Categoria: Santos do dia

  • Protetores e advogados do homem

    Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

    Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

    Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

    Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • São Pacífico, uma vítima expiatória

    A pequena quantidade de água colocada no cálice, durante a celebração da santa Missa, simboliza o sofrimento do homem que, de certa forma, completa os padecimentos de Cristo. Ilustram de  modo marcante essa verdade os sofrimentos atrozes de São Pacífico, suportados com toda a paciência, calma e cordura, por amor ao Redentor.

    No dia 24 de setembro celebra-se a memória de São Pacífico de São Severino, confessor. Temos os seguintes dados biográficos a respeito dele(1):

    Apostolado do sofrimento

    Em São Severino, nas Marcas de Ancona, nasceu São Pacífico, no dia 1º de março de 1653, de uma família empobrecida, de nome Divini, na qual havia treze filhos.

    Aos quatro anos, perdeu o pai e a mãe, e junto com outros de seus irmãos foi para a casa de um seu tio eclesiástico, homem duro, cujas duas criadas maltratavam e escravizavam os meninos.

    Pacífico havia recebido precocemente, de sua mãe, uma boa formação religiosa, que o ajudou a não se sentir desesperado naquele lar sem carinho e a seguir a vocação religiosa que o atraía.

    Aos 17 anos, ingressou no Convento dos Franciscanos Reformados de Forano, recebendo Ordens Sacras e passou a ser professor de Filosofia no convento.

    A parábola do Senhor, segundo a qual a messe é grande e poucos os operários, não se afastava de sua mente, e ele concluiu que o mundo não precisava de doutores, mas de apóstolos. Falou disso a seu Provincial, que o dedicou, em 1683, a tarefas missionárias.

    Assim, durante cinco ou seis anos, pregou ativamente. Seu ideal era converter os infiéis e sofrer o martírio. Mas Deus havia reservado a esse caçador de almas outro apostolado: o do sofrimento.

    Os pés se lhe incharam e cobriram-se de chagas, e essa doença não o deixou até a morte. Em seus períodos de melhora, foi guardião no Convento de São Severino e pôde dedicar-se muitas horas à Confissão.

    Entretanto, ficou totalmente surdo, de tal forma que não mais conseguia comunicar-se com os que o rodeavam. Mas com isso intensificou sua união com Deus.

    A perda desse sentido não foi o bastante. Pacífico ficou também cego. Durante os últimos anos de sua vida, não pôde mais ir ao coro nem celebrar a Santa Missa.

    A essas dores físicas somaram-se outras de ordem psíquica. A vida eclesiástica converteu-se para ele numa caminhada pelo deserto, em meio ao maior abandono e angustiado por uma ardente sede de Deus.

    E, como os piores inimigos do homem são os seus semelhantes, São Pacífico encontrou algumas pessoas de seu convento — como o sacristão e o enfermeiro — que o maltratavam por palavras e ações, com que o santo, com sua inesgotável e firme paciência, tornou-se um modelo de quantos carregavam esta cruz.

    Faleceu a 24 de setembro de 1721.

    Hóstia pura, santa, imaculada para expiar pelos pecadores

    Estamos aqui diante de uma das mais belas vocações que existem na Santa Igreja: a de vítima expiatória. Porém ninguém deve oferecer-se como vítima expiatória, sem licença de seu confessor.

    Como vimos, trata-se de um santo que primeiro estudou e foi aproveitado para ser professor. Mas depois, levado pelo zelo e entendendo que deveria haver na Igreja mais missionários do que doutores, quis se entregar à pregação. E por essa forma ele fez certo bem, durante alguns anos. Entretanto a Providência o chamava para um superior apostolado, que é o dolorosíssimo apostolado da Cruz.

    Ele foi levado pelo trajeto comum da via das vítimas expiatórias. É como um círculo que vai se apertando, desventuras que o vão cercando cada vez mais, até lhe criarem, em determinado momento, uma situação paroxística, dentro da qual ele morre.

    E assim como Nosso Senhor, na sua Alma e no seu Corpo santíssimos, foi recebendo tormentos e mais tormentos até chegar à crucifixão, e dentro desta a um extremo de dor que O levou à morte, também essas almas vão sendo assediadas de sofrimentos múltiplos até o momento em que, a bem dizer, elas morrem de dor. E entregam sua vida como uma hóstia pura, uma hóstia santa, uma hóstia imaculada, para expiar pelos pecadores. Foi o que se deu com São Pacífico.

    Sofrimentos causados por chagas nos pés, surdez…

    Primeiro, foi atingido por uma doença que provavelmente o condenou à imobilidade: chagas nos pés. Certamente por causa disso ele se dedicou, sobretudo, ao confessionário: porque é uma forma de ministério na qual o padre pode ficar parado e ouvindo confissões; enfim, fazendo por essa forma algum bem às almas.

    Entretanto, isso não bastou e ele se tornou surdo, e de uma forma de surdez devido à qual ficou completamente excluído do convívio humano. Hoje, com esses aparelhos de audição que há, e essas operações etc., as pessoas talvez não tenham ideia da exclusão em que fica o surdo. É claro que é possível fazer-lhe entender alguma coisa, mas ele se torna o cacete, o insuportável, o difícil de carregar. Porque todo mundo está conversando e, de repente, vem o surdo: “O que é?” Somos obrigados a dar-lhe um resuminho, que nos obriga a sair do fluxo da conversa para entrar no poço de silêncio dele. Depois o surdo faz uma outra pergunta, fazemos sinal de que lhe explicaremos posteriormente e voltamos para a conversa, e ele fica com o tostão que lhe jogaram.

    Eu tive um parente surdo, e vi bem como era essa situação dele. Há uma pessoa surda em minha família, e noto qual é a tentação permanente dos que tratam com surdos: empurrá-los de lado e não ter paciência com eles. O surdo quer explicações do que todos já entenderam, e nos tira da linha de nossa atenção e de nosso interesse, para nos preocuparmos com ele.

    Então, São Pacífico ficou paralítico ou, digamos, pelo menos com a locomoção muito difícil, padecendo a dor que chagas devem fazer sofrer e, ao mesmo tempo, tornado surdo. Dir-se-ia que o martírio dele chegou ao auge. Mas era preciso uma coisa ainda pior.

    …cegueira e maus tratos

    Ele sofreu as duas limitações conjugadas que mais afastam o homem do convívio humano: a surdez completada pela cegueira. Como o surdo recebe alguma notícia de fora? É pela vista. Mas se ele também não vê, o único modo que possui para se comunicar com os outros é o tato. E este é uma forma de comunicação que só pode servir para os avisos mais sumários: quatro batidas significa que é para sentar-se; cinco, para tomar água…

    Podemos imaginar até que ponto o surdo-cego fica dependendo de seu enfermeiro, o qual é um canal que o liga ao mundo dos vivos. Ele, de fato, é um enterrado-vivo. Não há muita diferença entre um surdo-cego e um homem que está na sepultura.

    E a Providência permitiu que um agravamento se produzisse e a maldade humana se exercesse contra esse coitado — entretanto um santo —, na pessoa de seu próprio enfermeiro. Quer dizer, desse canal que o ligava para alguma comunicação com a vida lhe vinham maus tratos e sofrimentos. Além disso, havia um outro que o perseguia.

    Compreendemos qual é a baixeza existente em uma pessoa que persegue alguém assim. Quando a caridade católica mandaria ser todo atenção, todo gentileza, todo paciência, todo requinte de humildade para com uma pobre pessoa nessa situação, pelo contrário sucede esse sofrimento complementar.

    A biografia até passa um véu para não se saber o que foi feito contra o santo. Mas, à força de se esconder, desconfia-se que entraram coisas das piores, talvez até violências físicas. E ele, com toda paciência, calma, cordura, sem guardar na alma um pingo de ódio; foi assim que esse homem terminou o seu martírio nesta Terra.

    E ele acabou sofrendo tudo quanto uma pessoa, nessa ordem de coisas, pode sofrer: isolamento, abandono, tédio. E, naturalmente, as angústias interiores desse estado, ao lado das quais podemos imaginar as tentações do demônio e a impossibilidade de se comunicar sequer com um confessor, porque ele podia falar, mas não ouvir as respostas do confessor. Entendemos, assim, o que foram as últimas jornadas dessa pobre alma na Terra.

    Quando morreu, São Pacífico foi ao Céu e certamente as primeiras palavras que ouviu de Nossa Senhora foram que ele estava como Nosso Senhor, no Qual, do alto da cabeça até a planta dos pés, não havia nada que fosse são. Também nesse coitado, na sua alma e no seu corpo, não havia mais nada que fosse são.

    A água que se mistura com o vinho no sagrado cálice

    Qual é a razão dessa misteriosa vocação? Por que sofrer tanto assim? Evidentemente, para expiar pelos pecadores. Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter remido o gênero humano com uma só gota de seu Sangue infinitamente precioso. Mas Ele quis derramar todo o Sangue — e até a água misturada com Sangue que havia em seu Corpo sagrado — por amor de nós. E, por um desígnio admirável, Ele quis que seus padecimentos fossem como que completados pelos sofrimentos dos outros homens. O Salvador desejou que houvesse almas as quais se associassem à Paixão d’Ele, para o efeito de pagar inteiramente os pecados dos homens. Redentor, só o Sangue d’Ele; expiatório, entretanto, o sangue dos outros homens, misturados com o d’Ele.

    Na Liturgia da Missa, há um fato muitíssimo bonito e que faz pensar nisso: em determinado momento, o sacerdote toma uma colherzinha com água e coloca esta dentro do sagrado cálice. Aquela água se mistura com o vinho que vai se transubstanciar no Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; e isso indica o sofrimento humano, que entra como uma gota na imensidade do sofrimento divino para se oferecer, se misturar e, por assim dizer, se divinizar com o padecimento de Nosso Senhor, para expiação dos pecados dos homens.

    Os que sofrem prestam o mais eminente serviço à Santa Igreja Católica

    De outro lado, há um papel muito importante: o de nos apresentar o espetáculo da dor, para fazer-nos admirá-la, amá-la, compreender que o grande fim da vida humana é servir a Nosso Senhor, e um dos melhores meios de servi-Lo é sofrer as dores que Ele nos manda.

    Se alguém perguntasse quem, no século dele, fez carreira, poder-se-ia dizer que foi esse santo. Porque ele arcou com todos os sofrimentos que a Providência queria que suportasse. E por isso ele fez a admirável carreira do miserável sofredor, da vítima expiatória, que carregou a cruz até o fim, confortada pelos méritos de Nosso Senhor, pelas orações de Nossa Senhora, e que pôde chegar até o Calvário, como o Redentor.

    Isto é a suprema glória, o exemplo magnífico. Para trabalhar há muitos, para rezar e lutar há poucos, para sofrer, quase ninguém. E, portanto, aqueles que sofrem prestam o mais eminente serviço à Santa Igreja Católica. Essa biografia é uma verdadeira ilustração do livro de São Luís Grignion, publicado décadas depois, o “Tratado dos Amigos da Cruz”.

    Esse sacrifício desinteressado foi feito apenas por amor de Deus e de Nossa Senhora, uma imolação completa para dar glória a Eles, pelo desejo de se destruir a fim de louvá-Los, e pela ciência de que com isso se resgatava um número incontável de grandes almas pecadoras, que iriam brilhar no Céu, como sóis, por toda a eternidade, por causa dos sofrimentos desse homem.

    Os sofrimentos são os melhores presentes que Nossa Senhora nós dá

    Se ele não tivesse tido Fé, não tivesse tido, em última análise, a convicção da utilidade de seu sofrimento, não teria aguentado. Porque essas situações quase ninguém suporta. Ele aguentou, com certeza, com essa ideia de que seu exemplo, suas orações, seus sofrimentos fariam bem para inúmeras almas.

    Nesse tempo — século XVII —, o Brasil era um país de selvagens, com índios fabulosos, esquisitos, etc. São Pacífico poderia imaginar que, em 1966, o exemplo dele faria bem para muitas almas, incitando-as a amar a Cruz, a dor? Ele não imaginava.

    Mas do Céu ele está vendo. E o que se passa aqui neste auditório aumenta a glória dele; e faz com que os ouvidos moucos e os olhos cegos dele — que estão esperando a ressurreição —, no fim dos tempos, brilhem com um fulgor todo especial, inclusive por causa dessa glória que a ele está sendo dada neste momento.

    Nós não temos, pelo menos de um modo geral, a vocação de vítimas expiatórias; mas sim sofrimentos, os quais é preciso amar muito, e não procurar desfazer-se deles com horror. Devemos compreender que os sofrimentos são os melhores presentes que Nossa Senhora nos dá, são pedaços da Cruz de Cristo que Ela quer implantar em nós; precisamos suportá-los com ânimo, com dedicação, com verdadeira decisão e alegria. E compreendendo que quanto mais Maria Santíssima se dignar de nos fazer sofrer, tanto mais Ela nos prova seu amor e prepara para nós méritos no Céu.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1966)

    1) Não dispomos dos dados bibliográficos da ficha lida por Dr. Plinio nessa ocasião.

     

  • Sério, altaneiro e intrépido

    Pregador da Boa Nova, São Mateus é o modelo de varão sério, altaneiro, intrépido, corajoso, que fala em nome de uma verdade eterna e, por isso, não se sente acanhado nem diminuído diante de ninguém.

    Eis a graça que devemos pedir a São Mateus para difundirmos a verdadeira Boa Nova da Religião Católica, Apostólica, Romana, nesta época de tanta decadência religiosa.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/9/1965)

  • São Mateus, Apóstolo Evangelizador da Etiópia

    Varão sobrenatural, nobre, forte e acolhedor. Assim aparece o Apóstolo São Mateus nas páginas da “Legenda Áurea” que relatam a evangelização e o martírio do discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras da Etiópia. Comentários de Dr. Plinio.

     

    Em 21 de setembro celebra-se a festa do Apóstolo São Mateus, a respeito do qual lemos na “Legende Dorée”(1) ter sido o evangelizador da Etiópia, onde conseguiu desmascarar e apontar como agentes do demônio os magos que iludiam o rei e o povo.

    O lendário reino do Preste João

    Cumpre assinalar que, excetuando o Oriente Próximo, na gentilidade asiática e africana a Etiópia possuía uma peculiaridade extraordinária: de todos aqueles mundos, era o único país cristão. As outras nações onde os Apóstolos estiveram, e até deixaram recordações — como a Índia, por exemplo — não se converteram. Durante algum tempo a Etiópia permaneceu católica, mas, infelizmente, acabou cedendo à heresia dos monofisitas(2). Contudo, hoje é ainda uma nação cristã, e cabe-lhe a glória de ter sido evangelizada pelo Apóstolo São Mateus.

    É interessante considerar, também, como os medievais tinham certa noção de um reino cristão situado além do Egito, onde, segundo as notícias trazidas pelos navegantes portugueses, vivia o famoso Preste João — Padre João, em português arcaico. Tratar-se-ia, pois, da Etiópia.

    Nobre, poderoso, suave

    De acordo com a “Legende Dorée”, este país e seu rei estavam desviados do culto do verdadeiro Deus por obra dos mencionados magos. A estes enfrentou e desmascarou São Mateus, provando que eram incapazes de fazer qualquer coisa sem auxílio do maligno.

    Somos levados a imaginar esse confronto, com o Apóstolo tendo penetrando na Etiópia através do mar, do deserto ou pelas nascentes do Nilo, e só pela sua presença já causando grande mal-estar nos sequazes do demônio. Os magos logo perceberam naquele homem um poder, uma força de Deus que os contrariava de modo irretorquível.

    Provavelmente, esses magos praticavam muitos prodígios e induziam o povo a acreditar que participavam de um poder divino.

    São Mateus, operando autênticos milagres, confundiu aqueles impostores diante do mesmo povo, demonstrando a farsa com que a todos iludiam. Quiçá a população, sabendo-se objeto de tamanho ludíbrio, tenha querido punir os feiticeiros, sendo então impedida pelo Apóstolo, que a fez compreender que aquilo seria um crime. Tal houve de ser a influência desse varão sobrenatural, nobre, poderoso, suave, acolhedor, sobre aquela gente admirativa.

    Conversão de todo o povo

    Pouco depois, conforme a narração do biógrafo, São Mateus ressuscita o filho do rei Egipo, e este, querendo-o adorar como deus, oferta-lhe grande tesouro. Claro, o Apóstolo não permitiu tal veneração e, com o ouro e a prata que haviam levado, construiu uma grande igreja, na qual viveu 33 anos para converter a nação. O rei Egipo, sua mulher e todo o povo se fizeram batizar. Ifigênia, a filha do rei, foi consagrada a Deus e colocada à frente de duzentas virgens num convento.

    Não nos é difícil compreender o imenso alcance desse fato. Uma nação imersa durante séculos no paganismo e em toda espécie de vícios, com a simples pregação de um Apóstolo, converte-se, se faz batizar, e duzentas virgens de ébano, ao lado da própria filha do rei, recolhem-se a um convento para se tornarem esposas do Rei por excelência, Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Outro detalhe: quão bela deve ter sido a primeira igreja da Etiópia, construída diretamente sob a inspiração de São Mateus, e como essa edificação deve ter alegrado no Céu aos anjos, a Deus e a Nossa Senhora!

    Martírio do Apóstolo

    Entretanto, o rei Egipo morreu e seu sucessor, Hírtaco, desejou esposar Ifigênia, por considerá-la a única jovem digna dele e de sua posição. O novo monarca pediu a São Mateus que convencesse a princesa em aceitá-lo como marido, e prometeu ao Apóstolo, em caso de sucesso, metade do reino.

    Vê-se a vã e frustra tentativa de suborno. Para quem converte um povo inteiro, do que adianta riquezas e poder temporal sobre ele? Incomparavelmente mais do que isso, São Mateus possuía a alma desse povo e a entregara a Deus.

    O Apóstolo pediu então ao rei Hírtaco que fosse à igreja no domingo seguinte, quando daria uma solução ao caso. O soberano anuiu e compareceu ao templo, encontrando-o repleto de fiéis que começaram a ouvir dos lábios de São Mateus um maravilhoso sermão sobre os benefícios de um casamento.

    Figuremos um Hírtaco de beiços grossos e vermelhos, dentes alvos, sorrindo de contentamento enquanto São Mateus elogiava o matrimônio. Certamente, pensava lá consigo: “Agora não preciso lhe dar metade do meu reino, como prometi, porque me fez o serviço adiantado. A princesa será minha, e depois ele se entenderá comigo”.

    O rei estava seguro do assentimento da jovem. Porém, continuando seu sermão, em determinado momento disse o Apóstolo: “Sendo o casamento tão sagrado e inviolável, alguém que quisesse possuir a mulher de seu rei, mereceria um castigo. Assim, Hírtaco, sabendo que Ifigênia é esposa do Rei eterno, como ousas tomar a mulher do infinitamente mais poderoso do que tu?”

    Ao ouvir essas palavras, Hírtaco se retirou da igreja, tomado pelo ódio. Terminada a Missa, o rei enviou um carrasco que com a espada atingiu São Mateus, o qual se encontrava orando de pé diante do altar e com os braços estendidos para o céu. O povo, indignado, correu ao palácio real para vingar o crime, mas os outros sacerdotes o detiveram, aconselhando que em lugar disso se unisse numa grande celebração em homenagem ao santo mártir.

    Com a fé católica, a semente de todo o bem

    Enquanto isso, Hírtaco ordenava que ateassem fogo ao redor do convento de Ifigênia, para fazê-la perecer juntamente com as outras virgens. Mas, São Mateus apareceu e desviou o fogo para o palácio do rei, que foi inteiramente consumido. Somente o soberano e seu filho único escaparam ao incêndio. O príncipe correu imediatamente ao túmulo do Apóstolo para pedir perdão, e o rei, atingido por horrível lepra, suicidou-se. Depois desses episódios, o povo escolheu como soberano o irmão de Ifigênia, o qual reinou durante 60 anos, difundindo o culto de Cristo e construindo igrejas por toda a Etiópia.

    Assim termina a narração da vida de São Mateus. Creio que meus ouvintes sentem, como eu, a beleza contida nesse epílogo: o novo rei governou durante seis décadas, edificando igrejas pelo país inteiro. Tem-se a impressão de um reinado sereno, tranqüilo, elevado. Claro, não se pode dizer que basta construir igrejas e tudo estará resolvido. Mas, erguendo-as, e sendo frequentadas por um povo fiel, praticante da religião verdadeira, tudo aquilo que é necessário para a sua prosperidade, virá.

    Ou seja, instaurando autenticamente a Fé católica, está colocada a semente de todo o bem. Tal foi a obra do Apóstolo São Mateus na terra por ele evangelizada.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/10/1976)

     

    1) “Legenda Áurea”, coletânea de vidas de Santos escrita pelo bem-aventurado Jacopo de Varazze, dominicano e Arcebispo de Gênova (1229-1298).

    2) Heresia difundida por Eutiques (378-454), que afirmava haver em Cristo uma só (mono) natureza, a divina.

     

  • São Mateus, Apóstolo

    Quando o Filho de Deus se fez homem e veio a este mundo, tomou o nome de Jesus ou Salvador, porque viera para salvar-nos e não para perder-nos.

    O primeiro aos quais fez anunciar pelos anjos a boa nova da sua vinda, foram alguns humildes pastores de Belém. Quando escolheu seus doze apóstolos, ou doze enviados, para espalharem a boa nova a todos os povos da terra, escolheu-os entre os humildes e os pequenos. Primeiramente foram dois irmãos, Pedro e André, que viviam da pesca, assim como dois outros, Tiago e João.

    Mais extraordinário ainda é não ter Jesus escolhido seus apóstolos precisamente entre os santos, nem no interior do templo, mas nas praças públicas, entre a classe operária e mesmo entre os empregados da alfândega. Saía da cidade de Cafarnaum e dirigia-se para o mar da Galileia, onde costumava pregar à multidão, quando ao passar, avistou um publicano, Levi, filho de Alfeu, também chamado Mateus, sentado à mesa de cobrança de impostos, e disse-lhe: Segue-me. E aquele, tudo abandonando, levantou-se e seguiu-o. E Levi ofereceu a Jesus um grande banquete em sua casa. Estando este à mesa, chegaram muitos publicanos e pecadores que se sentaram à mesa com ele e com os discípulos, que em grande número o tinham acompanhado.

    Mas os fariseus e os escribas, vendo que Jesus comia com os publicanos e os pecadores, murmuraram e disseram aos discípulos: Por que motivo come o vosso Mestre com os publicanos e os pecadores e vós com ele? Malgrado a aparente piedade, de que se jactavam, aqueles homens estavam cheios de desprezo pelos outros. Respondeu-lhes Jesus? Os sãos não tem necessidade de médico, mas sim os enfermos. Ide, e aprendei o que vos digo: quero misericórdia e não sacrifício; porque não vim chamar os justos e sim os pecadores.

    Quão grande é a bondade de Jesus Salvador! Quem ainda poderá desesperar, seja por causa de seus pecados, seja por causa de suas más inclinações? Aí está um médico capaz, não apenas de curar os doentes, mas de ressuscitar os mortos; um médico caridoso, que se sobrecarregará com as nossas doenças e as nossas iniquidades; um médico tão bom que se transmuda em remédio para os nossos males.

    Mas o publicano Mateus também não merecerá que o amemos e imitemos? Era um homem de negócios e de dinheiro, um burocrata, um financista. Contudo, mal Jesus o chama, levanta-se, tudo abandona e segue-o, testemunha-lhe publicamente a gratidão com um grande banquete. E nós, que talvez nos julguemos muito melhores do que os publicanos, o Senhor chama-nos, o Senhor diz-nos há muito tempo: Vinde e segui-me! E ficamos surdos ao seu apelo. Ah! Roguemos ao bem-aventurado publicano, cuja festa celebramos, que nos seja dado seguir o Senhor, tal como o fez.

    De publicano transformado em apóstolo. São Mateus perseverou até o fim. Depois de receber o Espírito Santo com a abundância de suas graças, no dia de Pentecostes, pregou durante vários anos na Judeia às ovelhas perdidas da casa de Israel: em seguida, levou o Evangelho às nações longínquas, Pérsia e à Etiópia, e confirmou com o sangue as verdades que pregava.

    Além de um dos doze apóstolos, escolhidos para pregarem o Evangelho por toda a terra, São Mateus também foi um dos homens inspirados para gravá-lo por escrito. Há quatro evangelistas: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João; assim como há quatro grandes profetas: Isaías, Ezequiel, Jeremias e Daniel; e quatro grandes impérios: Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma e quatro querubins acima dos quais se eleva o trono de Deus, no qual está sentado o Filho do homem.

    O conjunto dos quatro querubins com o trono de Deus suspenso acima deles, não tem a sua representação na terra no conjunto dos quatro grandes impérios, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, a cujas lutos e a cujos destinos vemos outros tantos espíritos celestes presidir; espíritos que serviram de carro do Filho de Deus para que descesse à terra e nela estabelecesse seu império espiritual, e dos quais tirou seus instrumentos de vingança, pois no capítulo X, de Ezequiel, não vemos um dos querubins apanhar os carvões ardentes, que seriam espalhados sobre a criminosa Jerusalém?

    Na Igreja Cristã, não viram os Padres os quatro evangelistas? Na face do homem, São Mateus, que inicia seu evangelho pela genealogia de Cristo enquanto homem; na face do leão, São Marcos, que inicia o seu pela voz de deus clamando no deserto; na face do touro, vítima principal dos antigos sacrifícios, São Lucas, que começa pelo sacerdote Zacarias no ato de desempenhar as funções do sacerdócio num templo; na face da águia, São João que. De início, eleva-se como uma águia acima das nuvens até o seio de Deus. São quatro, mas cada um deles é encontrado nos três outros, e os quatro são encontrados em cada um em particular; há quatro evangelhos, e só há um Evangelho. É o mesmo espírito que os inspira, que os alenta, que os inspira, que os alenta, que os dirige. São cheios de olhos; em tudo, até num ponto e vírgula, cintila a verdade. Contém como que um fogo divino de onde saem as fagulhas, as correntes elétricas da graça, que iluminam os espíritos, toam os corações e renovam a face da terra.

    No Evangelho de São Mateus há um belo consumo de todo o Evangelho: é o Sermão da Montanha de todo o Evangelho, que reproduz inteiramente, enquanto os outros evangelistas só citam alguns trechos. É o sermão que se inicia com as oito bem-aventuranças.

    O único objetivo do homem é a felicidade. Jesus Cristo veio unicamente proporcionar-nos os meios de realizá-lo. Colocar a felicidade onde deve estar é a fonte de todo bem; e a fonte de todo mal é colocá-la onde não deve estar. Digamos, pois: Quero ser feliz. Vejamos, porém, de que maneira; vejamos em que consiste a felicidade; vejamos quais são os meios para alcançá-la.

    A felicidade está em cada uma das oito bem-aventuranças; pois, em todas, sob várias designações, é sempre da felicidade eterna que se trata. Na primeira bem-aventurança, como um reino; na segunda, como a terra prometida; na terceira, como a verdadeira e perfeita consolação; na quarta, como a satisfação de todos os nossos desejos; na quinta, como a última misericórdia que suprime todos os males e concede todos os bens; na sexta, sob seu legítimo nome, que é a visão de deus; na sétima, como a perfeição da nossa divina adoração; na oitava, mais uma vez como o reino dos céus. Eis, pois a felicidade em todas; mas há vários meios de alcançá-la e casa bem-aventurança assinala um; juntos, completarão a felicidade do homem.

    Se o Sermão da Montanha é o resumo de toda a doutrina cristã, as oito bem-aventuranças são o resumo de todo o Sermão da Montanha.

    Se Jesus Cristo ensina que a nossa justiça deve sobrepujar a dos escribas e fariseus, o ensinamento está contido na seguinte sentença: Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça. Pois se a desejarem como único alimento, se dela estiverem verdadeiramente famintos, com que abundância a receberão, pois que de todos os lados se apresentará para saciar-nos? Então também seguiremos os seus mínimos preceitos, como homens famintos que nada deixam, nem mesmo, por assim dizer, uma migalha de pão.
    Se vos recomendam não maltratardes com palavras o vosso próximo é por efeito da brandura, do espírito pacífico ao qual foi prometido o reino e qualidade de filho de Deus. Não olhareis uma mulher com más intenções: Bem-aventurados os puros de coração; e o vosso coração só será inteiramente puro, depois que o tiverdes purificado de todos os desejos sensuais. São mais felizes os que passam a vida em lutas e numa tristeza salutar do que no meio de prazeres que embriagam. Não jureis; digais: É verdade, não é verdade. É ainda um efeito da brandura: quem é manso e humilde não se apega excessivamente aos sentidos, o que faz o homem afirmar com muita facilidade; diz simplesmente o que pensa, dentro do espírito de sinceridade e de mansidão. Perdoaremos facilmente todas as ofensas se estivermos possuídos por esse espírito de misericórdia, que atrai para nós numa misericórdia bem mais ampla. Mansos e pacíficos, não resistiremos à violência, deixar-nos-emos mesmo levar além do que prometemos. Amamos nossos amigos e inimigos, não apenas porque somos mansos, misericordiosos, pacíficos, mas também porque somos famintos de justiça e queremos vê-la reinar dentro de nós mesmos, melhor do quo reina no coração dos fariseus e dos gentios. Essa fome de justiça também nos leva a desejá-la por necessidade e não por ostentação.

    Amamos o jejum quando encontramos nosso principal alimento na verdade e na justiça. Por meio de jejum, nosso coração se purifica e nos livramos dos desejos dos sentidos, Temos o coração puro quando reservamos para os olhos de Deus o bem que praticamos; quando nos contentamos em ser vistos apenas por ele; e quando não nos servimos da virtude como de uma máscara para iludir o mundo e atrair os olhares e o amor das criaturas. Quando nosso coração é puro, temos o olhar luminoso e a intenção reta. Evitamos a avareza e a busca dos bens, quando somos verdadeiramente pobres de espírito, Não julgamos, quando somos mansos e pacíficos; porque a mansidão expulsa o orgulho. A pureza de coração faz com que nos tornemos dignos da Eucaristia, e que nunca recebamos sem unção o pão celestial.
    Quando temos fome e sede de justiça, rezamos, imploramos, suplicamos: pedimos a Deus os verdadeiros bens e confiamos em que nos atenda, quando só aspiramos ao seu reino e à mansão dos vivos. De boa vontade entramos pela porta estreita quando nos consideramos felizes na pobreza, no pranto, nas tribulações que sofremos pela justiça. Quando temos fome de justiça, não nos contentamos de dizer a boca: Senhor, Senhor! Mas nos alimentamos intimamente com a sua verdade. Então edificamos sobre o rochedo e o achamos suficientemente firme para servir de apoio à nossa construção.

    As bem-aventuranças constituem, pois o resumo do sermão inteiro, mas um resumo aprazível, porque a recompensa está ligada ao preceito; o reino dos céus, sob vários nomes admiráveis, à justiça; a felicidade, à prática.

    No ano de 1080, Santo Alfano, arcebispo de Salerna, lá descobriu as relíquias de São Mateus, apóstolo e evangelista. Apressou-se em comunicar o achado ao Papa Gregório VII, que o felicitou, e com ele a toda a Igreja Católica, numa carta datada do dia 18 de Setembro, na qual recomenda ao bispo as preciosas relíquias sejam dignamente veneradas.

    (Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVI, p. 350 à 357)

  • São José de Cupertino, modelo de despretensão

    Até mesmo os homens pouco dotados naturalmente, tornam-se capazes dos maiores sucessos quando fazem a vontade de Deus. Eis São José de Cupertino, um eloquente exemplo da omnipotência divina:

    Há uma ficha biográfica(1) sobre São José de Cupertino digna de comentário:

    Se houve um homem pobremente dotado de qualidades naturais, este foi José de Cupertino.

    No momento do seu nascimento, devido às dívidas de seu pai, apreendiam o mobiliário de sua família, e sua mãe viu-se na contingência de dar à luz num estábulo.

    Filho de artesãos, atrofiado, doentio, desprezado por todos, escarnecido pelos amigos que o chamavam de “Boca Aberta”, foi também repudiado pela própria mãe. Com uma úlcera gangrenosa, passou a infância entre a vida e a morte, até ser curado por um religioso.

    Ele era incapaz de passar num exame; impossibilitado de manter uma conversa; não conseguia cuidar de uma casa nem tocar num prato sem quebrá-lo; tinha aspecto inútil e de quem presta poucos serviços.

    Quando, mais tarde, quis abraçar a vida religiosa, enfrentou as maiores dificuldades. Entrou para os capuchinhos como converso, mas sua incapacidade natural e sua preocupação sobrenatural como que se uniam para torná-lo inepto para com tudo. Chamava-se a si próprio Frei Burro.

    Enquanto seu desajeitamento patenteava-se, sua santidade não era percebida por ninguém.

    Acabaram os religiosos por considerá-lo absolutamente insuportável. Arrebatado em êxtase em meio aos cuidados do refeitório, deixava cair os pratos e as travessas, cujos fragmentos lhe eram colados no hábito em sinal de penitência.

    Servia pão preto em lugar de pão branco. Para transportar um pouco de água de um lugar para outro, foi-lhe preciso um mês inteiro. Finalmente, considerando que ele não servia nem para os serviços materiais nem para a vida espiritual, despediram-no do convento.

    Expulso ainda de outras casas religiosas, José acaba sendo admitido no convento de Grotela. Neste novo convento foi incumbido do tratamento de uma jumenta.

    Ele mal sabia ler e escrever e queria ser sacerdote. Nunca pôde explicar nenhum dos textos evangélicos, exceto o que continha as palavras “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

    Ao fazer o exame de diaconato, o Bispo abre o livro dos Evangelhos ao acaso, e manda o candidato comentar a frase “bem-aventurado o ventre que te trouxe”.

    José explicou superiormente. Restava o exame para o sacerdócio. Ora, todos os postulantes, exceto José, sabiam a matéria com perfeição. Os primeiros que fizeram o exame, fizeram-no de maneira tão brilhante que o Bispo parou antes de ter examinado a todos. E, julgando a prova inútil, admitiu em conjunto os que restavam, entre eles, José.

    No dia 4 de março de 1628, José tornou-se sacerdote, a despeito dos homens e das coisas, apesar de todas as suas incapacidades reconhecidas, mas esquecidas.

    Em que sentido São José de Cupertino é modelo dos católicos?

    O santo canonizado pela Igreja é indicado como modelo para todos os católicos. Ora, não é vocação de todos os homens serem tão desprovidos de capacidades quanto São José de Cupertino… Devemos, então, nos perguntar em que sentido ele pode ser considerado modelo, e assim ser admirado e imitado por todos os fiéis.

    O admirável equilíbrio da Igreja, mestra da Sabedoria

    Há na Santa Igreja um aspecto admirável: ela é a mestra da Sabedoria, a mestra do equilíbrio. Ou seja, a Igreja Católica aponta com exatidão para o equilíbrio entre coisas aparentemente inconciliáveis.

    Assim, a Igreja tem suscitado inúmeros santos de uma inteligência extraordinária, santos reis ou imperadores; mas também tem elevado aos altares homens pouco capacitados, desprovidos de valor pessoal, como São José de Cupertino.

    Como harmonizar ambas as coisas?

    Operar segundo a vocação específica

    Quando alguém ama a Deus com todo o empenho de sua alma, procura cumprir tudo quanto está em sua vocação fazer. O homem eficiente não é o que faz algo fora de sua vocação. O cúmulo da ineficiência é operar fora de seu chamado pessoal.

    Imaginemos uma orquestra cujo violinista tocasse não com um violino, mas com um violão. Desse modo ele atrapalharia a orquestra inteira, pois tendo uma função dentro do conjunto e executando-a de modo indevido, sua eficiência chama-se atrapalhação…

    Ora, isto se passa com cada homem. A ordem das coisas consiste em operar de acordo com os planos da Providência. Quem “toca” fora dos planos de Deus, quanto mais eficiente seja, tanto mais errado está!

    De maneira que um homem deve perguntar-se se está sendo capaz de executar a vontade de Deus a respeito de si, ou não.

    Para fazer a vontade de Deus não é preciso ter inteligência, mas, sim, amor

    Para realizar os planos da Providência é necessário observar a vontade de Deus, amando-O sobre todas as coisas, até o completo esquecimento de si próprio.

    Com quem procede deste modo, Deus dispõe de tudo para realizar seus desígnios para com aquela alma. Por essa razão, antes mesmo de procurar conhecer os talentos de um homem, deve-se perguntar se ele ama a Deus e conhece os planos de Deus a seu próprio respeito.

    Então, conhecer significa ser capaz de distinguir a vontade de Deus, e para tanto não é necessário ter inteligência, basta ter amor.

    Para admirar os planos de Deus, urge amá-Lo inteiramente. E para quem O ama, Deus realiza grandes maravilhas a fim de que seus planos tornem-se realidade. Basta apenas notar como Deus Se fez servir por santos de todos os níveis e de todas as espécies de capacidade.

    Pois a Providência ora suscita homens como São Tomás de Aquino ou Beato Angélico, com uma evidente capacidade natural; ora suscita um pobre incapaz como São José de Cupertino, o qual, por ser um verdadeiro santo e atender aos desígnios da Providência, fez a obra de Deus.

    Assim, Deus faz brilhar todos os seus santos, permitindo que eles realizem maravilhas superiores às suas próprias energias, possibilidades, talentos ou capacidades, porque estão nas vias da Providência e realizam a sua obra.

    Nos dois extremos da capacidade humana, de São José de Cupertino a São Tomás de Aquino, os santos sempre realizaram muito mais do que sua capacidade natural permitiria.

    Apontando para o verdadeiro valor da vida

    Numa sociedade fortemente hierarquizada, cujas riquezas aumentavam cada vez mais, onde o prestígio era um bem distribuído largamente por todas as camadas sociais, era necessário haver um contrapeso que equilibrasse os homens na virtude. Esse equilíbrio era feito por pessoas que abandonavam tudo, e que por seu exemplo ajudavam os que não eram chamados a uma completa renúncia a desapegarem-se interiormente dos bens que possuíam.

    Caso São José de Cupertino — famoso por suas limitações e incapacidades — percorresse alguma cidade com as multidões afluindo à sua volta, e numa outra alameda passasse, por exemplo, um mestre universitário cortejado pelos estudantes — que naquele tempo estendiam suas capas ao chão para o professor, em honra da magnífica exposição que os deixara entusiasmados —, qual não seria a grande lição para o professor inteligente, notar a glória de São José de Cupertino e compreender que toda a glória de sua própria inteligência não era nada, caso não fosse orientada para Deus?

    Compreende-se então como tal atitude auxiliava os grandes da Terra a compreenderem o que significa a verdadeira grandeza e a mantê-la dentro de seus limites, fazendo com que ela fosse bondosa, dadivosa, generosa, e existisse para o bem de todos, e não somente para mandar.

    O maravilhoso equilíbrio dos extremos harmônicos

    Evidenciam-se então os equilíbrios maravilhosos da Igreja.

    Assim, o casamento mantinha-se indissolúvel, porque havia homens e mulheres que, praticando uma castidade perfeita, renunciavam constituir família; havia gente capaz de fazer bom uso da conversa, pois existiam almas que se votavam ao silêncio perpétuo por amor a Deus. Deste modo, os indivíduos eram capazes de fazer bom uso da riqueza, porque certas Ordens religiosas eram entregues à mais completa observância da pobreza, como, por exemplo, os franciscanos.

    É levando, de um lado, a pobreza até seu último extremo que, de outro lado, se torna possível levar ao último extremo a riqueza. O rico será equilibrado na posse de sua riqueza e fará dela um uso benfazejo, desde que veja o exemplo daquele que renunciou a coisas que estão em suas mãos. Com o exemplo do religioso que fez o voto de pobreza, o rico poderá utilizar-se de suas riquezas; assim como o homem sociável e brilhante, que reúne uma grande roda em torno de si, e torna-se um dos centros da vida social de sua cidade, poderá fazer bom uso desse prestígio se tiver próximo de seu ambiente um convento de freiras que nunca falam.

    Essa perspectiva leva todas as coisas aos seus extremos harmônicos. E a Santa Igreja obtém aquele equilíbrio maravilhoso de que é verdadeira mestra.

    Essa é a verdadeira forma de compreender a vida de São José de Cupertino. Pois ele é um dos extremos da Civilização Católica. Extremos, entretanto, conciliáveis.

    No Céu, será possível ver, lado a lado, São José de Cupertino e São Tomás de Aquino venerando a Nossa Senhora, e adorando a Nosso Senhor Jesus Cristo, cantando juntos, por toda a eternidade, hinos.

    Os metafísicos ensinam que a harmonia perfeita não é aquela que reúne coisas análogas ou iguais, mas sim aquela que cobre uma imensa gama de diferenças, encontrando pontos de analogia e mostrando onde essa harmonia se produz.

    Abandonado até por Deus…

    Há ainda outro interessante aspecto da vida de São José. Continua a ficha:

    A miséria material a que se condenara complicou-se com uma miséria interior bem diversa: as consolações com que fora amparado desde a infância deram lugar a uma secura triste e sombria, que aumentava a cada dia.

    Escrevia ele a um amigo: “Eu me queixava muito de Deus, com Deus”.

    Que linda frase! Queixar-se de Deus com Deus. Também Nossa Senhora procedeu assim ao dizer a seu divino Filho: “Meu filho, por que fizeste isso?”

    É uma linda atitude: fugir de Deus para dentro dos braços de Deus. Como isso é superior!

    Eu havia deixado tudo por Ele, e Ele, em vez de me consolar, me entregara a uma angústia mortal.

    Percebe-se neste trecho o valor dos bens espirituais sobre todos os outros. Ele era privado de todos os bens da Terra, porém, não se incomodava. A partir do momento em que lhe faltaram as consolações espirituais, ele soube recorrer a Deus.

    Um dia, como eu chorasse, como eu gemesse — só de pensar me sinto morrer —, um religioso bate-me à porta. Não respondo.

    Ele entra, e diz: “Frei José, que tens? Aqui estou para servir-te. Olha, aqui está uma túnica. Pensei que não tinhas túnica”.

    Efetivamente, minha túnica caía aos pedaços. Vesti a que trazia o desconhecido e todo o meu desespero desapareceu no mesmo instante. Ninguém reconheceu jamais o religioso que tinha trazido a túnica.

    Diz a Sagrada Escritura: “Olhai os lírios do campo: não tecem nem fiam; entretanto, Salomão, em toda a sua pompa, não se vestiu como eles”.

    Ora, o que é o suntuoso manto de Salomão comparado a essa túnica, trazida nessas circunstâncias, talvez por um Anjo do Céu?

    A partir do momento em que lhe foi restituída a consolação, a vida de São José foi uma verdadeira maravilha.

    Amar a Deus e andar em suas vias, só isso basta!

    Que lição pode-se tirar da vida de São José de Cupertino?

    Ele provou para os séculos futuros que um homem pode ser sumamente venerável, por mais que seja um rebotalho. Por mais desprezado que fosse, São José possuía a única coisa necessária: andar nas vias de Deus.

    Essa realidade é uma lição de humildade para compreendermos quão grande se torna o homem que realiza os planos de Deus a seu próprio respeito, ainda quando a natureza em nada auxilia ou concorre para isto.

    Se alguém se encontrasse com São José de Cupertino, como se sentiria pequeno e nulo, tendo a inclinação de se ajoelhar e pedir com respeito um conselho dele! Diante dele, cada palavra saída de seus lábios tomaríamos como uma gota do próprio manancial da sabedoria: Fra Asino falou, é uma lei, é um decreto. Tal é a glória daqueles que fazem a vontade de Deus, mesmo quando humanamente nada são.

    O homem eficiente e bem sucedido é aquele que cumpre a vontade de Deus

    O grande princípio que daí se conclui é que a maior forma de grandeza consiste em fazer a vontade de Deus.

    Só teve uma vida digna de nota, na qual todas as aptidões e a luz primordial(2) atingiram seu ápice, o homem que, no momento de sua morte, considerando sua vida, vê o plano que Deus executou por seu intermédio e percebe que o desígnio de Deus se realizou. Quem no retrospecto de sua vida é capaz de notar isso, morre justificado. Esta é propriamente a felicidade.

    O grande homem, o homem eficiente, resume-se em quem conseguiu cumprir plenamente a vontade de Deus a seu próprio respeito. Em latim, “facere” é um vocábulo que significa “tirando de dentro de si”. “Efficiens” é uma eficácia que sai de dentro de si mesmo. O homem eficiente é aquele que faz. Mas faz o quê? Faz a vontade de Deus, pois caso contrário será capaz somente de praticar erros ou crimes. Por essa razão, a única preocupação em matéria de eficiência deve ser esta: saber qual é a vontade de Deus.

    O exemplo da Santíssima Virgem: “Eis a escrava do Senhor…”

    Não poderia ser esquecido o sumo exemplo dado por Nossa Senhora.

    Como Ela Se definiu a Si mesma para o Anjo que vinha lhe trazer o anúncio de Deus? No momento em que São Gabriel declarou que Ela seria a Mãe do Redentor, qual foi a fórmula por Ela utilizada para afirmar que aceitava esta honra inimaginável?

    Ela lhe respondeu: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”. Ou seja, Ela Se definiu a Si própria como Aquela que realiza o desígnio de Deus expresso em sua palavra. Esse é o verdadeiro conceito de submissão a Deus: é a vontade d’Ele realizando-se em nós. O homem bem sucedido e eficiente, por excelência, é aquele que foi escravo de Nossa Senhora e fez a vontade d’Ela e de seu divino Filho.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/10/1968, 25/10/1968 e 26/10/1968)

    1) Não possuímos a fonte desta ficha.
    2) Luz primordial: Dr. Plinio assim denominava a verdade ou virtude, ou o conjunto de verdades ou virtudes, que uma alma é especialmente chamada a admirar e praticar.

  • Obediência e Contra-Revolução

    A propósito de alguns pensamentos de Santo Inácio de Loyola relacionados com a obediência, Dr. Plinio tece substanciosos comentários a este tema que marca profundamente a diferença entre o revolucionário e o contrarrevolucionário.

     

    Como todos sabem, Santo Inácio de Loyola concebeu a Ordem Religiosa que ele fundou, à maneira de um exército; por isso, deu-lhe o nome de Companhia de Jesus. Companhia naquele tempo queria dizer batalhão, regimento ou exército. Era, portanto, Exército de Jesus. E para que os sacerdotes da Companhia de Jesus tivessem toda a eficácia na sua luta contra os restos do Renascimento e a explosão protestante, ele quis que fossem marcados com todas as notas do espírito militar, entre as quais um eminente espírito de obediência.

    A condição militar supõe a obediência, e um exército sem obediência é um exército aniquilado. De maneira que faz parte da honra militar a disciplina. Portanto, uma das notas de esplendor da condição militar, aos olhos de todo mundo, é a compenetração e a varonilidade com que o militar obedece.

    Para o revolucionário a obediência é uma vergonha

    Falo de compenetração e varonilidade e já temos aqui um dos pontos de atrito entre o espírito da Revolução e o da Contra-Revolução. De acordo com o espírito revolucionário, obedecer é uma vergonha, mandar também não é uma beleza. O bonito é não obedecer nem mandar, mas ser igual a todo mundo. Isto porque o revolucionário procede da ideia de que todo homem é inteiramente capaz de conhecer todas as verdades de que seu espírito precisa para se orientar; e de governar as suas paixões desordenadas, de maneira a praticar o bem e evitar o mal. Em consequência, todos os homens são perfeitamente iguais. Não há nenhuma razão para um homem dar conselho ou uma ordem a outro, nem sofrer a vigilância, a fiscalização de outro. Portanto, não há motivo para haver disciplina.

    Então, o revolucionário interpreta a obediência como uma atitude de alma vergonhosa do indivíduo indolente e mole, que tem preguiça de escolher o seu próprio caminho, de encontrar as verdades necessárias para se orientar na vida. É, então, por moleza que um homem defere essa atribuição a outros e se deixa guiar.

    Seria mais ou menos como um indivíduo que, por preguiça de abrir os olhos e olhar em torno de si, os fecha, dá a mão para um outro e diz: “Guie-me, porque ao menos assim eu vou babando pelo caminho.” Se um homem tem olhos e meios de caminhar, ele vai se conduzir por si.

    Então, para o espírito revolucionário a obediência é uma vergonha.

    Para o contrarrevolucionário é um ato de bom senso, de fidelidade e de força

    O militar considera o contrário. Ele sabe que a unidade de ação só pode resultar de uma unidade de mando; e para que uma grande ação de conjunto se desenvolva é preciso uma grande capacidade. Ora, os homens não têm a mesma capacidade, e um exército bem constituído deve destilar os seus valores. De maneira que os de mais altas qualidades cheguem à cúpula e sejam capazes de encontrar e de indicar o caminho para aqueles que estão numa categoria intermediária; e estes por sua vez orientem os menos graduados. Dessa forma, no topo da hierarquia militar há aqueles que são mais competentes, ou se presume que o sejam, pelos estudos que fizeram. Nos países que realizam operações militares, existe uma hierarquia de competências, de idades, de experiência, que vai distribuindo os conhecimentos e a capacidade de impulso da cúpula, sucessivamente, aos vários graus da escala militar até a base. E com isso se forma a ordenação de um exército.

    Conforme essa interpretação, a obediência é uma virtude. Ela é antes de tudo um grande ato de lucidez pelo qual uma pessoa reconhece que pode não ter tanta capacidade quanto uma outra; e algo que mais comprova ser cretino um indivíduo, se este imagina que ninguém possa ser mais capaz do que ele. Porque isto indica que ele não vê dois dedos diante do nariz; é incapaz de olhar para cima. Ora, a mais nobre das posições da cabeça do homem é olhar para cima.

    É um ato de bom senso, de lucidez, reconhecer que outros, por serem mais inteligentes, terem mais competência ou mais experiência, são mais capazes do que nós para encontrar o caminho.

    Fazer o que o outro quer é um ato de ascese. Porque somos sempre tendentes a conceder demais para nós mesmos, a arranjarmos pequenos confortos, pequenas regalias, pequenas exceções, pequenos prazos, pequenas traições por onde não cumprimos o nosso dever. E cumprir a vontade de um outro é muitas vezes dolorido, porque temos a impressão de que uma coisa é de um jeito, e o outro nos diz que é de um jeito diferente. Dolorido porque renunciamos a uma porção de vantagens pessoais para fazer o que o outro está mandando. Então, é preciso ter varonilidade, decisão, capacidade de enfrentar o sofrimento, a dor, de fazer o que deve ser feito; isto caracteriza o verdadeiro espírito militar.

    Exatamente ao contrário do que pensa a Revolução, para a Contra-Revolução a obediência é um ato de bom senso, de fidelidade e de força. Portanto é uma honra.

    Nosso Senhor Jesus Cristo, paradigma da virtude da obediência

    Entre as Ordens Religiosas, aquela que, por sua analogia com o espírito militar, mais ensina a grande virtude da obediência é a Companhia de Jesus. Virtude essa cujo paradigma foi Nosso Senhor Jesus Cristo, a respeito do Qual diz a Escritura: “Ele se fez obediente até a morte, e morte de cruz”(1). É belo vermos como Ele não se deixou vergar por nenhum poder da Terra, falou com a cabeça erguida e com divina e vigorosa altaneria contra todos os grandes da sinagoga e os grandes que representavam o Império Romano em Israel. É pulcro contemplar Jesus falando Àquele que era verdadeiramente superior a Ele, o Padre Eterno, nas orações que fazia.

    A meu ver — naturalmente é uma impressão pessoal —, os mais belos trechos do Evangelho são as orações de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Ele se dirige ao Padre Eterno. Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, perfeitissimamente igual ao Padre Eterno — inferior, é verdade, na sua natureza humana —, Ele se dirige a Deus Pai com um respeito, um afeto, uma submissão, uma naturalidade, uma união, que, segundo me parece, constituem as páginas mais sublimes do Evangelho. O que não é dizer pouco, porque no Evangelho tudo é sublimíssimo; o Evangelho é uma concatenação de sublimidades, umas depois das outras. Tais orações mostram Nosso Senhor Jesus Cristo obedecendo, no ato de prestar a reverência à autoridade devida.

    Ninguém poderá jamais exprimir o que foi o modo pelo qual Nosso Senhor obedeceu a Nossa Senhora e a São José. Não se tem ideia do respeito, da exatidão, da prontidão com que Ele fazia esses atos de obediência. Tocamos aqui em mistérios divinos da Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, e percebemos a fímbria de uma obediência transcendente, glorificando e santificando todas as obediências que depois d’Ele se prestariam, ao longo dos séculos, a todas as autoridades legítimas das quais o Redentor era a mais alta expressão e ao mesmo tempo o fundamento.

    Obedecer sempre, exceto se a ordem colidir com a Doutrina Católica

    Na obediência há uma coisa particularmente dura. Em princípio, aquele que obedece pratica o ato de obediência porque reconhece em quem manda maior inteligência e capacidade; paradoxalmente, o resultado desse princípio é obedecer a quem tem menos inteligência e menos capacidade. Porque nesta Terra nem sempre a relação se faz de maneira que os mais inteligentes, os mais capazes, nem mesmo os melhores subam mais. Embora seja o normal, nem sempre isso ocorre.

    Mas, em atenção ao princípio de que o homem não deve discutir os seus superiores, a não ser quando se trata de uma colisão contra a Doutrina Católica e a Lei de Deus — neste caso é preciso não obedecer, porque a Doutrina Católica e a Lei de Deus estão acima de tudo —, ele precisa submeter-se e obedecer, mesmo vendo que aquele que manda é menos, sabe menos. Porque se cada um começar a discutir o superior, tudo se desagrega. Ao menos atendendo ao superior, ainda que menos capaz, uma obra comum se realiza.

    É uma espécie de requinte, uma sublimidade da obediência. E até lá, em inúmeros episódios, os jesuítas da época áurea manifestaram o seu espírito de obediência.

    Maravilhoso fato ocorrido com Santa Teresa de Ávila

    Compreende-se assim que membros de nosso Movimento, especialmente filhos da obediência — a expressão é de Santa Teresa de Jesus, que era filha da obediência —, gostem de um trecho de Santo Inácio de Loyola que passarei a comentar. São as normas que ele deixou para um jesuíta e que estão no testamento do Santo.

    Desde que um jesuíta entra na Ordem, seu primeiro cuidado será abandonar-se plenamente ao governo de seu superior.

    Quer dizer, não discutir, não analisar, seguir inteiramente o que o superior mandar. O superior é uma necessidade; pela ordem natural das coisas ele ali está representando Deus. A única coisa aonde a obediência não chega é aceitar a heterodoxia ou o mal.

    Segundo: se um jesuíta caísse nas mãos de um superior que dominasse seu juízo, seria desejável que ele estivesse inteiramente disposto a isso.

    Quer dizer, se um jesuíta estiver nas mãos de um superior menos competente, o qual lhe fizesse pensar uma determinada coisa, ele deve obedecer.

    Conhecemos esse fato maravilhoso, na vida de Santa Teresa de Jesus: inverno rigoroso, nada se planta; sua superiora lhe diz: “Irmã Teresa, vá ao jardim e plante esses aspargos de cabeça para baixo.”

    Era uma asnice, mas não um pecado. Tratava-se de uma ação de si indiferente. Ela vai ao jardim e planta os aspargos de modo errado, e no prazo adequado, apesar do inverno, os aspargos vicejam maravilhosamente. A bênção de Deus tinha caído sobre a obediência. E houve um milagre para provar quanto Deus gosta daqueles que sacrificam sua opinião ao modo de pensar dos superiores.

    É o oposto do durão que tem quinze objeções e, depois de vencidas essas objeções, vem com mais três ou quatro ininteligíveis, as quais são o último recurso que ele emprega para recalcitrar de todo jeito. E quando obedece resmunga, e executa o serviço ordenado de modo malfeito.

    Aqui é o contrário. Deve haver inteira placidez nas mãos do superior, que manda aquilo que o jesuíta deve fazer.

    Terceiro ponto: em todas as coisas onde não há pecado, é preciso que eu siga o juízo do superior e não o meu.

    É o mesmo princípio.

    Três modos de obedecer

    Quarto ponto: há três maneiras de obedecer. A primeira quando fazemos o que nos é mandado em virtude da obediência. E essa maneira é boa. A segunda, que é melhor, quando obedecemos a simples ordens. A terceira e a mais perfeita de todas, quando não esperamos a ordem do superior, mas a prevemos e adivinhamos a sua vontade.

    Numa Ordem Religiosa, na era clássica, quando um superior, em nome da santa obediência, mandava um religioso fazer alguma coisa dizia-lhe: “Ajoelhe-se porque o senhor vai receber uma ordem em nome da santa obediência.” Parece que na Companhia de Jesus a fórmula, lindíssima, era esta: “Pela graça e pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significava que o inferior ia receber uma ordem em nome da santa obediência. Ajoelhava-se e o superior dava uma ordem. Se esta fosse negligenciada, cometia um pecado mortal. Portanto tinha que ser cumprida, custasse o que custasse. Esse tipo de ordem se fazia de modo relativamente raro, somente quando o inferior se encontrava em estado de revolta.

    Mas há um outro modo mais corrente, conforme o qual o superior simplesmente afirma: “Padre Fulano, o senhor agora vai fazer tal coisa.” A violação de uma ordem assim não implica em pecado mortal, mas em pecado venial, às vezes em simples falta, mas era uma atitude contra a obediência.

    Existe um terceiro modo de obediência, pelo qual o súdito adivinha o que o superior quer e vai fazer antes de ser mandado. Então, conforme Santo Inácio de Loyola, é bom obedecer acuado entre a espada e a parede; melhor é obedecer apenas com uma ordem que não é tão imperativa; mas o ideal é ter o espírito feito de tal maneira que, antes mesmo de o superior dizer o que quer, o religioso obedece.

    Santa Teresinha obedecia a uma superiora cheia de caprichos

    Para entendermos o pleno sentido de tudo isso, devemos imaginar a época de Santo Inácio, São Francisco Xavier, São Francisco de Borja, o qual foi Geral da Companhia de Jesus.

    Suponhamos Santo Inácio, em seu convento, rezando, pensando, dando ordens, tudo em virtude de uma doutrina altíssima, sublimíssima, bem como de visões e revelações que ele recebia de Deus Nosso Senhor. É sabido que os “Exercícios Espirituais” lhe foram ditados por Nossa Senhora, na gruta de Manresa. Ele era um homem que difundia em torno de si o sobrenatural. O que devia fazer o bom súdito? Compreender o espírito, a mentalidade, a doutrina de Santo Inácio, de maneira que antes mesmo de este falar já entendia o que ele queria, e executava a vontade do Santo. O súdito se tornava, assim, um outro Santo Inácio. E o espírito de Santo Inácio se transmitia para ele, mais ou menos como o espírito de Elias passou para Eliseu.

    Consideremos, por exemplo, Santa Teresinha tendo que prestar obediência a uma superiora que deixava muito a desejar, como era a sua.

    São duas situações em que se obedece em condições completamente diferentes. Qual é a obediência mais bonita? A de um súdito de Santo Inácio que, olhando enlevado para o Santo e procurando haurir seu espírito, ser outro ele mesmo, procura adivinhar o que Santo Inácio quer? Ou a de uma Santa Teresinha do Menino Jesus diante da superiora, como Nosso Senhor Jesus Cristo no Pretório de Pilatos, e carregando de forma invisível, por cima do véu de religiosa, uma verdadeira coroa de espinhos?

    Realmente não sabemos, mas vemos a beleza dos dois estilos, dos dois modos de obediência, e como em todas as circunstâncias a obediência é uma verdadeira maravilha.

    Obedecer não apenas ao superior, mas aos que ocupam escalões intermediários

    São maravilhas da obediência que o mundo revolucionário não conhece, e sobre as quais é construído o mundo contrarrevolucionário. Isto arrepia um revolucionário e ao mesmo tempo o acachapa, porque com sua independenciazinha, sua liberdadezinha, ele fica tão pequeno como uma pulga insignificante e suja. E nós, diante da grandeza dessas duas situações extremas, compreendemos bem o esplendor da Contra-Revolução.

    Quinto ponto: deve obedecer indiferentemente a toda espécie de superiores, sem distinguir o primeiro do segundo, nem do último, mas considerar em todos igualmente a Nosso Senhor, de que eles ocupam o lugar, e lembrar-se de que a autoridade se comunica ao último por aqueles que estão acima dele.

    O pensamento contido nesse princípio é o seguinte: no alto da pirâmide está Santo Inácio de Loyola; numa porção de escalões inferiores há menos santos e menos Inácios. É fatal. E no nível mais baixo estaria aquele que corresponderia ao sargento dentro de uma instituição militar. Mas é preciso obedecer, porque, diz ele, a autoridade que está acima se comunica pelos inferiores. Nada de querer obedecer somente àquele que está no mais alto, mas, pelo contrário, sempre fazer tudo de acordo com as demais autoridades que estão abaixo. O único modo de fazer a vontade dos superiores é obedecer aos que estão em baixo.

    São Charbel Mackhluf e o caso da lamparina

    Lembro-me de um fato que faz parte da obediência, no sentido de que o súdito não somente deve cumprir o que manda o superior, mas também receber sem protesto as punições por ele impostas, mesmo quando essas punições são injustas ou pitos insultantes que, em tese, o inferior não tem a obrigação de aceitar. É uma das formas de obediência: a paz e a serenidade diante da repreensão injusta.

    Li a biografia, que é uma verdadeira maravilha, de São Charbel Mackhluf, monge oriental do rito maronita. Ele vivia em um convento situado num dos montes do Líbano, cujos religiosos se dedicavam à oração e a algum trabalho manual, como fazer cestinhas e objetos análogos, no silêncio mais completo.

    Ele era um homem tão obediente que pedia licença para tudo. E nessa tebaida santíssima seu superior tinha raiva de São Charbel. Às vezes, este ia pedir uma ordem para o superior, que lhe dizia o seguinte: “Será possível que o senhor seja tão imbecil que não saiba resolver isso por si? E precisa vir me pedir uma ordem?”

    Imaginemos São Charbel de capuz, alto, de barba grande, fisionomia tranquila e recolhida, e com a cabeça baixa. Depois de receber uma descompostura, ele olhava para o superior, à espera da ordem, porque o regulamento assim o exigia. O superior afinal dava uma ordem, e São Charbel saía para cumpri-la.

    Era um homem indomável. Pois homens que sabem obedecer são indomáveis. No primeiro convento onde ele havia ingressado, nunca era permitido a entrada de mulher. Certo dia, por uma razão qualquer, entraram algumas mulheres lá. O fato se repetiu duas ou três vezes. Sem dar satisfação a ninguém, São Charbel mudou-se para outro convento. Era um direito natural que ele exercia: “Eu vim aqui para me santificar; a regra foi infringida e minha salvação eterna está comprometida com esse fato. Aqui está meu direito: saio deste convento e vou para outro.”

    Indomável! Mas de outro lado, era o mais domável dos homens. Depois de passar anos debaixo das descomposturas desse superior, uma noite ele se lembrou de que lhe faltava uma parte do Breviário para rezar. Evidentemente não era meia-noite ainda.

    Ele se dirigiu à capela para rezar e depois foi à sua cela para terminar as orações, levando um pouco de fogo. Chegando lá, viu que não tinha azeite na lamparina, mas apesar disso acendeu-a e continuou a rezar.

    Era tarde da noite, todos já recolhidos, e o superior, vendo a luz acesa na cela de São Charbel, foi para lá rugindo de raiva. Porque pessoas assim são a favor de todas as liberdades, exceto da liberdade de alguém rezar mais ou fazer mais penitência. Bateu na porta e entrou.

    — Que é isto? Luz acesa a esta hora, onde é que se viu?

    O Santo quieto.

    — Explique-me qual a razão, porque nesta hora todos já devem estar recolhidos.

    — Padre, eu vos peço desculpas, mas o dia inteiro, pela ordem de Vossa Paternidade, eu estive trabalhando e só agora encontrei tempo para rezar o Breviário.

    — Rezar o Breviário?! E como conseguiu azeite para a sua lamparina? De onde o retirou?

    Respondeu São Charbel:

    — Padre, a lamparina não tem azeite, está cheia de água.

    O superior viu a mecha da lamparina ardendo na água e apenas disse o seguinte: “Reze por mim.” Saiu e fechou a porta.

    Aquela era a chama da obediência, ardendo até na água. São os milagres da obediência.

    Temos assim a explicação profunda a respeito desta obediência que nós, como contrarrevolucionários, devemos amar tanto.  v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/11/1971)
    Revista Dr Plinio 162 (Setembro de 2012)

     

    1) Fl 2,8.

     

  • São Roberto Belarmino – Santidade acima de tudo

    São Roberto Belarmino, dotado de qualidades intelectuais extraordinárias, de tal modo causou grandes devastações à heresia protestante, que se poderia afirmar ser a luta contra o protestantismo o sentido fundamental de sua vida.

    Chamado a Roma por Gregório XIII, passou a formar alunos de colégios ingleses e alemães, preparando-os para as lutas espirituais que teriam de travar contra a heresia ao regressar para seus países. Esta ação de São Roberto Belarmino, unida a de outros santos, teve uma repercussão fabulosa no futuro da Igreja.

    Além de desempenhar singular papel na direção da Companhia de Jesus, São Roberto foi exímio diretor de consciências. Entre as almas por ele dirigidas está a de São Luiz Gonzaga.

    Entretanto, de nada lhe teriam servido todos os seus dons e obras se ele não tivesse sido santo. O que seria deste varão se não correspondesse à graça?

    Acima de tudo, o grande mérito de Roberto Belarmino é o da santidade.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1967)

  • Porque foi santo…

    A vida de São Roberto Belarmino é uma obra-prima de serenidade abacial, dentro do auge da luta. Cardeal ocupadíssimo, entretanto ele sabia de tal maneira administrar bem o uso de seu tempo, que encontrava momentos de calma e de lazer para pensar e escrever obras tão profundas, a ponto de ser proclamado Doutor da Igreja.

    Portanto, horas e horas de serenidade, de meditação e de estudo, enquanto rugia a batalha contra o protestantismo.

    Pensador, polemista, homem de ação, diretor espiritual exímio, ele foi uma fortaleza que combateu pela Santa Igreja Católica em todas as direções. Mas por que ele foi tudo isso? Porque foi santo.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/5/1966 e 12/5/1967)

  • A beleza da hierarquia angélica

    Dr. Plinio tinha um apreço especial pelo estudo sobre os Anjos e grande devoção a eles. Comentando alguns trechos de um livro de Dionísio Areopagita, analisa a ordem, a atividade dos espíritos angélicos e faz aplicações desse tema aos indivíduos, à sociedade, a áreas de civilização e até mesmo a épocas históricas.

     

    Dionísio Areopagita, em seu Tratado da hierarquia celeste, descreve uma concatenação dos Anjos, apresentada por ele como a ordenação perfeita do ser criado. O puro espírito criado não teria necessariamente aquela ordenação, mas ele não está longe de dizer — ou até mesmo afirma — que os traços essenciais da ordenação são aqueles.

    A multiplicidade das criaturas

    O cabide que carrega todo o tema tratado por Dionísio é: uma vez que Deus criou, não poderia deixar de criar vários seres.

    São Tomás defende essa tese: O Altíssimo não poderia criar um só ser, porque nenhum ser único tem suficientes qualidades para refletir adequadamente as perfeições do Criador. Ora, a ordem do criado precisa refletir a Deus globalmente e não apenas em um de seus traços.

    Então, esquematizando, seria o seguinte:

    1. A ordem do criado tem que refletir a Deus globalmente, e não apenas em uma de suas perfeições.
    2. Refletir a Deus globalmente é algo de tão grande, que não pode ser feito por uma criatura, mas por várias, portanto por um universo, quer dizer, por um conjunto de criaturas que esteja em condições de dar esse reflexo global do Criador.
    3. Deus dispôs que essas criaturas fossem muitíssimas e dotadas de propriedades cujo conjunto, de fato, refletisse a Ele.

    Não me parece necessário que o número de seres fosse esse, nem que as criaturas fossem exatamente como são. Podiam ser criaturas numa quantidade diferente, cuja disposição e o inter-relacionamento entre elas adequadamente refletissem a Deus, num modo pelo qual os Anjos não refletem. Mas o Criador dispôs que fossem assim. Isso equivale a julgar que haveria outros universos possíveis. Isso é uma coisa que me parece absolutamente certa.

    A ordem na sociedade humana deve ser análoga à existente entre os Anjos

    Contudo, uma vez que Deus criou esse número de Anjos com essa natureza, não podia deixar de ser que eles estivessem ordenados como estão. Quer dizer, eles já foram criados assim em vista a refletir o Criador. E a ordenação, o inter-relacionamento entre eles, uma vez que são assim, seria necessariamente esse.

    E como a tarefa das criaturas consiste em refletir a Deus não só sendo, mas agindo sobre outros, essas criaturas não podiam existir enclausuradas sem terem contato umas com as outras. Tinham que se relacionar para que essas qualidades, esses predicados divinos se articulassem e representassem um só todo.

    Essas criaturas, assim articuladas, teriam que desempenhar um papel que, esquematicamente, é o papel que Dionísio atribui aos Anjos porque, na ordem absoluta do ser, um é aquele conhecimento amoroso dos Serafins, outro é aquela inteligência dos Querubins, outro é aquele poder dos Tronos, e assim por diante.

    Como nós, homens, estamos no mesmo universo que os Anjos, fazemos parte da mesma Criação, eles devem nos governar. Em consequência, nossa ordem deve ser análoga e consonante com a deles. E, como tal, o modo de nos relacionarmos e os traços fundamentais de governo da sociedade humana, feitos os descontos da diferença de naturezas, têm que ser análogos aos do mundo angélico.

    A força motora do governo legítimo

    Entretanto, não pode ser que alguns de nós sejamos apenas cognoscitivos e volitivos, como os Anjos. Vê-se que nossa natureza não comporta isso, mas está menos longe de nossa natureza do que se pode imaginar à primeira vista.

    Em muitos trechos dos seus discursos à nobreza romana, Pio XII encaixava o regime democrático, afirmando que as mais autênticas democracias devem ter instituições aristocráticas. Nesta perspectiva e tomando, portanto, a ideia de aristocracia no seu sentido mais amplo, quer dizer, as elites, é mais ou menos certo, a meu ver, que em face da missão de uma sociedade, do que ela é, do que deve fazer, há um maior descortínio das classes mais altas do que das mais baixas. E esse descortínio deve fazer com que as classes mais altas conheçam melhor o espírito do país, o que este é como um todo, amem-no com mais finura, de maneira tal que elas filtrem isso para as classes mais baixas. E que essa filtração produza, por sua vez, um impulso diretivo do poder sobre as classes mais baixas que é verdadeiramente a força motora do autêntico governo legítimo.

    As classes mais baixas, assim iluminadas e impulsionadas, têm uma capacidade de execução muito maior do que numa sociedade onde não haja isso. E disto decorre, propriamente, o vigor e a coesão de um corpo social.

    Alguém que inventasse copiar a ordem angélica para a ordem humana — não se inspirar, mas copiar —, faria as coisas mais pesadas, mais tontas que se possam imaginar.

    Por exemplo, é de experiência comum que, de vez em quando, saem da classe mais baixa elementos extraordinariamente dotados; mas não correspondem à figura clássica do homem muito inteligente, que vai ficar um “ploc-ploc”(1). São pessoas muito dotadas de dons naturais vivos, capazes de vencer as batalhas da vida e aproximarem-se da aristocracia merecidamente, afinarem-se.

    As raízes de uma árvore e a nobreza

    As raízes de uma árvore pegam matéria inerte nas capilaridades, assimilam-na e a transpõem para o estado de matéria viva, passando a circular dentro do fluxo vital da árvore. A matéria morta que passa a ter vida lembra um pouco uma ressurreição. Isto é uma maravilha que ocorre nas raízes de todas as plantas a todo momento.

    Há um fenômeno parecido com esse pelo qual a nobreza suga continuamente da plebe — uma sucção generosa, bondosa, honorífica para a plebe — os elementos aproveitáveis e os eleva, ejetando de si outros que, muitas vezes, se jogam eles mesmos para baixo.

    Nesse sentido, tenho certa reserva contra algumas instituições que, sob o pretexto de manter longevas as famílias, amarram-nas nos seus próprios tronos, de tal maneira que quando elas estão apodrecendo, ainda se mantêm sentadas ali.

    A inalienabilidade de certo bem em determinada família, enquanto o mundo durar, revela o propósito de evitar que ela seja despojada imerecidamente de alguma coisa. Mas denota também a intenção de assegurar aquilo para a família, mesmo quando as mãos débeis dela não forem mais capazes de agarrar e sustentar.

    O Anjo não pode ser promovido para uma categoria superior, nem rebaixado a uma inferior. O homem pode. Se o anjo for um Querubim, sê-lo-á até no Inferno.

    Portanto, é preciso saber entender como se inspirar nisso.

    A esse respeito, poder-se-ia dar a seguinte regra:

    Para nos inspirarmos no mundo angélico, seria preciso ver como isso foi modelado pelo surto de vida natural e sobrenatural do começo da Idade Média até a Revolução Francesa, feitos os descontos da decadência que houve naquele período. Depois procurar ver no que aquilo, sem a intenção de imitar os Anjos, de fato imitava, para assim compreender como esta semelhança pode jogar, e como devemos fazer no Reino de Maria.

    A coisa errada, “ploc-ploc”, seria: vem o Reino de Maria, consultamos nossos especialistas em matéria de Anjos, eles nos dão os esquemas e organizamos uma sociedade. Não é isso! Precisamos ver como o bom impulso natural e sobrenatural vai movendo as coisas. E procurar interpretar esse impulso à luz do exemplo angélico, para em algum ponto retificar, apoiar, fazer o que executa o jardineiro com a planta.

    Ele não faz o plano da planta e puxa o vegetal para ser daquele jeito, mas toma as possibilidades de progresso da planta e a orienta, poda de cá, de lá, leva-a para o lugar onde incide mais sol, enfim, manobra, segundo uma ideia que ele tem da planta, o que há de autêntico e orgânico dentro dela.

    A pulcritude da abstração

    Para isso serve enormemente o estudo dos Anjos, porque, desde que se compreenda em que sentido aquele surto está imitando-os — e que as pessoas tenham consciência de que, deixando-se tocar por esse impulso, elas estão fazendo uma coisa angélica —, o surto fica ainda mais forte e toma mais autenticidade.

    Se, por exemplo, sou professor e percebo que é em virtude de um tal influxo angélico que estou agindo de determinado modo, compreendo como aquilo que surge em mim, como de minhas raízes, é “angeliforme”. Então, sou capaz de dar instintivamente àquilo uma espécie de perfeição que, se eu não soubesse isso, não daria.

    O exemplo dos Anjos faz sobre nós o papel do exemplo do Sol sobre a planta. Não se trata tanto de raciocínio, mas é um “heliotropismo” rumo aos Anjos, estando Deus acima. O Anjo aqui é um hífen para Deus.

    Seria preciso termos teólogos e artistas da sociedade que vai nascendo, capazes, antes de tudo, de senti-la no seu fluxo providencial, natural e sobrenatural. E saber apenas iluminar esse fluxo com o exemplo dos Anjos, e outras coisas tiradas da Teologia.

    Imaginemos uma sociedade que tivesse toda a atenção posta sobre aqueles que são de algum modo os maiorais dela, os Anjos, e sobre o fato de que tudo o que existe na Terra, provavelmente, é reflexo de algo de angélico para depois tocar algo em Deus e ser reflexo d’Ele. Por exemplo, o modo de o homem ver as coisas abstratas, que é o píncaro do pensamento humano por vários lados — e depois contemplar as coisas simbólicas que é também esse píncaro sob diversos aspectos —, levaria o homem a ser capaz de perceber na abstração um “pulchrum”, que é parecido com o “pulchrum” das abstrações do Dionísio.

    Quando ele fala de criaturas espirituais, que nem sequer podemos conceber, e desenvolve toda esta “ordenação com beleza” das coisas espirituais que acabamos de ver, dá-me a impressão de que em muitos dos trechos dele a abstração toca violino.

    O que há de encantador em muitos trechos do Dionísio?

    Ouvindo a leitura deles, várias vezes eu procurava ver se, além de acompanhar o pensamento, poderia apanhar no que estava essa beleza.

    Na pura abstração há certo modo de concatenar as ideias e de ver o “pulchrum” delas, bem como um certo senso do “pulchrum” que se desperta de vez em quando; isso é, penso eu, algo de parecido com o que o homem sentiria se visse um puro espírito. Mas infinitamente ainda mais se visse Deus, porque Deus é absoluto e o absoluto é a personificação de muita coisa que conhecemos como abstrato, visto por certo lado.

    Sentindo o belo da vida interna de Deus

    Outro dia, estávamos numa das nossas sedes em que se entoou o Credo. Em determinado momento cantou-se “Deum de Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantiálem Patri”(2). Nós todos já ouvimos isso mil vezes, mas no momento em que foi cantado me pareceu sentir o belo desta vida interna de Deus, por onde Ele toca e não é tocado, e tudo se passa sem que Ele decaia ao tocar nas coisas.

    Não podemos dizer que Deus seja uma abstração, mas nossa noção sobre Deus tem algo do abstrato, porque não corresponde a nenhuma imagem do sensível. Mas foi um momento em que de repente apareceu a beleza disso.

    Se tivéssemos o espírito inteiramente adestrado, seríamos capazes de ver nas abstrações todo o belo musical delas, que daria ao homem uma fome e uma sede de abstração, que tenho a impressão de que os povos do Oriente possuíam.

    De onde vinha exatamente o fato de eles se interessarem tanto pela manutenção da ortodoxia contra essa ou aquela heresia; e depois torcerem pela propagação dessa ou daquela heresia contra a ortodoxia, como alguém hoje poderia torcer por uma partida de futebol. A meu ver, porque eles pegavam isso e a mudança de qualquer matiz os tocava a fundo. Eram povos que estavam numa clave muito superior à nossa.

    E acrescento: só as almas capazes de verem isto assim compreendem o píncaro de uma cultura, de uma nação. Não digo que um aristocrata precisa ter necessariamente esta visão de espírito, mas afirmo que se não houver gente como estou dizendo para tocar esse fogo sagrado na mente do aristocrata, não teremos aristocracia.

    Se tivéssemos isso bem organizado e posto no espírito, compreenderíamos muito melhor algo da luz primordial(3) e até do senso do ser de cada um de nós, que fica preso no porão de nossa própria personalidade, como uma mercadoria no porão do navio, e que levamos do berço até a sepultura sem nunca desembalar esse tesouro, para fazê-lo tomar ar e procurar, enfim, adornar-se com ele.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/4/1984)

     

    1) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição e bom senso, querem explicar tudo por meio de raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

    2) Trecho, em latim, do Credo Niceno-Constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

    3) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a aspiração existente na alma de cada pessoa, ou num povo, para contemplar a Deus de um modo peculiar, refletindo d’Ele determinada perfeição. Ver Dr. Plinio, n. 54, p. 4.