse sobrenatural em ser Cruzado.

    Com o declínio da influência da Religião, os Cruzados interesseiros foram se tornando mais numerosos do que os autênticos, legítimos, que o eram por verdadeiro espírito de Fé. Com isso, as  Cruzadas foram se tornando guerras de conquista, para que os combatentes obtivessem reinos e feudos cômodos na península balcânica e, sobretudo, na Terra Santa e na África do Norte,  fundando ali um Reino de Chipre, por exemplo, ilustre naquele tempo.

    O rei era a síntese e a personificação do país…

    Entretanto, os guerreiros indo às Cruzadas por essas razões, as ocasiões de pecado que a guerra traz consigo os solicitavam muito: as rivalidades, as rixas, as injustiças da partilha das vantagens  obtidas e, naturalmente, também o pecado da carne, porque nos saques daquelas cidades conquistadas apresentavam-se mil ocasiões de tentações.

    Assim, o ideal da Cruzada foi se rebaixando e poluindo cada vez mais. Nesse ocaso triste das Cruzadas, em que as próprias Ordens de Cavalaria estavam afetadas na sua integridade, na sua   fidelidade ao primitivo espírito, a Providência quis que elas brilhassem enviando-lhes um rei, que não me espantaria nem um pouco se, pelo menos no Reino de Maria, fosse canonizado.

    Para compreendermos bem quem era esse rei, suscitado como uma espécie de réplica de Deus à ambição vulgar e ao espírito egoístico da maior parte dos Cruzados da decadência, precisamos  tomar em consideração o que era naquele tempo um rei e depois, no extremo oposto, o que era um leproso.

    O rei não era uma figura meramente decorativa, mas sim um ungido de Deus, pois recebia uma investidura por meio de uma cerimônia religiosa: uma coroação ou uma unção – ou ambas as coisas juntas – feita por mãos de eclesiástico, em geral um bispo. Isso fazia do monarca um representante de Deus na Terra, encarregado de fazer prosperar a causa de Deus na ordem civil, como um bispo ou um papa tem a missão de incrementá-la na ordem espiritual.

    Ademais, homem dotado de um grande poder e, por isso, ultra reverenciado, cortejado por todo mundo. Ele estava no ápice de toda espécie de hierarquia temporal, era a síntese e a personificação do país. Não se podia ser mais do que o rei.

    …e o leproso, a abominação dos homens

    No extremo oposto nós temos o leproso, considerado a abominação dos homens. Porque naquele tempo não se tinha o processo de cura ou de detenção da infecção leprosa, que hoje se conhece; e  quando um indivíduo era atingido por essa doença, consideravam- no irremissivelmente perdido.

    No entanto, a lepra – ao menos em muitas de suas manifestações, frequentes naquele tempo – é uma doença lenta, que vai matando o indivíduo aos poucos e de um modo horroroso, porque ele  vai apodrecendo paulatinamente. As extremidades incham, entumecem e depois vão caindo de podres. Então, começam a cair os dedos, os artelhos, o nariz; as orelhas incham desmedidamente e  caem também… A pessoa torna-se uma espécie de chaga viva: o rosto todo, uma chaga; os olhos vermelhos, incandescentes, porque a lepra ataca o globo ocular. O leproso fica todo ele devorado  por essa putrefação que, naturalmente, acaba levando-o deste mundo.

    Os antigos tinham horror à lepra, evidentemente. Por causa disso, afastavam o leproso do convívio humano. Estava, portanto, no extremo oposto de um rei procurado e admirado por todos. O leproso causava terror, fugia-se dele. Havia até a obrigação de ser internado num leprosário, e passar ali a vida inteira.

    O processo de internamento de alguém em um leprosário era muitas vezes o seguinte: uma vez declarada leprosa pela autoridade competente, a pessoa era levada pela família à igreja, ficava  deitada num caixão de defunto e o padre recitava sobre ela orações especiais, declarando-a afastada do convívio social. Era conduzida, então, dentro do caixão aberto, em cortejo da aldeia até o  leprosário próximo. Depunham o caixão às portas do leprosário, e todos iam embora. Ali moravam apenas leprosos e um ou outro padre, freira, ou leigo de alma heroica, que lá viviam para ajudar  aqueles desventurados.

    Assim, o leproso imergia naquele inferno vivo pelo medo que a sociedade tinha de que ele se tornasse um foco de contágio.

    Vemos, assim, como o leproso e o rei estão em extremos opostos. Ora, aprouve à Providência Divina suscitar no Oriente, como uma das mais altas figuras do mundo das Cruzadas decadentes, um rei leproso.

    Um rei leproso, protótipo do guerreiro

    A figura de um rei leproso é dramática. Um homem que carrega consigo uma doença da qual todo mundo tem medo, mas que, pelo jogo das circunstâncias, deve ficar no seu cargo, pois ele sabe que assim fará à Igreja um bem que em meio àquela decadência nenhum outro realizaria.

    Então ele é, ao mesmo tempo, procurado e tido com horror por todas as pessoas.

    Vivendo no esplendor de um palácio, cercado de todo aquele luxo, ele é o podre, o horripilante, o verme posto no meio da flor. É a contradição entre o fausto que o rodeia e a hediondez da  decrepitude física de um homem que vai apodrecendo em vida.

    Apesar da lepra, esse homem, por amor à Igreja Católica, deu todas as provas de vigor físico, combatendo como qualquer guerreiro, e na vanguarda, metendo terror nos seus adversários, de tal maneira ele foi grande batalhador! Enfrentando, de outro lado, provações terríveis, porque ele carregava o peso enorme de sustentar uma avalanche que caía.

    Era um mundo todo deteriorado, moralmente leproso, contra o qual ele devia reagir. Os íntimos, os próximos dele não valiam dois caracóis. Apesar de tudo, ele precisava manter em pé o  estandarte da Cruz no Oriente Próximo durante toda a vida dele.

    Veremos, então, desenrolar-se a tragédia desse rei leproso – Balduíno IV, último monarca de Jerusalém, reino do qual o primeiro rei foi Godofredo de Bouillon –, com manifestações de heroísmo fantásticas e de uma dedicação à Causa Católica extraordinária, que fazem dele o protótipo do cavaleiro, do guerreiro, do rei e do leproso. Numa palavra só: o protótipo do católico, porque ele  carregou com coragem todas as crises, tudo quanto ele devia sofrer no seu pobre corpo chagado e na sua alma.

    Uma forma de silêncio que só pesa sobre os esplêndidos

    Comentarei algumas notas biográficas tiradas do livro Os Templários, de Georges Bordonove (1). Nada na história das Cruzadas é mais  emocionante que o reino doloroso de Balduíno IV.

    A meu ver, ele poderia se chamar o “rei das dores”, porque o reino dele foi um reino doloroso, e ele teve o reinado das dores. Todas as dores confluíram nele. Nada, entre os vários exemplos  famosos, pode atestar melhor o império de um espírito de ferro sobre a carne débil. Este foi um rei sublime, de que os historiadores tratam só de passagem. O que faz perguntar por que, até aqui, nenhum escritor nele se inspirou, exceto talvez o velho poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Nem o romance, nem o teatro o invocam e, entretanto, sua breve existência, cheia de  acontecimentos coloridos, forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.

    Isto mesmo indica ter sido um homem muito bom. Porque o quadro seria por demais tentador para uma peça de teatro, um filme, uma biografia, uma leitura espiritual. Se a memória desse  homem está de tal maneira posta à margem, quando poderia tanto dar pretexto para escritores famosos se tornarem ainda mais célebres, é evidentemente porque ele foi ótimo. Esta forma de  silêncio só pesa sobre os esplêndidos, e já equivale, por si mesma, a uma presunção de canonização.

    Brincando de batalha, não sentia as machucaduras

    O destino sorria à sua infância. A palavra destino é péssima. A Providência é que sorria à infância dele. Robusto e belo. Ele era dotado de inteligência aguçada, de sua raça angevina.

    Quer dizer, a família dele era nobre, procedente de Anjou, na França. Tinha se dado a ele por preceptor Guilherme de Tiro, que se tomou de uma grande preocupação e dedicação, como é  conveniente a um filho de rei.

    Portanto, ele foi educado esmeradamente. O pequeno Balduíno tinha muito boa memória, conhecia suficientemente as letras. O que não era tão frequente na nossa querida Idade Média. Retinha muitas histórias, e as contava com prazer.

    Um dia… Aí começa a tragédia.

    …em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém, descobriu-se que tinha os membros insensíveis. Os outros meninos gritavam quando se lhes feria. Balduíno, porém, não dizia  uma só palavra.

    Esse fato se repetiu em muitas ocasiões. A tal ponto que o Arcediago Guilherme alarmou-se. Primeiro pensou que o menino fazia uma proeza, desprezando queixar-se. Então, dirigindo-lhe a palavra perguntou porque sofria aquelas machucaduras sem se queixar. O pequeno respondeu que as crianças não o feriam, ele não se ressentia em nada dos arranhões. Então o mestre examinou  seu braço e sua mão, e certificou-se que estavam adormecidos.

    O primeiro sintoma da lepra é a diminuição da sensibilidade. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo. Os médicos aos quais foi confiado não podiam sustar a  infecção, nem mesmo retardar a lenta decomposição que afetaria as suas carnes. Toda a sua vida não foi senão uma luta contra o mal irredutível.

    Por duas vezes, fez com que Saladino fugisse

    E mais ainda, muito mais, foi testemunha dos poderes de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa dos seus mais altos deveres. Balduíno IV foi rei digno de São Luís, um santo, um homem, enfim, e é isto que, sobretudo, importa à nossa admiração sem reticências, a quem nenhuma desgraça chegou a destruir o vigor da alma, as convicções, a altivez, as qualidades de coração,  o senso da responsabilidade, dos quais ele hauria o revigoramento e a coragem.

    Balduíno, no meio disso tudo, ainda era um homem não só corajoso, mas digno e altivo. Para se conservar digno e altivo nessas condições é preciso ter fibra de alma! No fim de 1174, Saladino,  senhor de Damasco, veio sitiar Alepo. Os descendentes de Noredim pediram socorro aos francos. Raimundo de Trípoli atacou a praça forte de Homs. Balduíno IV empreendeu uma avançada vitoriosa sobre Damasco.

    Essas iniciativas fizeram com que Saladino abandonasse seu desejo inicial. Saladino era um grande guerreiro. Fugiu, por causa da pressão que Balduíno exerceu contra ele. Em 1176, o sultão  voltou à carga, e a mesma manobra sustou seus planos. Quer dizer, mais uma vez, Balduíno fez fugir Saladino.

    Balduíno venceu seu exército em Damasco e Andujar, e trouxe um belo lucro da expedição. Nessa ocasião, ele tinha apenas 15 anos.

    Nessa idade já era um tão famoso chefe de guerra!

    Nos combates, reivindicava para si o lugar de perigo

    Apesar de sua doença, cavalgava como um homem de armas. Empunhava eximiamente a lança. Sabe-se que a lepra debilita. Podemos imaginar o que é empunhar uma lança numa batalha? Toda espécie de movimentos, que força isso significa! Com o pretexto de ser leproso, ele podia ficar perfeitamente na retaguarda. Mas reivindicava para si, eximiamente, o lugar de perigo.

    Nenhum dos seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de que estava investido, e de sua própria finalidade. Ou seja, ele foi precocíssimo no compreender qual era a  nobreza de um rei.

    Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam… Entre os católicos, portanto. Era a putrefação do espírito católico naquele tempo. …compreendeu quão necessária era sua presença  à cabeça dos exércitos católicos.

    Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos, ajuntava-se a angústia moral. Seu estado o impedia de se casar, de ter um descendente. Ele não era senão um morto vivo, um morto  coroado, cujas pústulas e purulências se disfarçavam sob o ferro e sob a seda. Mas que se mantinha de pé, que se lançava à ação, movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e  devoradora chama de sacrifício!

    Era, pois, inexplicável aos olhos de todo mundo como esse homem lutava.

    Por sagacidade, deixa Jerusalém desguarnecida

    Um novo Cruzado acabava de desembarcar. Chamava-se Filipe de  Alsácia, Conde de Flandres, e parente próximo de Balduíno. O problema de Balduíno era o seu sucessor. Se ele tivesse um filho, poderia educá-lo como quisesse. Era básico que houvesse um  sucessor da categoria dele para manter o estandarte da Cruz na Terra Santa. Mas ele não teria sucessores descendentes dele. Seriam parentes, e que parentes… Assim, ele via não só a lepra  destruir-lhe o corpo, mas sua obra meio fadada a desaparecer, como desapareceu, e ele retardando algo que não conseguiria evitar. Apesar disso, com uma coragem prodigiosa, ele resistiu.

    O pequeno rei esperava muito desse apoio. Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poder, isto é, no Egito, se se quisesse abalar a unidade muçulmana. Mas isso precisamente era o que propunha o Basileu, Imperador de Bizâncio.

    O Egito, uma vez conquistado em parte, Damasco não poderia deixar de subtrair-se ao poder cambaleante de Saladino. Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma.

    Ninguém lhe poderia impedir de guerrear na Síria do Norte. E, o que era mais grave, de levar consigo parte do exército franco. Saladino respondeu invadindo a Síria do Sul. Balduíno reuniu o que lhe restava de tropas, desguarneceu audaciosamente Jerusalém, e partiu para Ascalon, onde Saladino investia. Este, logo que foi informado, subestimou seu adversário. Ele acreditava que a queda  de Ascalon era uma questão de dias, e marchou sobre Jerusalém, com o grosso de seu exército.

    Prosterna-se com o rosto na areia diante do Santo Lenho

    Balduíno compreendeu suas intenções e  saiu de Ascalon. Fez um longo périplo e caiu, repentinamente, sobre as colunas de Saladino em Montgisard.

    O efeito da surpresa não compensou a desproporção dos efetivos em luta. Balduíno sentiu a hesitação dos seus. Desceu então do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia diante do madeiro da verdadeira Cruz, que era levado pelo Bispo de Belém. Orou com a voz cheia de lágrimas. E, com o coração convertido, seus soldados juraram então não recuar, e considerar traidor aquele que  voltasse atrás.

    Rodeando o Santo Lenho, o esquadrão de trezentos cavaleiros se lançou impetuosamente. O vale entulhava-se com a bagagem do exército de Saladino, diz o “Livro dos Dois Jardins”. Os cavaleiros  francos surgiram ágeis como lobos, latindo como cães. Atacavam em massa, ardentes como chamas. E puseram em fuga o invencível Saladino que, se salvou a própria pele, foi graças à rapidez de  seu cavalo e ao devotamento de sua guarda. Retornou ao Egito, abandonando milhares de prisioneiros. Balduíno logrou, enfim, uma vitória sem precedentes.

    Com apenas 300 homens, obtém vitória contra Saladino

    Essa vitória merece uma pequena análise. Para isso, relembremos rapidamente os acontecimentos narrados: Saladino foi sitiar a cidade de Ascalon, e Balduíno IV julgou que podia pegá-lo lá.

    Então, para salvar Ascalon, desguarneceu Jerusalém. Saladino, percebendo que a capital do reino e a Cidade Santa dos católicos estava desguarnecida, saiu às pressas de Ascalon e foi atacar  Jerusalém, certo de que tinha levado vantagem sobre Balduíno. Este contava apenas com trezentos homens. Ao ver que Jerusalém seria cercada, resolveu interceptar o exército de Saladino no  caminho entre Ascalon e Jerusalém. Quando os guerreiros católicos viram aquela multidão de maometanos, não tiveram coragem. Temos, então, a cena épica: o rei leproso que desce de seu  cavalo, prosterna-se com o rosto na areia, diante do Santo Lenho, e pede a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Maria, enquanto Rei de Jerusalém, que não permita que a Cidade Santa pereça.

    Vem uma dessas graças sobrenaturais que não se podem explicar senão por um verdadeiro sopro do Espírito Santo, uma verdadeira Pentecostes pequena, por onde todos mudam completamente.

    Ele se levanta, e trezentos soldados apenas, chefiados pelo rei leproso – com que dores, com que sacrifícios, mas com que vigor de alma, com que zelo! –, investem sobre os maometanos. A  investida é tremenda. Inclusive usaram o recurso de guerra psicológica: ladravam para meter medo. Saladino não pôde resistir, teve que fugir a galope para o Egito. E uma das mais famosas  batalhas da Terra Santa foi assim ganha pelo rei leproso.

    O Varão de todas as dores teve uma consolação pensando no “rei das dores”

    Vejam como nós devemos meditar a respeito dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Divino Redentor, pregado na Cruz, conhecia todo o futuro; e no meio das tristezas sem conta que Ele  tinha a propósito do porvir, sabia que destino teria cada um dos fragmentos do Santo Lenho, daquela Cruz que Ele estava tornando sagrada pelo seu sacrifício, pois ali estava derramando o seu Sangue.

    Nosso Senhor Jesus Cristo foi comparado pelo Profeta Isaías a um leproso tão chagado que, do alto da cabeça até a planta dos pés, não havia n’Ele nada que estivesse sadio. Do alto da Cruz, o  Divino Leproso previu que um dos fragmentos do Santo Lenho seria adorado por um filho leproso, em certa ocasião, no deserto.

    O Redentor conheceu e ouviu o brado de entusiasmo dos guerreiros francos; contemplou a adoração angélica daquele homem que estava com o rosto em terra, bradando o seu “Quis ut Deus!” para  altar por cima dos maometanos. E o Divino Salvador Se consolou. O Homem de todas as dores teve uma consolação no alto da Cruz, pensando naquele “rei das dores”. Balduíno arrancou algo à maneira de sorriso dos pobres lábios “leprosos” de Nosso Senhor Jesus Cristo expirante.

    Devemos desejar ter a alma como a de Balduíno IV

    Foi só isso? Não. Nosso Senhor Jesus Cristo  também sabia que no dia 21 do mês de outubro de 1972 essa epopeia seria lembrada. E que os filhos recrutados, pela intercessão de Maria, para defenderem a causa d’Ele no século XX, haveriam  de se embevecer, sabendo que, a propósito do Rei Balduíno IV, Nosso Senhor também Se lembraria deles. E o consentimento de alma que damos à epopeia de Balduíno também consolou nosso  Divino Redentor no alto da Cruz.

    De 1174 para 1972, que enorme espaço de tempo! Pois bem, passaram- se os séculos, essa história dormiu na poeira de quantos livros, na indiferença de tantos homens, mas ela estava reservada,  como uma joia, para uma meditação que nos fizesse desejar ter a alma como de um Balduíno, ainda que fracos de corpo, fortes de alma dessa maneira, e com essa confiança invencível que  Balduíno possuía. Só com trezentos combatentes, com um corpo chagado e leproso, ele teve, entretanto, a graça de receber um sopro do Espírito Santo para si e para os seus, e alcançar essa vitória extraordinária. Um dos mais belos feitos da Civilização Cristã!

    (Continua no próximo número)

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/10/1972)

    1) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977. c. XII, p. 108-111.

  • Rainha da Contra-Revolução

    Nossa Senhora enquanto Rainha dos Anjos é a Rainha da Contra-Revolução. Ela dirige a Contra-Revolução dos Anjos que atuam sobre nós e os acontecimentos da Terra, de maneira a se passar tudo como Ela quiser.

    Maria Santíssima tem todos os matizes, todas as glórias, todas as cores, todas as belezas da Contra-Revolução. É a Imaculada Conceição esmagando a cabeça da serpente, a Rainha dos Anjos que comanda o exército angélico, como o exército dos Santos – “Regina Sanctorum Omnium”, Rainha de todos os Santos. É a Rainha dos contrarrevolucionários, nossa Mãe, que nos guia e nos ama especialmente por esta razão. E Nossa Senhora é o arquétipo da virtude dos anjos que, tendo decaído, terminaram por ser lançados no Inferno, e que devemos substituir no Céu. Assim, há um nexo especial entre nós e Ela.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1988)

  • São Raimundo Nonato – "Os exemplos arrastam…"

    São Raimundo Nonato, religioso mercedário, ofereceu-se para substituir alguns cristãos prisioneiros na cidade de Túnis.

    Tendo sido aceita a proposta, iniciou-se para ele uma série de horrendos tormentos: seus lábios foram cruelmente perfurados e transpassados por um cadeado de ferro, para que assim não pudesse falar de Jesus Cristo aos carcereiros.

    Após oito meses de atrozes sofrimentos, alguns mercedários de Espanha acudiram com o valor necessário para resgatá-lo.

    Com fortaleza de alma inabalável, de volta a Europa, São Raimundo foi por toda parte — com os lábios mal cicatrizados e com dores horríveis — pregando a Cruzada.

    A eficácia de sua pregação era incomparável, pois — ante este homem que em meio a tantos sofrimentos permaneceu inquebrantável e ainda mais cheio de ânimo e coragem — não havia quem não se sentisse arrastado a segui-lo.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/8/1967)

  • São Fiacre – O perfume da Idade Média

    São Fiacre viveu no século VII e é o patrono dos jardineiros. Contemplando sua vida, nota-se a maravilha de uma graça que se evola e perfuma toda a História. Isso descansa nossas almas e nos  coloca diante da perspectiva de que o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

     

    No dia 30 de agosto comemora-se a festa de São Fiacre, anacoreta. A respeito dele vejamos uma linda ficha retirada do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

    Filho de um rei da Escócia

    São Fiacre nasceu no começo do século VII, de uma ilustre família irlandesa. Os escoceses afirmam que ele era filho de um de seus reis, e que foi educado com os seus irmãos pelo Bispo de Connan. Fiacre aproveitou bem essa educação, pois abandonou, jovem ainda, seus pais e sua família, para servir a Deus em terra estrangeira e na solidão.

    Indo para a França, procurou o Bispo de Meaux para pedir que lhe cedesse algum lugar isolado em sua diocese. O Bispo de Meaux, que era também um Santo, encheu-se de alegria e disse a Fiacre:  Tenho, não longe daqui, uma floresta de meu patrimônio, que os habitantes chamam Breuil, e acredito ser própria à vida solitária.”

    Os dois Santos foram visitar o lugar e o bispo deu ao emigrado irlandês o que lhe seria necessário. São Fiacre, com a bênção do prelado, limpou o bosque, ergueu uma igreja em honra da  Santíssima Virgem, com uma casa ao lado onde habitava, e recebeu  os hóspedes que ele alimentava com o produto de seu jardim.

    Mais tarde construiu uma espécie de hospital, onde ele mesmo servia os pobres e, muitas vezes, os curava pela virtude de suas orações. Mas não permitia nunca que as mulheres penetrassem em  sua ermida. O artigo que impede as mulheres de entrarem em mosteiros de homens é uma regra inviolável  entre os monges irlandeses.

    São Fiacre não se desfez dessa regra enquanto viveu, e ainda hoje vê-se, por respeito à sua memória, que as mulheres não entram no lugar onde ele vivia em Breuil, nem na capela, onde foi enterrado.

    Ana de Áustria, Rainha da França, dirigindo-se para esse lugar em peregrinação, contentou-se em rezar à porta do seu oratório. Os escoceses contam que, durante esse tempo, tendo vagado o trono da Escócia, os deputados desse país vieram implorar a São Fiacre que subisse ao poder, mas ele recusou, humilde, mas firmemente. O santo anacoreta morreu a 30 de agosto de 670, e foi  enterrado em seu oratório.

    Milagres sem conta tornaram seu nome célebre na França, onde geralmente os jardineiros o honram como seu patrono. Com efeito, rezando em seu oratório e trabalhando no seu jardim, São  Fiacre mereceu um trono no Céu. Um jardim, também como um oratório, pode tornar-se um lugar de meditação e de prece.

    Modelo de fidelidade ao primeiro propósito

    Não sabemos o que mais especialmente assinalar nessa narração: a beleza das várias peripécias que a vida desse Santo teve, ou o conjunto dos fatos que se ligam para deixar um perfume de  legenda em torno dele.

    Do ponto de vista da pulcritude das peripécias, poucas coisas são mais belas do que imaginarmos um Santo, filho de um rei, que vai para um lugar distante, foge das pompas da realeza, põe-se  numa floresta, encontra-se com outro Santo, e os dois se dirigem juntos a um lugar na floresta onde acham um ponto adequado para viver; e esse príncipe passa lá a vida inteira, renunciando às  honras da realeza.

    Mas, depois de praticar por longo tempo a vida eremítica, ele recebe uma oportunidade de se arrepender do que fizera, uma ocasião para voltar ao trono do qual talvez tivesse nostalgia. Ele recusa  essa segunda possibilidade, e morre como simples jardineiro e humílimo guardião de hospital, na floresta de Breuil, na França, na Diocese de Meaux.

    Acho que talvez a segunda recusa seja mais nobre e bela do que a primeira. Porque uma coisa é um homem deixar algo dele. Muitas vezes, pelo costume que ele tem daquilo que vai abandonar, o  indivíduo não sente a falta que lhe fará; depois, ele ainda não experimentou a amargura daquilo para onde ele vai, não imagina bem a coisa como ela é. Pode-se conjeturar que para um príncipe  habituado a um palácio real, e um pouco farto das pompas régias, seja muito sedutor e atraente a ideia de, em certo estado de espírito, ser um solitário na floresta.

    Mas depois que o príncipe deixou o principado e foi morar na floresta, ele viu quanto dói não ser príncipe, e a floresta já perdeu a sua poesia; ele passa a encetar uma luta contra bichinhos, contra  o calor, contra mil coisas prosaicas da vida de todos os dias, e tem a oportunidade de aquilatar bem o sacrifício que fez. Então, na segunda ocasião recusar pode ser muito mais nobre do que na  primeira.

    Lembro-me de um caso contado por um ímpio inglês do século XIX, que em certa ocasião fora visitar uma Cartuxa na Espanha. Olhando para o lugar com um belo panorama, aqueles frades  procedendo muito bem, ele teve uma exclamação: “Que lindo local!” E o cartuxo – naturalmente é uma piada ímpia –, rompendo  a regra de silêncio, disse para ele: “Lindo para ver, horrível para ficar.”

    E caiu no silêncio de novo, para terminar seus dias na Cartuxa. O dito era ímpio, mas exprimia algo de verdadeiro. As situações mais belas ao entrar, depois são, às vezes, duras de ficar. E vemos  esse homem que permanece a vida inteira fiel ao primeiro propósito de sua juventude. Aqui está uma beleza de fidelidade, de continuidade que devemos apreciar.

    É próprio da Igreja civilizar e até dulcificar a natureza

    De outro lado, notamos também que quadro extraordinário: o  silêncio da floresta de Breuil, na Diocese de Meaux, naquele isolamento – de uma natureza que era mais vigorosa do que a natureza  europeia de hoje –, entra dia, sai dia, entra noite, sai noite, ninguém passa, e apenas aquele Santo reza, isolado! E como é próprio da Igreja civilizar e até cultivar, plantar e dulcificar a natureza,  São Fiacre vai, aos poucos, empurrando a erva daninha e a natureza selvagem de perto de si, e assim vai nascendo em torno de sua cabaninha um jardinzinho. Podemos imaginar o Santo que acaricia a florzinha, planta mais um pouco e dá glória a Deus franciscanamente, pela admiração à flor que vem nascendo.

    Depois, o viajante que é um perseguido e passa por ali, o Santo o consola, dá-lhe um bom conselho, e o forasteiro conta posteriormente na cidade que existe naquela floresta um eremita…Vem,  então, um doente que o Santo cura. Aos poucos, aquilo se transforma numa ermidazinha e num hospitalzinho, e aquela obra toda vai se ampliando e, mais do que isso, como um perfume de odor agradável a Deus, a reputação desse Santo se estende por toda a zona.

    Vai além da floresta de Meaux, ganha as aldeias, chega até às capitais, e os príncipes e as princesas organizam excursões para beijar o pé do Santo, que os recebe com humildade, respeitosamente,  deixa-os fazer, cura-os, consola-os, etc. Então se diz que um novo Santo surgiu na França, é o grande São Fiacre. Assim, há um aroma de Jesus Cristo que se espalha por toda uma região.

    Fiacre, um nome que repercute até os dias de hoje

    Para termos ideia da sua personalidade basta notar isto: a permanência da proibição imposta por ele, não permitindo que as mulheres entrassem lá. Pois bem, as próprias mulheres amaram essa  proibição. E mesmo quando uma rainha esteve em visita ao local, ela que, como soberana, podia violar a clausura de acordo com o Direito Canônico, não a transgrediu porque São Fiacre não tinha  querido. Ela ajoelhou junto à porta e, com toda a majestade de Infanta da Espanha, de Arquiduquesa d’Áustria, de Rainha da França – não se podia ser mais do que isso! – osculou as grades que  outrora São Fiacre tinha feito para que ela não entrasse. Isso tudo indica uma espécie de veneração que se estende de geração em geração, e torna São Fiacre célebre na França.

    Como vimos, São Fiacre é, até em nossos dias, o patrono dos jardineiros na França, e concorre com um outro Bem-aventurado Fiacre, que dirigia carros de rua em Paris no século XVI, e do qual  veio o nome de fiacre para os carros de aluguel, que durante algum tempo havia na Europa. Recebiam o nome de fiacre por causa do segundo São Fiacre. E assim o nome Fiacre vem retumbando até os dias de hoje.

    Essa é a beleza da vida dos Santos, a maravilha dessa graça que se evola e perfuma toda a História, e descansa nossas almas. Depois de passarmos o dia com aborrecimentos, às vezes também com  decepções, considerar a festa de um São Fiacre é algo que nos dá repouso, distensão e nos faz compreender um pouco daquele perfume que, outrora, teve a Idade Média. Régine Pernoud escreveu   um livro intitulado A Luz da Idade Média. Nós poderíamos redigir um com o título “O perfume da Idade Média”, com todos esses imponderáveis que a Idade Média trazia consigo.

    Em meio às trevas dos dias de hoje, podemos pensar no que será o Reino de Maria, após os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima. Quem sabe se ouviremos também falar da glória de  algum Santo que, num lugar inteiramente ermo, deserto, onde só há árvores – e sobre o qual algum erudito de então dirá ter sido a região central de uma grande megalópole contemporânea –, glorificará a Deus, num isolamento espantoso.

    Então, diremos a um de nossos irmãos de vocação: “Lembra-se do tempo em que se comentavam as peculiaridades daquele centro urbano horroroso? Agora não resta nada, mas existe a glória de  tal Santo, de cuja vida se contam tais e tais episódios”. E nossos olhos se fecharão em paz, com a ideia de que o perfume do Céu voltou para a Terra, e o Céu e a Terra estão unidos e reconciliados.

    Esta é a perspectiva que encontramos diante de nós.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/8/1968)

    1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XV, p. 339-344.

  • Comentários à oração composta por Santo Agostinho ao Divino Espírito Santo

    Prece ao Espírito Santo

    Ó Divino amor, ó vínculo sagrado que unis o Pai e o Filho, Espírito onipotente, fiel consolador dos aflitos, penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz. Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez. Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.

    Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada.

    Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas.

    Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem.

    Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.

    Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência.

    Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos.

    Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos.

    Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza. Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita, minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias. Amém.

    (Fonte: prière au Saint-Esprit tirée des oeuvres du grand Docteur de l’Eglise d’Occident)

     

    Eu queria, antes de ser feita leitura, dizer o seguinte: o voo que essa oração tem, ainda quando não se detenha em analisar cada palavra. Mas Santo Agostinho começa e já vai voando não sei para que altura.

    A oração é lindíssima e há passagens que é preciso considerar.

    “Fiel consolador dos aflitos”. – A consolação não é apenas trazer um sentimento de doçura e de ânimo que possa compensar a aflição que se está sofrendo. Mas é o fortificador. “Consolador” propriamente é dar força. Então “fiel consolador” é quem dá força sempre. Tonificador e fortificador contínuo dos aflitos: isso nos dá muito mais precisão do que nós devemos pedir. Não é apenas que tenhamos uma sensação de alento, de ânimo, de doçura, nos abrolhos de uma provação muito profunda, mas que tenhamos a força para resistir a essa provação. E não se trata de uma força de bravata, de espadachim, é uma força forte mesmo! É disso que se trata.

    “…penetrai nos abismos profundos do meu coração e fazei aí brilhar vossa resplandecente luz”. – Aqui também é necessário considerar a palavra “coração”. Ela abrange a afetividade e ocupa aí não um lugar de contrabando, mas um lugar digno, porém é muito mais: são os abismos da alma onde se desenrola a Revolução tendencial; é – digamos assim – um certo “subconsciente da alma”. Então pede que esta força do Divino Espírito Santo penetre aí e que dê à pessoa o que é próprio à força. É um lugar misterioso da alma em que há trevas: é difícil perceber o que lá dentro se passa.

    Outro elemento a se observar: não pede tanto uma palavra quanto uma luz. Os senhores vêem o alcance da oração.

    “Derramai vosso doce orvalho sobre essa terra deserta, a fim de fazer cessar sua longa aridez.” – Ele supõe que as profundezas desta alma estejam na aridez. É, portanto, uma alma que está atormentada pela provação da aridez. O que pede então para isso? “Vosso doce orvalho sobre essa terra deserta…” Os senhores estão vendo que aí está mais próximo da palavra “consolação” no sentido comum do termo, ou seja, é um bálsamo, uma suavidade, um orvalho, algo desse gênero.

    “…vosso doce orvalho sobre essa terra deserta.” – Ele não se refere a uma terra seca, mas é uma terra onde não há nada, uma terra vazia. E é nesse vazio da alma que deve vir um doce orvalho. São esses vazios interiores que se tem e que se traduzem do seguinte modo: cada um de nós – isso constitui até uma obrigação de polidez – no trato, causa a impressão de bem-estar, de satisfação, etc. Porém há uma certa região da alma onde, por efeito do pecado original, a pessoa sente a saciedade de si mesmo e ao mesmo tempo uma espécie de insuficiência. Não se basta a si próprio, sente-se uma solidão interior que constitui um tormento. E querer fazer cessar esse tormento é uma das molas do instinto de sociabilidade. A pessoa fica com a ideia de que a companhia de A, B ou C pode estancar esse sentimento de carência e não há maior engano, porque ninguém pode fazê-lo a não ser o Divino Espírito Santo. E qualquer outra coisa que não seja isso, é uma ilusão e uma estupidez que não tem nome.

    “Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma, de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores.” – Os senhores estão vendo que ele toma esta “terra deserta” e a trata ao mesmo tempo de “santuário”, porque há uma continuidade na descrição do estado de alma da pessoa.

    Diz: “Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma“ – Esta terra deserta é ao mesmo tempo um santuário. Mas um santuário que ele figura abandonado, que compara a uma terra deserta. É um santuário que está no escuro. Como isso descreve bem certos estados de alma, certas crises espirituais, em que o interior da alma é ao mesmo tempo uma terra deserta e um santuário no escuro.

    Não sei se lhes é tão claro quanto me parece a ideia do santuário no escuro que precisa ser penetrado pelas flechas vindas do Céu, que só elas podem penetrar até lá. Vê-se que ele não espera de outrem esta solução, nem este arranjo. São as flechadas, os dardos vindos do Céu que podem penetrar nesta terra deserta e fazer ali algo que só Deus pode realizar.

    “Enviai os dardos celestes de vosso amor até este santuário de minha alma”. – O amor sobrenatural a Deus é algo que de Deus parte, que Ele mesmo dá. E que quando não dá, não vem de dentro da alma. É um dom dEle. E é pela oração que  devemos obter esse dom. E devemos pedi-lo por meio de Nossa Senhora, a Medianeira universal de todas as graças. E quando nossa alma está como terra deserta, ou santuário na obscuridão, é este o momento exato de pedir isto que vem do Céu, e que se acende porque só Deus pode iluminar isto. Só Deus pode acender, só Deus pode reacender e dEle é que tudo isso procede, a rogos de Nossa Senhora. Como é útil nós nos lembrarmos disso na nossa vida espiritual!

    “…de modo que nela penetrando acendam chamas ardentes que consumam todas as minhas fraquezas, minhas negligências e meus langores”. – Então, é nesta terra deserta, nas sombras tenebrosas desse santuário que está no escuro, que há “faiblesse, négligence et langueur” (fraquezas, negligências e langores). A enumeração é muito saborosa, porque não menciona perfídias, maldades, intenções atrozes, crueldades. Ele toma uma certa família de defeitos e menciona. Esses defeitos são: as fraquezas; negligências, que são um fruto da fraqueza: quando o indivíduo não resiste à fraqueza, o fruto normal é a negligência; langores… É quase a causa e o efeito. Os langores vêm das fraquezas, estas e os langores produzem as negligências. É, portanto, a alma mole.

    Isso é um estado de alma de um número incontável de fiéis de nossos dias diante da situação da Igreja Católica. E se os bons da causa da Contra-Revolução são tão isolados e tão abandonados, não o seriam se simplesmente essas almas não fossem nem negligentes, nem fracas, nem langorosas. Aqui Santo Agostinho tem em vista – por uma razão que não sei qual seja – uma linha especial de almas. Não são os bandidos, não são os que conspiram em guerras, os que querem morticínios, não é disso que se trata. Ele tem aqui especialmente em consideração os “santuários abandonados”, esse gênero de fraqueza e de moleza…

    “Vinde, vinde doce Consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada”. – Considerem bem aqui a ideia de uma doçura forte, ou de uma força doce. É muito próprio ao sabor das coisas celestes nos fazerem sentir a bondade, a doçura de Deus, ao mesmo tempo que ipso facto comunicam uma força muito grande. Por exemplo, quando somos objeto de uma graça que nos fale da doçura do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria, e experimentamos tal doçura. Sem percebermos saímos mais resistentes às tentações, mais fortes no perigo, mais perseverantes na Fé. Quer dizer, uma doçura que comunica força! Não há, portanto, uma dicotomia entre força de um lado e doçura de outro. A doçura comunica força, a força comunica doçura. É  uma coisa só.

    “…doce Consolador das almas desoladas”. – A desolação não é uma tristeza qualquer. É uma espécie de auge, de píncaro de tristeza. Na linguagem comum, quando se diz “estou desolado”, não se quer dizer apenas que estou muito triste. Mas “estou tristíssimo, em mim não há quase senão tristeza”. Não exclui naturalmente a fórmula de cortesia: “Estou desolado, estou…” Não exclui isso. Mas aí a palavra fica balofa, como tantas coisas que a cortesia neo-pagã torna balofas. Entretanto o sentido próprio da desolação é esse. Nós podemos falar da desolação de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, pois foi uma desolação.

    “…refúgio nos perigos”. Quais são os perigos? Os perigos que ele tem em vista não são principalmente os do corpo, mas os que afetam a alma. A salvação da alma é continuamente posta em perigo por toda espécie de circunstâncias. O refúgio nesse perigo é o Divino Espírito Santo, com suas graças, sua ação nas profundidades de nossa alma, etc. E com isso eu gostaria – se me fosse possível – comunicar às almas uma certa segurança. As pessoas sentindo dentro de si o enigmático desse santuário no escuro e desta terra árida, ficam achando que têm dentro delas problemas que não vão vencer, e se põem meio desanimadas de continuar no caminho da salvação. Se se tiver em vista que o Divino Espírito Santo é o Esposo de Nossa Senhora, e que não recusa coisa nenhuma a Ela, as pessoas terão ânimo, porque para tudo isso o Espírito Santo é o remédio. Podem pedir as graças dEle e obterão.

    “…Protetor na aflição desamparada” (détresse). – “Détresse” é uma palavra muito bonita. “Détresse” é uma aflição desamparada, um apuro muito carregado. Quantas situações de vida espiritual há assim? A pessoa está na “détresse”, pede ao Espírito Santo e contra o curso normal dos seus pensamentos, a concatenação normal das suas idéias, a pessoa sai da “détresse”. É uma impressão qualquer, uma coisa qualquer, que toca a alma e muda. É a ação do Divino Espírito Santo…

    “Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordícies, e que curais suas chagas”. – A construção da frase, se está bem traduzida do latim, é a seguinte: Vós sois quem por excelência lava as almas. Quer dizer, “Vós que fazeis isto”, inclina o espírito a admitir: “Vós que sois o único a fazer isto”. É para onde propende o espírito.

    Aqui, mais uma vez, é um alento cheio de doçura. Porque as pessoas muitas vezes consideram o interior de suas almas e notam-no tão cheio de chagas purulentas, tão cheias de sordícies, que a pessoa desanima. Mas é claro que vai desanimar, porque ela não tem força para isso! É preciso uma força do Céu que lhe dê ânimo, que lhe dê meios para isto, ou que opere isto, por vezes sem que ela tenha que fazer outra coisa senão dizer “sim”. Entra aquela luz e cura a alma…

    Mas por que, na nossa vida espiritual, não temos toda a esperança, todo o ardor que este modo de ver a ação do Espírito Santo comunica? É ou não verdade que essa consideração daria às nossas almas outro élan para subir, para continuar para frente do que habitualmente nós temos?

    “Vinde, força dos fracos, apoio daqueles que caem”. – É tão claro que não tenho nada a dizer.

    “Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.” – Isso é muito bonito! O doutor que esclarece, que ensina aos que são humildes, antes de tudo em face dEle. E que, portanto, não são orgulhosos que imaginam que sua cabeça contém a solução para todos os problemas, mas sabem que é o Divino Espírito Santo que possui a solução para todos os problemas. E que é preciso rezar, é preciso pedir, é preciso implorar, mas implorar muitas vezes e com humildade. Eu não resolvo, eu Plinio, porque não sou capaz de resolver! Mas se eu rezar, também não obtenho. Se eu pedir por meio de Nossa Senhora, Ela que é Mãe de misericórdia reza por mim e Ela obtém. Mas aí é fácil, é seguro e é rápido que obterei. Isso me mantém alegre e de pé no meio das aflições que todo homem tem no meio desse vale de lágrimas. Eu tenho receio de estar dizendo banalidades…

    A oração tem uma concisão, uma substância extraordinária!

    “Vinde, Pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência”. – Aqui também se deve considerar o lado da vida espiritual, que é sempre o que o Santo tem em vista antes de tudo: a santificação de quem vai rezar, que vai usar a fórmula.

    “…Pai dos órfãos…” – Quanto órfão existe em matéria de vida espiritual! (…) Como o homem ao longo da viagem nesta terra é um órfão! Ainda que ele atinja os 81 anos, é um órfão! Então Ele é Pai dos homens que sentem a terrível orfandade desta vida. Esta vida é uma orfandade.

    “…Pai dos órfãos, esperança dos pobres…” – É aquele que não tem nada para esperar, e que internamente é um pobre, quer dizer, não tem títulos para pedir, não tem direito quase de pedir, vive da misericórdia. É dele que o Divino Espírito Santo é Pai cheio de bondade, de acessibilidade.

    “…tesouro dos que estão na indigência” – Não temos diante de Deus méritos nenhum para alegar. Estamos na indigência. Mas o Divino Espírito Santo é o nosso tesouro. Nós pedimos e Ele dá.

    Estão vendo quanta substância contém essa oração e quão magnífica ela é?!

    “Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos que náufragos”. – São dois conceitos: um é a estrela dos navegantes. O que lembra a invocação a Nossa Senhora: Ave Maris Stella. Se Ela é a Estrela do Mar, Ela é a Estrela dos que navegam, evidentemente. Mas, então, por que se diz do Espírito Santo a mesma coisa que d’Ela se diz? Porque o que se diz da Esposa, se diz também do Esposo. E Ela é a Estrela dos navegantes porque Ela é a Esposa mística daquele que é a Estrela dos navegantes por excelência, que é o Divino Espírito Santo.

    Ou seja, para todos que vão andando pela vida, com os seus riscos, com seus problemas, etc., a Estrela é o Divino Espírito Santo. Ele fala primeiro dos navegantes e depois dos náufragos. O náufrago… pode se imaginar o navio que se destroçou. O sujeito se agarra a um destroço, a uma “épave”, e vai por onde as águas tocam. De repente, as correntes marítimas o levam para dentro de um porto. Esse porto é o Divino Espírito Santo. Quer dizer, os vagalhões da alma, das paixões, levam o homem de um lado para outro e ele está entregue às apetências mais desregradas, aos orgulhos mais desordenados, às coisas mais sem remédio. Para ele não há mais porto. Não há mais!… Ou seja, não haveria se não fosse a oração de Nossa Senhora ao Divino Espírito Santo, que é o porto seguro dos que naufragaram. Entrou lá, está tudo resolvido.

    “Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos”. – Vejam que bonita alternativa: força dos vivos e salvação dos que moribundos! Quase não se tem o que dizer… O homem está vivo, a vida é uma luta, ele precisa ter força. Mas ao morrer, precisa de uma graça autônoma de todas as que recebeu na vida: é a graça da boa morte. E esta salvação a pessoa tem se rezar ao Divino Espírito Santo.

    Eu toda a vida considerei muito pungente aquela cerimônia que havia nas arenas antes de começar o martírio. Havia jogo de gladiadores, depois imolavam os mártires. E os gladiadores entravam em ordem, paravam diante da tribuna do Imperador, e diziam: “Saudação a ti, ó César, os que vão morrer te saúdam! – Ave Caesar, morituri te salutant!” Quer dizer, uma coisa pungente. Aquele César – em geral um soldadão tosco, boçal, semi-bêbado, sensual, ordinário, venal, que tinha subido comprando seu cargo, refestelado na segurança da tribuna imperial – vê chegar junto a ele os que vêm em marcha, fortes, jovens, com espadas, com tridentes, com redes, com lanças, etc., para começarem o combate. E sabe que vão lutar apenas para divertir aquele pândego que está ali em cima! Situação triste na vida, mas é isto: são os “morituri” (os que vão morrer). Todo homem, quando está na iminência da morte, pode dizer não a um César imundo, mas a Deus infinitamente perfeito: “Ave, ó Deus, o que vai morrer te saúda!” É a última saudação antes da morte! Pois bem, para que essa saudação seja perfeita, é necessário o auxílio do Divino Espírito Santo, sempre a rogos de Maria, sem A qual nós não conseguimos nada.

    “Vinde, ó Espírito santo, vinde e tende piedade de mim. Tornai minha alma simples, dócil e fiel, e condescendei com minha fraqueza”. – É uma frase lindíssima, que a bem dizer perde sendo comentada, porque há uma beleza que qualquer comentário deslustra. É preciso tomar como uma fonte donde nasce a água. Não vale a pena captar a água; deixa brotar da fonte assim aos borbulhões. Assim está Santo Agostinho…

    Enfim, para meter a camisa de força do comentário de alto a baixo do texto, vem então o seguinte: “Vinde, ó Espírito santo, vinde”. – Os senhores vejam a ênfase: “vinde, vinde!  E tende piedade de mim”. Aquele necessitado de piedade implora com insistência, pede duas vezes: “Vinde, vinde!” E agora vem a enumeração do que quer da piedade. O ter misericórdia dele, para seu caso concreto, o que significa? Então vem: “Tornai minha alma simples, dócil e fiel”. As três palavras devem ser consideradas juntas, pois constituem uma espécie de tríptico. Simples é a alma que não tem requebros, vaidades, complicações. O contrário, portanto, de quem não quer se ver a si mesmo direito, que não quer olhar-se de frente, que não é “pão, pão, queijo, queijo”. Nosso Senhor disse: “Seja vossa linguagem sim, sim, não, não”. “Seja o vosso pensar interior sim, sim, não, não. Tenha a coragem de ver a verdade e o erro, mas também no que diz respeito a vós! Não é só o mundo objetivo, externo a vós, mas também no que diz respeito a vós interiormente. Tende essa coragem!”

    Esta é uma alma simples. A alma simples é dócil. Por que? Quanto mais uma alma é complicada em obedecer, tanto mais a essa alma falta simplicidade. Não sei se os senhores conhecem uma coisa que não sei se se usa hoje, mas antigamente, quando eu tinha tempo de prestar atenção nessas coisas, eu via os empregados às vezes passarem no chão uma espécie de carapinha de palha de aço para limparem o lugar, nem sei bem para o que era. Depois enceravam. Acho que era para tirar sujeira impregnada no chão.

    Há almas complicadas como aquelas palha de aço! Engruvinhada uma coisa na outra… Então se propõe uma coisa: “Pode, mas se der tal coisa, se fizer assim, e se acontecer de outro jeito, e se der uma carambola assim… então eu estou de acordo”. São as almas às quais faltam docilidade. Complicadas no obedecer. Pelo contrário, as almas simples recebem um convite do Espírito Santo: “Pois não”. Vão e fazem!… Nós poderíamos examinar um pouco: somos parecidos com a palha de aço ou retos como a lâmina de uma espada? É uma pergunta que se poderia fazer.

    Dócil e fiel. A fidelidade é muito difícil para a palha de aço; ela é muito mais fácil para o gládio. Alma-gládio e alma-palha de aço: não poderíamos fazer disso uma classificação para as almas? E se fôssemos nos analisar… Os senhores sabem o que acontece? A palha de aço começaria a ferver: “Não, é assim, mas é preciso considerar tal coisa, eu tenho tal atenuante! É verdade que tenho tal agravante… Eu vejo que você acha isso de mim e por isso é meu inimigo, você vê essa agravante! – como se ver a verdade em alguém fosse ser inimigo de alguém! – e também tem tal lado, tal, tal, tal! Em todo caso, você também tem tal coisa!” Eu não estou em jogo. Está em jogo você, meu caro! Vamos conversar… Isso é a palha de aço! Quanto há, por vezes, palha de aço em nossas almas.

    Alguém poderia, enquanto estou falando, responder: “Mas, Dr. Plinio, não tem saída, eu sou palha de aço mesmo!…” Meu filho, não diga isso… Você ajoelhe, reze a Nossa Senhora com confiança para que Ela faça vir sobre si o Divino Espírito Santo, e as coisas mudem.

     

    Mater mea, fiducia mea (Minha Mãe, minha confiança)

    “…e condescendei com minha fraqueza…” – Eu não conheço a etimologia da palavra “condescendência”. Mas sou tentado a achar, pelo sentido da palavra mais do que pela composição dela, que é “descer com”: “Tende a bondade de descer dentro de mim até o fundo, mas com bondade, em espírito de perdão, uma tendência a curar-me, a sarar as minhas chagas, e não a castigar-me. Descei até esse fundo culpado de minha alma, descei até lá, mas descei como Pai, como médico, como curador. Tende pena de mim, e sarai as minhas chagas!”. É uma oração que se pode fazer, que se deve fazer.

    E condescendei ao quê? À fraqueza. Mais uma vez é a preocupação com os lânguidos, etc. “Eu sou fraco, deveria ter energia e não tenho. Vejo outros que têm energia, e me pergunto: como é que vou sair desse buraco? Enérgico eu não sou…” Reze, meu filho! Reze com coragem, reze com ânimo! Você deixará de ser fraco.

    “Condescendei com tanta bondade, que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – Um poca, por exemplo, que só gosta de conversar sobre coisinhas, só trata de assuntinhos sem importância, que não tem alma grande para nada… Ele vê, por exemplo, uma reunião onde todos os presentes estão preocupados com grandes temas, e pensa: “Eu estou achando isso cacete. Eu gosto tanto de tratar de coisinhas… Eu tenho que resolver a que horas amanhã vou levar meus sapatos para consertar. E gosto de pensar nisso. Estão aí estas águias voando alto e eu sou tão chulo, tão droga… Eu tenho vontade de me esconder até”… Não faça isso. Faça o contrário. Mostre-se! Mas mostre-se ao olhar de Deus, o Qual, aliás, vê tudo… quer eu me mostre, quer eu não me mostre. Ele vê tudo… vê também se estou querendo me esconder como Adão e Eva depois do pecado. Então é melhor eu dizer: “Vede, Senhor, eu sou tão zero, tão poca, tão nada! Mas Vós podeis dar-me aquele nível para o qual Vós me criastes. Vinde e agi!”

    “…que minha pequenez ache graça diante de vossa grandeza infinita”. – O que significa “encontrar graça”? É Deus considerar do alto de Sua onipotência a minha impotência. E considerando exatamente a minha impotência, Ele vê nisso uma razão para sorrir e me tratar com bondade e me suspender, dar-me um poder que eu não tenho. Esse é o sentido dessa oração.

    … minha impotência diante de vossa força, minhas ofensas diante da multidão de vossas misericórdias”. – Tal é a multidão de vossa misericórdia, que encontro – para qualquer espécie de culpa que tenha – a vossa bondade que vem de encontro a mim.

    Isso seria o sentido da oração! A qual recomendo aos senhores que guardem. Eu peço a um dos senhores para dar ao Sr. Fernando a fim de guardar para mim, porque no meu bolso vai se transformar num “chiffon” a qualquer momento. E que a rezem de vez em quando, tendo um movimento para tal, pois seria sumamente conveniente.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Domingo, 20 de maio de 1990)

  • Uma verdadeira procura do Absoluto

    No colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e Santo Agostinho, vemos a beleza de dois Santos conversarem sobre como seria a vida eterna dos bem-aventurados, e a alegria daquela mãe santa em ver o filho, outrora perdido, incendiado de desejos de contemplar o Céu.

    É uma verdadeira procura do Absoluto. Depois de terem considerado todas as coisas materiais, começaram a contemplar as espirituais e a alma, como elemento para se ter ideia da beleza da perfeição de Deus. Por fim, chegaram à conclusão de que, no ápice de tudo, figura a Sabedoria eterna e incriada.

    Esses dois Santos mantêm uma conversa que é uma oração, a qual vai subindo de ponto em ponto até chegar, num êxtase, ao seu ápice. Tudo isso com tanta simplicidade, junto à janela de um quarto dos fundos de uma hospedaria de Óstia, dando para um jardim. Uma verdadeira maravilha!

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/8/1965)

  • Santo Agostinho

    Quando lemos as “As Confissões” de Santo Agostinho, facilmente aquilatamos a profundidade de sua alma e a retidão de seu espírito de convertido. Podemos “ouvir” nas linhas o latejar de seu coração arrependido pelos pecados de sua vida passada, e nos é dado admirar, semeado por aquelas páginas imortais, o talento maravilhoso de um homem chamado por Deus a enriquecer a Igreja com altíssimos ensinamentos e explicitações.

    O belo e vigoroso alçar de uma águia aos ares, atraída pelos fulgores do sol, nada é em comparação com o voo luminosíssimo do pensamento de Santo Agostinho. Ele se eleva no firmamento da doutrina católica com um ímpeto que se diria quase inimaginável numa alma humana.

    Pois esse foi o grande Bispo de Hipona, uma das maiores intelectualidades que houve na História, um gigante da Fé, da sabedoria e da santidade, para todos os séculos até o fim do mundo..

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • Santo Agostinho, farol de sabedoria e de amor a Deus

    De pecador a modelo de perfeição espiritual, Santo Agostinho abraçou a Fé católica com fervor e zelo invulgares, defendendo-a e a enriquecendo com a extraordinária inteligência que lhe foi concedida por Deus. Algumas facetas dessa grande figura da Igreja reluzem aos nossos olhos, comentadas por Dr. Plinio.

    Considerado um dos mais luminosos teólogos da Igreja em todos os tempos, Santo Agostinho legou à História não apenas seus tratados espirituais, como também a narrativa da própria conversão, a descrição de suas lutas interiores e de seu triunfo sobre o pecado. “Confissões”, a célebre obra do Bispo de Hipona, tem produzido inúmeros frutos de emenda de vida, de retomada do caminho da virtude, por parte dos que se deixaram tocar pelo exemplo desse herói da Fé.

    Antes de comentarmos uma eloquente passagem dessa autobiografia, convém tomarmos conhecimento de alguns breves contornos do perfil de Santo Agostinho.

    Retórico e filósofo ilustre

    “Pai por excelência de todos os Padres da Igreja, Doutor da graça, monge, pastor, teólogo, autor de uma obra monumental e escritor de gênio, Agostinho permanece o símbolo vivo do convertido, não cessando de influenciar o espírito e o imaginário da Europa.

    “Esse romano da África, de origem berbere, nascido no ano de 354, em Tagasta, na atual Argélia, alcançou grande renome por seu extraordinário domínio das artes liberais, e foi considerado por seus contemporâneos como o mais ilustre dos retóricos e o mais autorizado dos filósofos. Adepto de Cícero, o jovem Agostinho vai para Cartago, e depois para Roma e Milão, que era então a capital do Império. As suas peregrinações espirituais o levaram a aderir ao maniqueísmo, mas é o encontro com o cristianismo que vai revolucionar a sua existência. Aos trinta e dois anos, por insistência de sua mãe, Santa Mônica, e de Santo Ambrósio, e após uma revelação sobrenatural nos jardins da sua casa, Agostinho pede que seja batizado.

    “Diz uma tradição que, terminada a cerimônia do Batismo, Santo Ambrósio exclamou: ‘Te Deum laudamus!’, e que Santo Agostinho acrescentou: ‘Te Dominum confittemur!’; e assim, alternando suas frases um e outro, entre os dois improvisaram naquela ocasião os conceitos e palavras que compõem o cântico litúrgico do ‘Te Deum’.

    Incansável adversário da heresia

    “Depois de um breve retiro em Cassiciaco, Agostinho volta à sua terra natal, torna-se monge e consagra três anos à oração e ao estudo.

    “Em 391, O Bispo Valério de Hipona (atual Annaba) chama-o para junto de si. Agostinho suceder-lhe-á em 395 nessa importante sede episcopal. Começa então para esse pregador e catequista infatigável uma era de grandes controvérsias — contra os donatistas, em primeiro lugar, que negam aos ‘lapsi’ (apóstatas) o perdão da Igreja; em seguida contra os pelagianos, que atribuem exclusivamente ao homem o mérito da salvação.

    “O Bispo de Hipona descobre em si uma vocação de lutador contra as heresias, capaz não só de inscrever a sua reflexão nas problemáticas do seu tempo, como também de edificar uma autêntica Teologia perene. No fim da sua vida, já em plena invasão dos Vândalos, enfrentou um último desvio à Fé: o dos homeanos, que negam o dogma cristológico.

    A tristeza, companheira no fim da vida

    “Por volta do ano 430, os bárbaros devastam totalmente o norte da África. Ao atingirem Hipona, os invasores a cercaram e lhe impuseram um rigoroso assédio. Este acontecimento agravou a já amarga e triste ancianidade de Santo Agostinho, que sofreu mais do que todos, e se alimentou de dia e de noite com a torrente de lágrimas que brotavam de seus olhos ao ver como uns caíam mortos e outros fugiam, e ao considerar que as igrejas ficavam viúvas de seus sacerdotes, e as populações arrasadas se transformavam em desertos.

    “Como os horrores continuassem, reuniu seus monges e lhes disse: ‘Pedi ao Senhor que nos tire desta angustiosa situação, ou nos dê forças para suportá-la, ou me leve desta vida e me livre de presenciar tantas calamidades’.

    “O Senhor o ouviu e lhe concedeu a terceira dessas petições. Meses após o início do cerco da cidade, Santo Agostinho caiu enfermo. Compreendendo que o dia de sua morte se aproximava, mandou que escrevessem os Sete Salmos Penitenciais em grandes cartazes e os pregassem a uma das paredes de sua cela, de maneira a poder lê-los e rezá-los a partir do leito em que se achava prostrado. Assim foi feito, e o Santo, sempre com imensa emoção de alma, recitava constantemente ditas orações.

    “Pouco antes de sua morte, Santo Agostinho teve essas interessantes palavras: ‘Ninguém, por muito virtuosamente que tenha vivido, deve sair deste mundo sem fazer previamente confissão de seus pecados e sem receber a Eucaristia’.

    “Até o último momento de sua vida conservou perfeito estado de suas faculdades, seus membros e sua vista, de maneira que, com completa lucidez mental, no instante supremo, rodeado de seus monges que o assistiam com suas preces, aos 77 anos de idade e 40 de episcopado entregou seu espírito a Deus.

    Apaixonado investigador da verdade

    “Luminosíssimo farol de sabedoria, baluarte da ortodoxia, fortaleza inexpugnável da Fé, sobressaindo em talento e ciência entre os demais doutores da Igreja, Agostinho foi homem eminente, tanto pelos exemplos de ­suas virtudes, quanto pela riqueza de sua doutrina.

    “A obra que deixou é imensa. Cento e treze Tratados, entre os quais se destacam o ‘De Trinitate’ e ‘A Cidade de Deus’ que inaugura a teologia da História; 218 epístolas, mais de 500 ‘Sermões’, ‘Diálogos’ e ‘Comentários’ bíblicos, e, por fim, essa obra singular que são as ‘Confissões’, a primeira autobiografia de todos os tempos.

    “A sua teologia, feita de experiência e permanentemente existencial, eleva-se até a contemplação pura, sem ignorar a psicologia, a historicidade, a realidade humana. Da iluminação fulgurante da sua juventude ao final da sua velhice, Santo Agostinho nunca deixou de meditar sobre o dom feito por Deus ao homem, e que faz dele um investigador apaixonado da verdade.”

    “Dai-me o que me ordenais; ordenai-me o que quiserdes!”

    Vemos, portanto, como Santo Agostinho se destacou não apenas por suas insignes virtudes, mas também pela luminosa sabedoria que Deus lhe concedeu, a fim de a utilizar para o bem das almas e da doutrina católica.

    Em seu famoso livro autobiográfico — “Confissões” — tem ele esta linda passagem sobre a qual gostaria de tecer alguns breves comentários:

    “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova. Tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém, chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez. Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho sede e fome de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz. Só na grandeza da vossa misericórdia coloca toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes.

    “Ora, afirmou um sábio: ‘É já um efeito da inteligência saber que ninguém pode ser casto sem o dom de Deus’. Pela continência, reunimo-nos e nos reduzimos à unidade, da qual nos afastamos ao nos derramarmos por inumeráveis criaturas. Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra criatura sem ser por vossa causa. Ó amor que sempre ardeis e nunca Vos extinguis! Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me! Ordenais-me a continência. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes!”

    Trata-se de um texto tão elevado e nobre que sua intelecção pode parecer, à primeira vista, um pouco árdua.

    Belos jogos de palavras

    Santo Agostinho faz alguns jogos de palavras, muito apreciados pelos antigos. Não sei como soam e que sabor têm na audição e no paladar espiritual das gerações posteriores à minha, mas a meu ver são lindíssimos.

    Como se sabe, Santo Agostinho se converteu na idade madura, após ter levado uma vida de pecados. Por isso, se dirige a Deus dizendo: “Tarde Vos amei”, e utiliza o primeiro jogo de palavras: “Ó Beleza tão antiga e sempre nova”. O Criador é antigo, pois, sendo eterno, existiu antes de todos os séculos. Mas é uma Beleza sempre renovada, porque é infinito, manifestando continuamente algo de inédito à nossa consideração. E o homem, adorando-O por tais predicados, encontra em Deus a plenitude, a perfeição expressa pelo aludido jogo de palavras. Este como que vincula dons antitéticos que o espírito humano não saberia unir.

    Exclama o Santo: “Eis que habitáveis dentro de mim e eu lá fora a procurar-Vos!”

    Em todos os homens, sobretudo nos batizados, Deus age de modo permanente através da ação da graça. Portanto, o Altíssimo permanecia no interior de Santo Agostinho. Porém, como um louco, ele O procurava fora, almejando um contentamento que as criaturas não dão, pois a verdadeira felicidade está dentro de nós.

    Vemos, então, outro jogo de palavras: dentro e fora. Ele possuía, no mais fundo da alma, aquilo que tinha o desatino de procurar fora.

    Continua o Bispo de Hipona: “Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!”

    Quer dizer, Deus habitava em seu interior, mas ele não permanecia com o Senhor. É uma antítese, sem ser uma contradição.

    Recebemos graças para obedecer às ordens divinas

    Em certo trecho, Santo Agostinho tem esta linda afirmação: Deus nos proporciona aquilo que nos ordena. O que significa isso?

    Quando o Criador nos prescreve um mandamento, nos concede anteriormente a possibilidade de observá-lo. Assim, antes de nos preceitua a castidade, Ele nos dá a graça para praticá-la. Pois Deus, ao contrário de certos dirigentes humanos, é um bom Pai e nos governa pelas regras da sua inesgotável misericórdia.

    Com base nessa concepção, Santo Agostinho apresenta uma interessante justificativa para a castidade. Segundo ele, o bem de cada ser e o da ordem do universo é a unidade. O homem puro é aquele que ama a Deus acima de tudo, e as outras coisas por amor ao Criador. Pelo contrário, o impuro corre atrás de mil criaturas, e nessa espécie de pluralidade se afasta da unidade originária, primitiva, para a qual deve tender. Ao agir assim, ofende a ordem do universo.

    Tal visualização encerra uma maravilhosa repulsa da poligamia e do divórcio, e é mais valiosa, penso eu, do que qualquer refutação sociológica contra esses desvios morais. Pois a metafísica é muito mais apropriada para convencer o espírito humano do que os dados técnicos, mesmo quando acompanhados de argumentos de índole psico-social. Creio que em qualquer época de minha vida, esse raciocínio a favor da castidade, baseado no conceito da unidade, convenceria mais do que todos os outros.

    Com esses breves comentários é-nos dado recordar, então, a memória deste extraordinário varão de Fé e de sabedoria, exemplo fulgurante de amor a Deus, que foi o grande Santo Agostinho de Hipona.