Categoria: Santos do dia

  • Santa Margarida Maria

    Algumas pinturas retratam as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque: Ele se dirige à vidente numa expressão de bondade, comprazimento e misericórdia insondáveis. Ela, por sua vez, naturalmente nimbada de enlevo e adoração.

    Ah! Se pudéssemos ouvi-Lo manifestando aos homens o infinito amor de seu Coração Sagrado por nós! Se nos fosse dado conhecer o timbre de sua voz, ensinando como Divino Mestre: repassado de clareza, sabedoria, profundidade e horizontes extraordinários, ao lado de uma simplicidade desconcertante! Como gostaríamos de ali estar, ao lado de Santa Margarida Maria, adorando-O com todas as veras de nossa alma!

     

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • Decisão, perseverança e reflexão

    Em Santa Teresa de Jesus vemos qualidades suavemente justapostas, com algo de harmonicamente dissonante entre a ação e a contemplação, altivez e misericórdia, determinação e bondade, que denotam e constituem uma imensa personalidade. Realmente, ela foi uma das maiores figuras femininas de toda a História. Tão extraordinária que mereceu ser proclamada Doutora da Igreja.

    Seu olhar e seu semblante parecem dizer: “Eu só tenho Aquele a Quem admiro, e não temo absolutamente ninguém ou nada que me possa acontecer, porque Ele é tudo e vence tudo”. É a própria expressão da decisão, perseverança e reflexão.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 22/7/1975 e 6/6/1980)

  • Santa Teresa de Ávila, uma alma universal

    Possuidora de uma alma verdadeiramente católica, ante as devastações do protestantismo Santa Teresa se re-afervorou e reformou o Carmelo, constituindo um dos principais elementos da Contra-Reforma.

    Santa Teresa de Jesus viveu na época em que o protestantismo deixara de ser uma centelha que começava a incendiar apenas uma parte da Alemanha para tornar-se um fogo invadindo o mundo inteiro. Na França — de onde vinham para a Espanha notícias muito mais frescas, por estar mais próxima da Alemanha —, o incêndio religioso era tremendo.

    Sobre este aspecto de sua vida, Rohrbacher faz as seguintes considerações:

    No primeiro capítulo de sua obra, “O Caminho da Perfeição”, Teresa explica os motivos que a levaram a estabelecer uma observância tão rigorosa no mosteiro carmelita de São José de Ávila.

    Diz ela: “Tendo conhecimento dos desastres, em França, da devastação que aí faziam os heréticos, e como essa infeliz seita aí se fortificava dia a dia, fui por isso tão vivamente tocada que, como se eu pudesse alguma coisa, ou fosse alguma coisa, chorava em presença de Deus e implorava que remediasse tão grande mal.

    “Parecia-me que eu teria dado mil vidas para salvar uma só alma, do grande número delas que se perdiam nesse reino. Mas, vendo que era somente uma mulher, e ainda tão má e totalmente incapaz de prestar a Deus o serviço que eu desejava, acreditei, como acredito ainda, que, como há tantos inimigos e tão poucos amigos, eu devia trabalhar o quanto pudesse para fazer com que esses últimos fossem bons.

    “Assim, tomei a resolução de fazer o que dependia de mim para praticar os conselhos evangélicos com a maior perfeição que pudesse, e procurar levar esse pequeno número de religiosas que estão aqui, a fazer a mesma coisa. Nesse sentido, confiei-me à bondade de Deus, que não deixa jamais de assistir aqueles que a tudo renunciam por seu amor. Esperei que com essas boas moças, sendo como meu desejo as figurava, meus defeitos seriam cobertos por suas virtudes e poderíamos contentar a Deus em alguma coisa, ocupando-nos todas em rezar pelos pregadores, pelos defensores da Igreja e pelos homens sábios que sustentam discussões. Pois assim faríamos o que estava em nosso alcance para socorrer nosso Mestre, que esses traidores, que Lhe devem tantos benefícios, tratam com tanta indignidade, que parecem querer crucificá-Lo ainda e não deixar lugar algum onde Ele pudesse repousar a cabeça.”

    Ante o avanço do protestantismo, Santa Teresa se reafervora e reforma o Carmelo

    A reflexão de Santa Teresa é lindíssima. Simples religiosa de um convento carmelita, não propriamente corrupto, mas relaxado, ela mesma passou muito tempo na tibieza e na mediocridade quanto ao amor de Deus. Ela ouviu falar das devastações — naquele tempo muito grandes — que o protestantismo estava fazendo na França.

    Os protestantes tinham conquistado completamente um pequeno reino que havia no Sul desse país: Navarra. Além disso, tinham eles se espalhado por toda a França, e um terço da nação havia se tornado protestante. Faziam toda espécie de blasfêmias, de agressões às igrejas; era um verdadeiro incêndio religioso na França.

    As notícias desses fatos chegam à Espanha e ao conhecimento dessa freira. A graça de Deus toca a alma dessa religiosa e ela compreende o imenso desastre que isso representava. Em vez de ficar com ideias nacionalistas idiotas, pensando: “Aquilo é na França; estou na Espanha e não tenho nada a ver com o que se passa naquele país”, mas convicta da universalidade da Religião Católica, da Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela entendeu também que isso era um verdadeiro desastre para o mundo católico. Então, ela se pôs a chorar copiosamente, e daí veio a ideia de sua conversão.

    Alma verdadeiramente católica!

    Por outro lado, ela sabia naturalmente que a nação espanhola era muito mais fiel à Fé católica do que a nação francesa; portanto, para o país dela, naquelas circunstâncias, ao menos para prazo breve, o perigo não era grande. Tinha ela a felicidade de viver sob um grande rei católico, Felipe II, adversário acérrimo do protestantismo.

    Santa Teresa possuía uma alma verdadeiramente católica, quer dizer, universal, capaz de considerar não só os perigos nos quais se encontrava e os problemas da Igreja que tocavam a sua pessoa, mas também a causa da Igreja Católica como um todo, e de se interessar por essa causa, ainda que seu próprio país não estivesse atingido. Ou seja, ela amava a Igreja sem nacionalismo estreito, sem egoísmo, sem personalismos. Vemos aqui um grande exemplo de espírito sobrenatural que ela dava.

    Há muitas pessoas que começam a considerar apenas o que lhes é mais próximo; depois, por ampliações sucessivas, chegam até a uma visão geral das coisas. É um feitio de espírito, um modo de caminhar.

    Porém, é muito frequente encontrar pessoas que, fazendo-se católicas, se interessam apenas por sua paróquia, ou então pela sua diocese ou pelo seu país. Negócios católicos de outras nações são mais ou menos como o mundo da Lua; a ideia de uma Causa católica como um todo, elas não chegam a compreender. Ora, uma alma bem formada, que ama a Deus, precisa amá-Lo não somente na sua paróquia, mas no mundo inteiro.

    E, fundamentalmente falando, deve alegrar-se com os triunfos da Causa católica, desolar-se com suas derrotas, quer sejam no âmbito de sua vida ou fora dele, no próprio país ou no exterior. Esta é uma alma verdadeiramente católica, universal.

    Santa Teresa de Jesus possuía uma alma de fogo, com uma viva noção da Causa católica. Embora naquela época as comunicações entre a França e a Espanha fossem muito lentas, sendo preciso atravessar os Pirineus, com estradas muito ruins, o que tornava difícil a semeadura das doutrinas más das heresias, ela se entregou por inteiro à tarefa de reformar a Ordem do Carmo.

    Ideia de conversão

    De onde lhe veio a ideia da conversão? Ela expõe esse assunto apenas de passagem aqui, mas em outros trechos isso fica mais claro. Santa Teresa fez o seguinte raciocínio: “Sou uma simples religiosa e, como mulher, nada posso fazer. A não ser o seguinte: os amigos de Deus são poucos e tíbios, enquanto que seus inimigos são muitos e ardorosos. Devo, portanto, rezar, imolar-me, renunciar a tudo para que os amigos de Deus se tornem mais fortes e sejam capazes de fazer face aos seus inimigos”.

    Então, afervorar, “catolicizar” os católicos era o meio de levar o inimigo à derrota. Assim, tornava-se necessário que algumas freiras, as quais estavam ao seu alcance, se imolassem, rezassem, e ela mesma passasse da mediocridade para o fervor, a fim de conseguir que os pregadores, os doutores católicos, os batalhadores pelas armas católicas se tornassem capazes de derrotar os protestantes.

    Dessa ideia surgiu a reforma do Carmelo. E, naturalmente, graças incontáveis se derramaram sobre a França, em consequência das orações das carmelitas.

    Vemos que tudo isso foi inspirado por ideias altamente teológicas e sapienciais: a comunhão dos santos; o valor preponderante da oração e do sacrifício para a Igreja vencer suas grandes batalhas; “catolicizar” os católicos, como meio de vencer os não católicos e deter o furor destes últimos. É uma concatenação de ideias esplêndidas, que se ligam umas às outras, e têm, como desfecho, a reforma da Ordem do Carmo.

    A reforma do Carmelo: um dos principais episódios da Contra-Reforma

    Santa Teresa de Jesus apenas estabeleceu a reforma das Carmelitas Descalças. Humanamente falando, não é uma obra tão extraordinária. O que representa, sob o aspecto humano, multiplicar o número de conventos de religiosas trancadas no seu convento? Ou, digamos, de mosteiros de padres fervorosos?

    Entretanto, não há História da Igreja, um pouco cuidadosa, que não mencione entre os principais fatos da Contra-Reforma, a reforma teresiana do Carmelo. Porque essa reforma teve um efeito extraordinário nos imponderáveis de toda a Cristandade. Em torno das carmelitas desencadeou-se um movimento de afervoramento, que foi um dos motores mais vigorosos da Contra-Reforma.

    Os padres carmelitas também atuaram da mesma maneira. Quer dizer, desenvolveram uma ação maior do que os meios humanos nela empregados, uma espécie de expansão de um espírito, de uma mentalidade, de uma atitude de alma, a qual teve como consequência um afervoramento geral dos católicos.

    A prioridade da vida interior

    Isso se explica muito mais pelo lado sobrenatural do que pelo natural. E nos mostra quanta razão temos em algumas impostações nossas: prioridade da vida interior sobre a vida ativa; preocupar-se mais em “catolicizar” os católicos do que conquistar não católicos para a Igreja Católica; a ideia de que a oração e o sofrimento valem mais, na luta contra os adversários, do que a ação; o desejo, entretanto, ardente da ação levada até suas últimas audácias, que caracterizavam o espírito de Santa Teresa de Jesus.

    Tudo isso faz com que percebamos, pela grande autoridade de Santa Teresa de Jesus, quantas concepções nossas são verdadeiras e, portanto, como a elas devemos ser fiéis.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 14/10/1966 e 29/11/1969)

  • Santa Teresa de Jesus – Alma de rara grandeza

    A extraordinária figura da Santa cujo fogo de alma incutiu novo ânimo e vigoroso impulso à Ordem do Carmo, suscita em Dr. Plinio profunda admiração, refletida nestes comentários nos quais aproxima, num vívido paralelo, essas duas estrelas do firmamento da Igreja: Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux.

    Um dos comentários mais adequados que se poderia fazer a respeito de Santa Teresa de Jesus, a Grande, cuja festa se comemora em 15 de outubro, é o que tange à sua verdadeira grandeza de alma, e como esta difere da “imensa pequena” grandeza de Santa Teresinha do Menino Jesus.Um dos comentários mais adequados que se poderia fazer a respeito de Santa Teresa de Jesus, a Grande, cuja festa se comemora em 15 de outubro, é o que tange à sua verdadeira grandeza de alma, e como esta difere da “imensa pequena” grandeza de Santa Teresinha do Menino Jesus.

    Qualidades naturais e espirituais deslumbrantes

    Quando se lê a vida de Santa Teresa tem-se uma espécie de deslumbramento que nos leva a dizer: “Trata-se de uma avultada personalidade, com todas as suas potencialidades plenamente desenvolvidas”.

    Por ocasião de sua morte, um escritor, em carta a um amigo na qual contava algumas novidades, afirmou: “Morreu um grande homem, a freira espanhola Teresa de Jesus”. Tal era a impressão causada por ela a seus contemporâneos.

    Possuía inteligência vasta e privilegiada, ao mesmo tempo matizada e forte, talhada para altos vôos. Além disso, dotada de uma vontade firme e sensibilidade controlada por inteiro.

    A essa riqueza natural a Providência acrescentou diversos dons sobrenaturais, cuja amplitude pode ser avaliada pelos fenômenos da vida mística com ela ocorridos. Ou seja, visões, revelações, êxtases, todo um especial convívio com Deus, em que se percebe o refulgir colossal da graça, causando-nos a impressão de extraordinária personalidade que verdadeiramente nos deslumbra. Foi, de fato, uma grande dama, uma grande mulher, uma grande freira e grande santa.

    Tipo perfeito da religiosa matriarca

    Todas essas culminâncias, como montanhas superpostas, produziam tais sensações de assombro que, durante sua vida terrena, algumas pessoas talvez sentissem certo receio de se acercar dela.

    Era, em última análise, a grandeza da personalidade humana num de seus exemplares mais privilegiados na ordem da natureza, refulgindo com sublimidades da graça, e dando uma ideia completa do que seria o tipo perfeito da religiosa matriarca. Pois Santa Teresa de Jesus tornou-se uma admirável matriarca. Ela foi, como mãe espiritual, aquilo que o patriarca é como o fundador de uma linhagem. Possuía de modo invulgar quase todos os carismas e bênçãos do patriarca, a ponto de nos fazer esquecer das debilidades do sexo feminino e vermos nela uma espécie de querubim, com todas as eminências de um ser puramente espiritual.

    Assim foi Santa Teresa de Jesus, a Grande. Aliás, poderia ser considerada também como a santa do feitio de alma da geração velha(1), dotada de todos os recursos psíquicos que caracterizam o equilíbrio ideal. Naturalmente, nessa geração houve indivíduos dos mais inteligentes até os menos favorecidos no tocante ao intelecto, porém, ainda nestes últimos existia certa normalidade, força, repouso sobre si mesmo, plenitude, que Santa Teresa manifestava de modo extraordinário.

    Paralelo com Santa Teresinha

    Santa Teresinha do Menino Jesus, pelo contrário, não foi geração nova, mas representa de algum modo a aurora da época em que esse tipo de personalidade surgiu. Ou seja, a família de almas pequenas, profundamente admirativas das grandes almas, pelas quais nutrem respeito, procuram imitá-las, mas compreendem que no plano natural não lhes foi concedida a mesma plenitude.

    A santa de Lisieux tinha acessos de timidez, inibição e outros movimentos de alma complexos que, no âmbito humano, representam limitações. Por exemplo, quando a mãe a chamava do alto de uma escada, fazendo-o de modo risonho e acolhedor, ela a galgava num passo rápido; porém, se de maneira severa, ela ficava enregelada e não conseguia subir. Ora, se o fato ocorresse com Santa Teresa de Ávila, de uma ou outra forma, ela subiria a escada saltando os degraus.

    Donde Santa Teresinha afirmar que Deus não a atraía através de fenômenos extraordinários, como visões, êxtases ou revelações, e sim por meio de pequenas coisas feitas com amor, naturalidade, com confiança ilimitada na bondade do Altíssimo.

    A mesma música, com acentos de delicadeza

    Santa Teresinha do Menino Jesus fundou a pequena via que não poderia ter sido vivida com mais envergadura de alma, largueza de horizonte e plenitude de santidade do que ela própria o fez. Executou a mesma música magnífica de Santa Teresa de Ávila, contudo tocada em outro instrumento, mais delicado e suave. Não obstante, no fundo com austeridade, generosidade e entrega a Deus tão grandes que, quando se lê a vida de Santa Teresinha, chega-se a esta conclusão: por mais que Santa Teresa tenha sido colossal realizando coisas extraordinárias, Santa Teresinha foi colossal fazendo coisas pequenas. E esta última característica não fica abaixo da primeira.

    Trata-se da maravilhosa variedade das obras de Deus, fazendo-nos compreender que cada um de nós, procurando santificar-se naquilo para o que nasceu, deve estar tranqüilo e satisfeito, pois obedece à vontade do Criador.

    Deus glorificado na junção das duas Teresas

    Assim entendemos como Deus é glorificado na junção dessas duas Teresas; cada uma como que representa um capítulo da história da alma humana e uma forma de santidade da Igreja.

    Como disse, não se pode reputar que Santa Teresa do Menino Jesus fosse uma pessoa cheia de debilidades e carências. Porém, estava na aurora das almas da pequena via, que fazem coisas simples, comuns, modestas, despretensiosas, e podem alcançar uma grande santidade. A esse título ela deve ser considerada a padroeira da geração nova, aquela que indica o caminho reto, fácil, para os pequenos. Estes, sem almejarem os grandes vôos de Santa Teresa de Jesus, entretanto são capazes de tocar em alturas tão elevadas quanto ela logrou alcançar.

    Eis, portanto, um paralelo estabelecido entre as ­duas santas. Uma se explica pela outra. Se quisermos contemplar toda a grandeza de Santa Teresa de Ávila, consideremos Santa Teresinha. Se desejarmos aquilatar a riqueza da santa de Lisieux, analisemos a vida de sua predecessora. Tais são as maravilhas de Deus que devemos admirar e cujo alcance inteiro não raro escapa ao olhar humano.

    O espírito prático não se opõe à contemplação

    A propósito de Santa Teresa de Ávila, parece-me oportuno apontar algo que concerne de perto a nossa vocação.

    Em geral, os fundadores das ordens contemplativas têm importante nexo com a causa contra-revolucionária, e Santa Teresa foi fundadora de um ramo da Ordem do Carmo, à qual nos é dada a ventura de pertencer na qualidade de Terceiros. De fato, esta Ordem é uma só, embora esteja dividida em dois ramos (calçados e descalços), e tanto os Terceiros de um quanto de outro integram a estirpe carmelitana. Somos, portanto, da mesma família de almas de Santa Teresa de Jesus.

    Além desse vínculo, vários aspectos da sua vida demonstram haver certa semelhança entre ela e nosso movimento, e um em particular, pois tende a ser pouco analisado por nós.

    Ao conhecermos a infatigável atividade de Santa Teresa, aliada à sua não menos intensa vida interior, compreendemos tratar-se de erro funesto pensar que o espírito prático é o oposto do contemplativo, gerando a falsa idéia de que a piedade de uma pessoa realizadora e dinâmica deve diminuir na proporção de suas obras, e que o tempo por ela dedicado à oração prejudica seus empreendimentos.

    Conta-se que o abade trapista francês, Dom Chautard, autor do livro A alma de todo apostolado, certa vez se encontrou com Clemenceau, primeiro-ministro da França, e este lhe perguntou:

    — Como o senhor tem tempo para fazer tanta coisa?A resposta do religioso:

    — Acrescente às minhas ocupações diárias a celebração da Missa, a leitura do breviário, outras tantas práticas de vida de piedade, e então sobra tempo para as demais atividades…

    Afirmação magnífica, à qual não falta aquela precisão francesa, que diz tudo em poucas palavras.

    Algo de análogo ocorre conosco. Uma pessoa ávida dos minutos diria que dedicamos tempo exagerado à oração, e melhor serviríamos aos interesses da Igreja se comprimíssemos determinadas preces quotidianas. É uma idéia inteiramente equivocada, e o êxito notório de nosso apostolado pelo Brasil e o mundo prova que só o alcançamos porque dedicamos todo o tempo necessário à vida interior. Ou seja, se mais tempo a ela consagrássemos, resultados ainda mais práticos e eficazes seriam obtidos. E acrescento: teríamos no mais alto grau os dons para cumprir nossa missão.

    Equilíbrio entre contemplação e ação

    Nesse sentido, há um episódio célebre na vida de Santa Teresa de Jesus que ilustra bem como a contemplação e a ação devem estar unidas.

    Certo dia recebeu ela, por obediência, ordem de preparar uma panqueca para o almoço das freiras. Para fritá-la, é necessário manusear a frigideira de modo a lançar a panqueca para o alto e fazê-la girar no ar, o que exige muita atenção de quem a prepara. Em determinado momento, entra uma freira na cozinha e vê Santa Teresa no auge de um êxtase, a face iluminada, transfigurada, e continuando a fritar a panqueca. Quando terminou sua oração, o quitute estava pronto e muito bem feito.

    Vejo neste fato um belo símbolo do equilíbrio entre a contemplação e a ação. Quer dizer, quem desejar fazer boas “panquecas” em matéria de apostolado, reze fervorosamente; isto é, se orar, o apostolado dará bons frutos; sem oração, os frutos serão menores ou nulos.

    Temos, assim, colhido no admirável exemplo de Santa Teresa de Jesus, um princípio de ouro que toda alma chamada a uma vocação apostólica deveria gravar e cultivar no seu interior.

    Plinio Corrêa de Oliveira

    1) Geração velha, geração nova: cf. Dr. Plinio número 81.

  • Arquetipização, amor à cruz e seriedade

    Desde a primeira infância, Dr. Plinio possuía uma tendência à arquetipização, que era alimentada pela frequência à Igreja do Sagrado Coração de Jesus. O ambiente, as imagens, o órgão lhe causavam encanto, mas ele sentia a necessidade de que ali também houvesse uma fortificação; e percebia que dentro daquela harmonia e beleza estava encravada a cruz.

     

    Na Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, eu sentia como um estado de espírito que ficasse pairando pelo ar, uma mentalidade difusa que parecia dizer algo através de cada um dos elementos da decoração. O que havia de mais alto, mais eminente, mais preciso, se exprimia através da imagem do Sagrado Coração de Jesus, sugerindo o modo de Ele ser.

    Uma “bonbonnière” de Sèvres

    Tudo quanto via em mamãe era, para mim, um elemento integrante d’Ele. Primeiramente, percebi a Ele na Igreja do Coração de Jesus, da qual — por pasmoso que seja — o próprio Sagrado Coração de Jesus também é um elemento integrante.

    Toda a vida, desde bem pequeno, houve no meu espírito uma tendência para a arquetipização. Não no sentido de me iludir, achando algo arquetípico quando na realidade não é, mas pensando mais ou menos o seguinte: “Se isso fosse perfeito, como seria?” E julgando mais pelo que aquilo deveria ser, do que pelo que era. Eu não tinha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.

    Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração de Jesus.

    Se eu visse uma “bonbonnière”, o mais importante para mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza de expressão, por falta de clareza de espírito, por uma porção de coisas — ser aquele objeto “mais bonito”, porque morava ali um plano mais bonito do que em outro objeto.

    Lembro-me de que vovó tinha uma “bonbonnière” de Sèvres, daquele tempo em que se importavam as coisas da Europa às torrentes, a baixo preço. Não era um objeto pomposo, mas eu o achava lindo!

    Com a partilha dos bens, isto ficou para uma tia minha, e lamentei que a “bonbonnière” não tivesse ficado com mamãe. Uns 30, 40 anos depois, numa das idas à casa dessa minha tia, vi a “bonbonnière” ao alcance de minha mão; e, não sem susto da dona da casa, peguei-a e comecei manuseá-la. Fingi não perceber o susto de minha tia, que temia que o objeto caísse no chão. Eu tinha fama na família de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta…

    Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava linda a “bonbonnière” que o artesão quisera fazer, não a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente a arquetipia da realidade, e julgava que a “bonbonnière’ linda estava de algum modo também presente ali.

    O que acabo de descrever é muito menos raro do que parece. O espírito humano é correntemente propenso a isto.

    As mitras ”preciosas” dos bispos

    Conto algo característico desse processo de arquetipização, por onde mostro como ele é legítimo.

    O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias de princesas do Oriente e roupas de “Ancien Régime”. Para imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante, sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que estavam vendo.

    O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava ridículo.

    Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua Santa Ifigênia(1), nesses especialistas de objetos de alfaiataria religiosa.

    Mais de uma vez, terminada a cerimônia da Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral, os sinos todos tocando, o portal fazendo moldura para ele; e reluzindo na mitra todas aquelas pedras falsas que poderiam ornar as fantasias de carnaval.

    Ninguém achava ridículo. Era uma legítima arquetipização. Quer dizer, é um processo legítimo, sem o qual a boa ordem do pensamento humano é quase incompreensível.

    Comigo, esse processo se dava desde que me lembro de mim, já na pré-idade de formação da razão, dos primeiros princípios.

    Bons arquétipos e realidade

    Também com relação ao mal. Alguém diria que nasci com uma vocação maniqueia furibunda, mas não é verdade. Era o “inimicitias ponam”(2), e outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.

    Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker, o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na chuva(3). Ele se me apresentava como uma personificação do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém certamente de acordo com modelos alemães que o Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker. Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”

    Isto se dava arqui-carregadamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.

    Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre defeitos. Mas esta graça de arquetipização não gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização e desvia a atenção dela.

    Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que formamos na alma, pois mesmo quando não correspondem à realidade, são mais profundos que a realidade vista.

    O timbre de voz de Nosso Senhor

    É importante notar ser esta atitude de alma uma explicação de minha pessoa aos olhos dos outros. Se quiserem entender muitas de minhas atitudes, vejam que estou agindo em função de um arquétipo.

    Mas este arquétipo não é como o do indivíduo que estudou na escola de Belas Artes e se põe a desenhar uma fachada excelente, porque conhece os princípios. Ou este arquétipo sai à maneira de um jorro, do fundo da alma, do senso do ser em contato com a realidade, ou não adianta nada. Essas regras são como as regras da lógica: não servem para pensar, mas para formular com clareza o pensamento. Pois, se não se descobriu a verdade antes de usar a regra da lógica, só com a regra não se vai descobrir.

    Na Igreja do Coração de Jesus havia algo arquetípico mais ou menos esparso pelo ar, do qual estou certo de que era uma graça. Quer dizer, admito que, a rogos de Nossa Senhora, Deus desejasse que eu fosse propenso a essa operação psicológica, mental, natural, e assim me concedesse graças nesse sentido, para eu conseguir realizar minha vocação.

    Por que tenho certeza de que havia na Igreja do Sagrado Coração de Jesus uma graça? Porque, sem saber que era uma graça, pensava mais ou menos o seguinte: “É curioso, mas parece que tudo nesta igreja fala à minha alma! E fala com o timbre de voz que teria Jesus se estivesse na Terra! Esse é o próprio timbre de voz d’Ele!”

    Não pensem que eu tinha uma visão, não se trata disso.

    Uma igreja bela, mas faltava-lhe algo de fortificação

    Graças a Nossa Senhora, também arquetipizava muito os Santos em função das imagens. De maneira que aquela coleção de imagens, ao longo das naves da Igreja do Coração de Jesus, era para mim imponentíssima, de Santos arquetipizados!

    Ouvindo o órgão de lá, parecia-me a voz de Deus. Sabia que não era, mas achava ser algo como a voz de Deus.

    No fundo da minha alma, isso me sensibilizava até onde era possível sensibilizar alguém. Depois de sentir profundamente aquilo, ficava querendo bem, e agradecendo. Porque percebia algo de muito bom que havia em mim potencialmente, que se movia agradecido e dizia: “Eu vos esperava, aqui estou!” Acho que era a graça do Batismo, a presença de Deus.

    Tenho a impressão de que com todas as crianças acontece o mesmo.

    Notava, entretanto, uma característica do Coração de Jesus não presente naquela igreja, mas que deveria estar. Sentia-me ali como se estivesse dentro de uma linda capela medieval posta no meio do campo. Ora, na Idade Média não existiam capelas colocadas no meio do campo; precisavam ter em volta muralhas, caso contrário o inimigo as destruiria.

    Eu julgava, então, que a Igreja do Coração de Jesus deveria ser naturalmente fortificada. E aquela ausência de força, de “bellum”, da guerra, fazia-se sentir. Com isso, algo de minha alma não estava expresso, deixando-me a ideia de um complemento que faltava.

    Contudo, consolava-me a grade da Igreja do Coração de Jesus e aqueles dois corpos de edifício, que davam ideia de um mal a combater e uma estabilidade a afirmar contra a intempérie. Alguma coisinha falava vagamente de uma circunstância adversa a ser tomada em consideração.

    Gostava muito da figura do Padre Eterno, um belo mosaico existente em cima do tabernáculo, porque Ele era representado como um ancião batalhador e dominando.

    Dona Lucília entendia essa atmosfera, mas não explicitava

    Isso que eu sentia, algumas pessoas difusas pela igreja também sentiam mais ou menos. Não todas, mas uns dez por cento.

    Dentre os outros, muitos tinham restos de religiosidade conspurcados: utilitários, consuetudinários, feitos um pouco de moda e de outros elementos meramente terrenos. No meu tempo de menino, aquela era a igreja da moda de um bairro bom de São Paulo.

    Porém, se deixassem de haver ali dentro as almas que sentiam aquilo que eu estava notando — das quais o exemplo mais próximo, mais querido, mais eloquente era mamãe — os outros não voltariam mais. Era uma espécie de rede, por uma ação de “proche en proche”(4) e de presença, mais ou menos invisível.

    Parecia-me também que as pessoas que frequentavam a igreja, e sentiam o que eu discernia, gostavam dessa graça, mas nunca teriam coragem de comentar, pois todo mundo cairia na gargalhada e diria ser uma demência! Portanto, não se devia falar sobre isso. E quem sentia não comentava, mesmo entre os que igualmente percebiam os imponderáveis da Igreja do Coração de Jesus. Mentalmente, formulavam algo do que sentiam, mas não iam além disso.

    Acho que mamãe tinha ideia de que era uma graça, o que a levava a rezar muito lá. Todos esses matizes creio que ela os tinha, até riquíssimos, mas não sabia dizer. E nunca disse.

    As pessoas tocadas por essa graça, em certo momento, achavam-na monótona

    Eu percebia também essa própria graça atrair uma boa porcentagem desses que a sentiam. Contudo, se a graça se mantivesse e eles tivessem que ficar muito tempo em contato com ela, a maior parte achava monótono. Chegavam lá, deliciavam-se, se encantavam, mas depois sentiam tédio. E com um pouco mais, um pouco menos de tempo, sumiam.

    Eu ficava perplexo: “Como é esse negócio? Não posso compreender: gostam tanto e fogem? Não aguentam o que admiram?” E pensava: “Dá-se o mesmo com relação a mamãe. Fazem com ela a mesmíssima coisa!”

    Cheguei, então, à conclusão: “Algo disso há de transparecer em mim algum dia. Terei a vida que possuem essas coisas. Vou ser muito atraente para uma minoria, mas esta vai se cansar rapidamente de mim…”

    Tenho certeza de que, no fundo, o que aparece em mim é isso que hauri no Coração de Jesus, com esse complemento de fortificação muito acentuado. Eu não seria eu mesmo e não me definiria como devo, se não fosse isso. Qualquer reunião feita por mim tem, no fundo, isso. Naturalmente em grau muito menor do que na Igreja do Coração de Jesus.

    De um jeito ou de outro, todo o atrativo que eu possa apresentar para a companhia de outras pessoas, está marcado por isso. Portanto, sei que o itinerário forçoso é este: em certo momento cansa.

    Tenho certeza de que isso acontece com todas as pessoas que são conformes à graça, sobretudo no nosso século. Porque isso é a proa de navio contra todo o espírito moderno, é a própria definição do espírito anti-moderno.

    Os admiradores de Jesus se cansaram d’Ele…

    Há uma nota em tudo quanto eu disse, sem a qual isso seria enormemente incompleto.

    Na Igreja do Coração de Jesus, e em todas as imagens do Sagrado Coração de Jesus da boa escola, havia uma nota de tristeza. Porque dentro de toda essa harmonia, toda essa beleza, estava encravada a cruz.

    Nosso Senhor Se apresentava para nosso olhar como sendo o próprio Homem-Deus, com todos os títulos para ser amado. A isto Ele acrescentou milagres e doutrinas.  Quando se lê uma frase do Evangelho, às vezes se pergunta por que o mundo inteiro não para, e fica comentando aquele pensamento por toda a eternidade! Quer dizer, Ele fez o inimaginável! E vê-se ter despertado admiração. Entretanto, seus admiradores se cansaram d’Ele…

    Essa rejeição certamente causava uma dor profunda na humanidade santíssima d’Ele, precisamente por ser imerecida.

    Um espírito superficial diria a Nosso Senhor: “Não Vos importeis. Vós nadais dentro de vossa própria perfeição. Por que precisais desses ‘pés-rapados’ que procurais?”

    Seria um cálculo mal feito, evidentemente.

    Portanto, a vida de Nosso Senhor era tristíssima. E há no fundo do olhar e do Coração d’Ele uma tristeza habitualmente morando. É o por onde aparece o melhor d’Ele.

    Aceitar uma vida assim é aceitar de morar dentro de uma tristeza. Ao mesmo tempo nós sermos a casa da tristeza e a tristeza ser a casa de nossa alma; morarmos nós nela e ela em nós. E aceitar isso como “normal”, quer dizer, corriqueiro, inevitável, constante, até o fim.

    Devemos procurar eliminar a alegria diante da simples ideia de que depois tem o Céu. Porque isto é um modo “happy-end”(5) de tomar as coisas, que não está na via de Nosso Senhor.

    Realmente, depois há o Céu, mas existe a cruz que desfecha na morte, intermediária entre o homem nesta Terra e o Céu.

    Este amplexo com a tristeza confere renúncia, abnegação, bondade, perseverança, constância a todas as nossas disposições de alma.

    Não sei se torno claro quanto isso é essencial e como não seria cristão se não fosse assim.

    Disso, sobretudo, muitas pessoas têm horror. Percebem e fogem! Ficam horrorizados.

    A recusa da cruz traz o apagamento da luz

    A cruz é como a sabedoria: a sabedoria da cruz vai desde a manhã sentar-se à porta da casa de cada um, esperando como uma mendiga que lhe queira abrir. Ela faz isto com todas as pessoas, de todos os jeitos, de todos os modos, conservando a dignidade como — guardadas as proporções — em grau divino a conservou Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Portanto, não é uma baixeza indigna, mas uma atitude em outra clave. E isto não é aceito.

    O “flash”(6) faz uma operação curiosa: cobre isso de alegria, de maneira que inicialmente a pessoa não percebe a cruz. Em certo momento, suspeita estar ela aparecendo. E um dos pontos do entibiamento e do tédio sucede quando o indivíduo, confusamente, no meio do perfume das flores, começa a sentir o cheiro da cruz e a rejeita.

    Se fosse pelo menos a cruz dramática: a pessoa se deita e faz-se crucificar! Mas não. É a cruz de todos os dias, com sua banalidade, sua monotonia, sua luta contra tal tentação concreta, que a pessoa não quer aceitar, mas não quer vencer; tal xodó, tal birra, tal coisa que não quer perdoar, sobretudo.

    O indivíduo quer colocar no centro de sua vida uma fonte de alegria. Quando quer isso desista, porque fracassou!

    Quando a pessoa recusa a cruz, apaga-se a luz. Ela pode achar a Igreja do Sagrado Coração de Jesus a mais bonita possível, mas fica átona. A alegria desaparece, começa a julgar tudo tedioso. Continua a achar bonita a igreja, mas de um bonito tão apagado que as coisas mais admiráveis que lá existem não despertam comentário.

    A biografia de Huysmans(7) que li foi para mim uma revelação e uma delícia para a alma, porque, quando ele se converteu, passou a ver muitíssimas dessas coisas de novo.

    Quando vem a conversão, a pessoa começa a perceber que a Liturgia é linda e a re-perceber as belezas da Igreja. Enquanto mero artista, o Huysmans percebia, não tem dúvida; mas isto não tem vida.

    Os convites da graça, as recusas e a seriedade diante da vida

    Suponho que a graça produza esse processo no espírito de todos, mas a maioria vai, desde logo “apostatando” e tendo, já no começo, um tal desamor, que não conservaram nem remorsos, nem recordação. De onde uma obliteração profunda, dentro da qual algo ficou. A “cathédrale engloutie”(8) é isto. Algo ainda fala à alma, mas as pessoas vivem de soterrar essa graça.

    Ao longo da vida, todos os dias, as pessoas recebem vários convites nesse sentido, mas já vão correndo ao primeiro bueiro, para ver onde podem jogar fora o convite. Esta é a realidade.

    Mas Nossa Senhora é tão boa que um pavio sempre fica, e essa luz pode reacender.

    Isto é propriamente o Reino de Deus e sua justiça que devemos procurar. Os Apóstolos o que quiseram foi isto. Isto borbulha no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, sobretudo na “Oração Abrasada”, que é um “geyser” disto! Quando se ouve falar de Carlos Magno, das Cruzadas, isto borbulha!

    Ficaram, assim, umas fontes no deserto lançando água para uns homens que, de longe, ainda olham para elas e dizem: “Como são bonitas… Agora me deixe comer tâmaras…” Voltam as costas para a fontes e começam a comer tâmaras.

    Ou, o que é pior: “Deixe-me afundar no pecado!” Porque quem recusa esta graça perde as condições para conservar uma castidade perfeita.

    Estas considerações produzem certa melancolia, mas que não vão sem alguma alegria.

    Tudo isso junto, como se chama? Seriedade.

    Encerramos uma conversa séria. Como é melhor ser sério do que torcer!

    Meus caros, que Nossa Senhora os ajude!

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/10/1985)

    Revista Dr Plinio 208 (Julho de 2015)

     

    1) Localizada na região central da cidade de São Paulo.

    2) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).

    3) Ver Revista Dr. Plinio n. 9, p. 4-5.

    4) Do francês: de próximo em próximo, gradativamente.

    5) Do inglês: final feliz. Alusão à mentalidade difundida pelos filmes de Hollywood.

    6) Graça atual de caráter místico que confere um particular discernimento do sobrenatural. Ver Revista Dr. Plinio n. 55, p. 16-20.

    7) Joris-Karl Huysmans, escritor e crítico de arte francês
    (* 1848 – † 1907).

    8) Do francês: catedral submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

  • Padroeira do Brasil

    Pode-se dizer que o Brasil é um feudo de Nossa Senhora enquanto concebida sem pecado original, ou seja, da Imaculada Conceição.

    O fato dessa imagem ter sido encontrada no Rio Paraíba, no século XVIII, é de grande significado para o Brasil. Naquela época, embora francamente admitido pela maioria dos católicos, o dogma da Imaculada Conceição ainda não estava definido. E fazer uma profissão de Fé nesse augusto privilégio de Nossa Senhora constituía um distintivo de requintada ortodoxia.

    Ora, exatamente a partir do aparecimento dessa imagem, mais de um século antes da definição dogmática, foi o Brasil colocado sobre o patrocínio da Imaculada Conceição. Isto indica um chamado especial da Mãe de Deus para nossa Pátria, e é motivo de imenso júbilo para todos os brasileiros devotos da Santíssima Virgem.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1970 )

  • Oração: Nossa Senhora Aparecida, glória, alegria e honra do nosso povo

    Ó Maria, abençoai-nos, cumulai-nos de graças e, mais do que todas, concedei-nos a graça das graças: Ó Mãe, uni intimamente a Vós este vosso Brasil!

    Tornai sempre mais maternal o patrocínio tão generoso que nos outorgastes. Tornai sempre mais largo e misericordioso o perdão que sempre nos concedestes.

    Aumentai vossa largueza no que diz respeito aos bens da terra, mas, sobretudo, elevai nossas almas no desejo dos bens do Céu.

    Fazei-nos sempre mais fortes na luta por Cristo-Rei, Filho vosso e Senhor nosso. De sorte que, dispostos sempre a abandonar tudo para Lhe sermos fiéis, em nós se cumpra a promessa divina do cêntuplo nesta Terra e da bem-aventurança eterna.

    Ó Senhora Aparecida, Rainha do Brasil, com que palavras de louvor e de afeto Vos saudar no fecho desta prece? Onde encontrá-las senão nos próprios Livros Sagrados, já que sois superiora a qualquer louvor humano? De Vós exclamava, profeticamente, o povo eleito palavras que amorosamente aqui repetimos: “Tu gloria Ierusalem, tu lætitia Israel, tu honorificentia populi nostri” (Jt 15, 10).

    Sois Vós a glória, a alegria, a honra deste povo que Vos ama!

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do Jornal “Última Hora” de 12/10/1983)

  • Nossa Senhora Aparecida e Imaculada Conceição

    A luta que, durante séculos, houve entre os que se opunham tenazmente à Imaculada Conceição e os que a defendiam, exprime de certa forma o combate entre revolucionários e contra-revolucionários. O Brasil, tendo como Padroeira a Imaculada Conceição Aparecida, tem uma vocação contrarrevolucionária. E chegará o dia bendito em que ele será uma grande nação escrava de sua Rainha e Senhora.

     

    A devoção a Nossa Senhora Aparecida, de fato, refere–se a uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição que recebeu o título de “Aparecida” porque apareceu no Rio Paraíba, e foi recolhida por pescadores em dois lances de rede diferentes: primeiro veio o corpo da imagem de barro e depois a cabeça.

    Disputas internas na Igreja a propósito da Imaculada Conceição

    Então, o título de Nossa Senhora Aparecida é uma espécie de segunda invocação ou de segundo título que se insere, à maneira de um ramo, no tronco principal que é Maria Santíssima enquanto concebida sem pecado original, quer dizer, a Imaculada Conceição.

    O fato de essa imagem ter aparecido no século XVIII, quando o Brasil ainda era colônia, tem um significado muito grande para nós. Durante muito tempo, desde primórdios da Igreja até o pontificado de Pio IX, foi discutido entre os teólogos se se poderia afirmar como dogma de Fé que Nossa Senhora tinha sido concebida sem pecado original.

    Muitos teólogos sustentavam deduzir-se isto das Sagradas Escrituras e, sobretudo, da Tradição da Igreja. Entretanto, havia teólogos que achavam o contrário, que Nossa Senhora não era isenta do pecado original.

    Na Igreja os espíritos mais “mariais”, mais tocados pela devoção a Nossa Senhora, sempre sustentaram que Ela não tinha sido concebida no pecado original. No curso dos séculos foi se consolidando a corrente a favor da Imaculada Conceição, sendo este tema objeto de muitas disputas internas na Igreja, a tal ponto que, 150 ou 200 anos antes de Pio IX e da definição do dogma, a questão já estava tão esclarecida que todo mundo com bom espírito defendia a Imaculada Conceição de Maria.

    Assim, tinham se diferenciado completamente dois filões dentro da Igreja; e ser favorável à Imaculada Conceição era um sinal, um distintivo de espírito contrarrevolucionário daquele tempo. E o Brasil foi colo-cado sob o patrocínio desta devoção, então contrarrevolucionária, exatamente a partir daquela época.

    Isto indica uma vocação contra-revolucionária do Brasil, que não podemos deixar de notar com reconhecimento a propósito desta festa.

    São Frei Galvão foi escravo de Nossa Senhora

    Por outro lado, uma coisa curiosa que eu soube recentemente é a seguinte: também no Brasil a escravidão a Nossa Senhora, ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, entrou aqui muito mais cedo do que se supunha.

    Quando eu era pequeno nunca ou-vira falar da escravidão a Nossa Senhora, e só tive notícia desta escravidão quando comprei o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, em francês; e depois conheci algumas pessoas que falavam da escravidão a Nossa Senhora porque tinham lido o “Tratado”, também em francês. Fiquei, assim, com uma impressão vaga, difusa de que no Brasil não houvera escravos de Maria Santíssima antes da penetração do livro de São Luís Grignion de Montfort neste País.

    Outro dia, lendo a biografia de Frei Galvão — aliás, vida muito bonita e cheia de pormenores interessantes —, franciscano morto em odor de santidade, fundador do Convento da Luz, onde foi sepultado, encontrei a fotocópia de um ato pelo qual ele se constituía escravo de Nossa Senhora, e há trechos inteiros tirados do “Tratado da Verdadeira Devoção”.

    Vê-se que ele adaptou um tanto a consagração de São Luís Grignion, mas no essencial é inteiramente aquilo. É uma consagração muito longa, talvez mais extensa que a de São Luís Maria Grignion de Montfort, e que enche, na caligrafia muito miúda dele, creio que os dois lados de uma folha de papel amarelada, que está exposta, aliás, no atual Museu de Arte Sacra, contíguo ao Convento da Luz.

    Tive a alegria de saber que Nossa Senhora já teve escravos muito anteriormente a nós, e que este País, onde a propensão sobrenatural para a devoção a Maria Santíssima é uma das bênçãos existentes, talvez tenha tido, desde o início, escravos de Nossa Senhora vivendo aqui e preparando o dia em que o Brasil inteiro seria uma grande nação escrava de sua Rainha e Senhora.

    Estas considerações feitas de passagem a respeito da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida nos levam, entretanto, a aprofundar um pouco mais os comentários sobre dogma da Imaculada Conceição.

    Efeitos do pecado original

    Há quem confunda a Imaculada Conceição com outro predicado nobilíssimo de Nossa Senhora, mas que é distinto daquele: a virgindade de Maria Santíssima antes, durante e depois do parto, que é dogma de Fé.

    A Imaculada Conceição tem o seguinte sentido: havendo Adão e Eva pecado, e sendo eles, na presença de Deus, os pais do gênero humano, contendo, portanto, todo o gênero humano em si como, por exemplo, a semente contém a árvore, aconteceu que aquele pecado recaiu sobre toda a humanidade.

    É mais ou menos o que acontece quando o pai ou a mãe contraem uma doença muito ruim — eles podem não ter culpa disso, mas o filho acaba nascendo com esta doença. Assim, nós nascemos com o peca-do original.

    Os efeitos do pecado original no homem são tremendos. Todo o prosaísmo que existe na natureza humana, tudo aquilo que no homem causa repugnância, asco, por exemplo, é efeito do pecado original. Nós não sabemos como funcionava o organismo antes do pecado original, mas é positivo que nada do que se dava no organismo humano antes era nojento como as coisas depois desse pecado.

    Os Santos acentuam muitas vezes a miséria da condição do homem depois do pecado, como tendo um corpo que de si, continuamente, produz imundícies. Isto é bem verdade, e é uma das notas mais humilhantes da condição humana. Tudo quanto sai do homem é desagradável, nós reputamos sujeira, desde o pranto até o suor, etc., porque vem carregado do prosaísmo deste corpo que tem a nódoa do pecado original.

    O homem se tornou sujeito à dor, à doença, à morte depois do pecado original. E sujeito ao erro; o homem não errava antes do pecado original, não havia nele esta oposição entre a sensibilidade, de um lado, e a inteligência e a vontade, do outro.

    Tantas vezes desejamos algo que nossa inteligência mostra ser reprovável, e daí surge a necessidade de nossa vontade mover um combate para recusarmos à nossa sensibilidade aquilo que a inteligência indica que é ruim.

    Nada disto existia no homem antes do pecado original, e o ser humano era uma criatura absolutamente superior, de cuja perfeição não temos ideia.

    Se um homem concebido antes do pecado chorasse, o seu pranto seria perfumado e bonito e nunca uma das imundícies da Terra. Do seu corpo nada de sujo exalaria; enfim, todas as mil misérias que nos afligem o homem não teria antes do pecado original.

    Um problema psicológico

    Então, por detrás do pecado original e de Nossa Senhora, se punha o seguinte problema, que tem um valor não tanto teológico quanto psicológico: a Santíssima Virgem Maria como era? Por exemplo, Ela estava sujeita ao resfriado? Teria nossas mil mazelas físicas?

    Não havia dentistas naquele tempo. Mas nós poderíamos imaginar Nossa Senhora indo a um dentista, se os houvesse? Ou consultando um médico, porque tinha, por exemplo, um cálculo nos rins? Naquela época o médico era um pouco mais do que um curandeiro, mas já se julgava muito seguro de sua arte.

    Se nós imaginássemos a Virgem Maria assim, ou nossa ideia a respeito d’Ela diminuiria, ou a nossa rejeição em relação a essas misérias do homem decresceriam, e sentiríamos menos que elas são efeito do pecado.

    Não quero dizer que todo mundo que foi contra a Imaculada Conceição tinha este mau espírito, mas quem possuía mau espírito era pro-penso a ser contrário à Imaculada Conceição. Compreende-se aí o problema psicológico que se põe.

    Entende-se também que espécie de família de almas combateu tenazmente a Imaculada Conceição até o fim, e nota-se algo do sentido revolucionário e contrarrevolucionário desta luta.

     

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • Santo Abraão – Franqueza e métodos diretos

    Sabendo sempre jogar a cartada franca na hora certa, apesar de passar por diversos dissabores, Santo Abraão conseguiu converter uma cidade pagã destruindo todos os ídolos ali existentes. Que Maria Santíssima faça chegar logo o dia em que o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós. Mesmo que sejamos lapidados, Nossa Senhora nos restaurará para fazermos as obras que Ela deseja.

     

    Chegaram ao meu conhecimento alguns dados sobre a interessante vida de um Santo do século IV chamado Abraão, que evidentemente não deve ser confundido com Abraão, patriarca do povo de Israel.

    Durante a festa de casamento, foge para uma gruta

    Ele era da cidade de Edessa, nascido de uma família nobre e rica. Quando os pais, que deitavam muita esperança em seu futuro, viram-no ficar moço, deliberaram casá-lo com uma moça igualmente nobre e rica para o realce da família. Na realidade, ele não tinha vontade de se casar e fez muitas insistências neste sentido, mas a família exerceu tão grande pressão que ele, cedendo, contraiu o casamento.

    As bodas se deram em meio a grandes pompas e festividades, as quais, à maneira oriental, duraram uma semana inteira e deveriam culminar com uma grande festa no último dia, depois da qual começava a vida conjugal entre os nubentes.

    Eles já estavam casados no religioso, e naquele tempo o casamento religioso produzia os efeitos civis com todos os vínculos estabelecidos.

    Após cada dia de festa ele ficava mais contrariado com o rumo que tinha tomado, até que fugiu de casa discretamente, indo localizar-se num lugar completamente ermo, mais ou menos a duas milhas de distância de sua cidade.

    Então os pais, a esposa e toda sua família começaram a procurá-lo por todos os lados. Foram primeiro aos lugares de prazer; não o encontrando, procuraram-no nos locais de trabalho, principalmente no Fórum, que naquele tempo não era como hoje, ou seja, um lugar onde se distribui a justiça, mas uma espécie de imensa praça pública na qual se tratavam os negócios, havia mercado, faziam compras e vendas, era o centro da vida da cidade. Entretanto, ali também ele não estava. Então, ordenaram uma busca sistemática nos arredores da cidade e, afinal de contas, encontraram-no numa gruta que ele mesmo tinha murado do lado de dentro, de maneira a deixar apenas um pequeno quadrilátero por onde passar pão e água.

    Os parentes o descobriram lá, interpelaram-no e ele explicou ter se casado contra a própria vontade, e que o matrimônio, não tendo sido consumado, fora nulo. Como Abraão insistia que não queria saber do casamento, a moça teve que desistir, e ele ficou na gruta. É um bonito exemplo de homem que se subtrai à ação do contexto.

    Ordenado sacerdote

    Nessa gruta ele permaneceu durante muitos anos e ali recebeu a notícia de que seus pais tinham morrido deixando-lhe uma imensa fortuna, da qual ele podia dispor. Porém, ele não queria essas riquezas, porque dentro do isolamento em que vivia bastavam-lhe um manto, uma túnica e um recipiente de barro no qual recolhia a água que corria na própria gruta onde morava. Entretanto, sendo precavido, constituiu um parente seu como procurador para administrar a fortuna. Deu ordem para distribuir a metade para os pobres, e não indicou o que devia ser feito com o resto.

    Continuou a viver durante muitos anos na gruta e tornou-se um homem muito admirado pelo povo que, de vez em quando, ia lá para visitá-lo.

    Certo dia apareceu o bispo diocesano querendo falar com ele. Abraão, muito humilde, declarou ao prelado que não podia compreender como um homem de tal categoria dignava-se ir ter com ele, um simples eremita que vivia na sua gruta, isolado.

    O bispo disse ter um assunto muito grave para tratar com ele. Toda aquela zona já estava convertida, com exceção de uma cidade de bom tamanho e importante que havia nas proximidades, a qual ainda era completamente pagã, rejeitava e matava todos os sacerdotes que iam se estabelecer lá. Não sabendo mais o que fazer, pareceu conveniente ao prelado conferir a ordenação sacerdotal ao eremita Abraão, que gozava de tal fama de santidade, e convidá-lo a se transferir para a cidade, onde seria vigário, assumindo a responsabilidade pelo culto.

    O eremita, pelas instâncias do bispo, percebeu que era vontade de Deus e concordou em deixar sua ermida para ser ordenado sacerdote, dirigindo-se depois para a cidade, onde assumiu corajosamente a função de vigário.

    Os pagãos o lapidaram, deixando-o quase morto

    Entrou sozinho e ignorado na cidade hostil. Ali chegando, ajoelhou-se no chão diante do povo, e pediu a Deus que convertesse aquela cidade. As pessoas, andando de um lado para outro, não ligaram para ele.

    Santo Abraão estudou uma técnica de apostolado que lhe parecia mais própria a trazer a si os infiéis. Havia na cidade um templo pagão que passava toda a noite aberto. Quando anoiteceu, o santo sacerdote entrou com cuidado numa hora em que não havia ninguém, pegou todos os ídolos, jogou-os no chão reduzindo-os a cacos, varreu e levou tudo embora. No dia seguinte, ao raiar da aurora, ele ficou esperando o resultado.

    Logo de manhã, os primeiros que foram adorar os ídolos não os encontraram e notaram, por alguns sinais, que tinham sido quebrados. Percebendo ter sido o padre quem se ocupara disso, foram até ele e o lapidaram, deixando-o quase morto.

    Pelo fim do dia, Santo Abraão restabeleceu-se um pouco e, com os restos de voz e de saúde que ainda conservava, começou a increpar o povo contra os ídolos e a exortá-lo à conversão. Contudo, os infiéis não se converteram. Pelo contrário, indignaram-se, deram-lhe uma sova vigorosa, e o maltrataram fortemente.

    Santo Abraão, que gostava das táticas diretas, dirigiu-se então a Deus, dizendo: “Meu Deus, Vós me fizestes nomear vigário nesta cidade, e eu apanho todos os dias… Que solução há para este caso?! Dai-me saúde!”

    A oração de um Santo move montanhas. Ele rezou por si mesmo, levantou-se em perfeito estado de saúde e começou a pregar. A população da cidade ficou meio impressionada com o milagre, mas não se converteu.

    Cumprida a missão, regressa para a gruta

    Em certo momento, eles tiveram um caso muito complicado de interesse comum e não havia meio de solucionar. Um deles disse: “Olha, quem deve saber resolver esse assunto é o padre. Ele é inteligente e, ademais, precisamos reconhecer que desde quando está entre nós não tem feito senão dar exemplos muito bons, ajudar todo mundo que ele pode e distribuir esmolas. Os nossos ídolos, afinal de contas, o que eram? Ele os quebrou e não se salvaram a si próprios. O padre, entretanto, curou a si mesmo. Por que havemos de estar ainda acreditando nesses ídolos? Não tem propósito nossa conduta com ele; devemos procurá-lo e começar por pedir-lhe perdão de nosso mau procedimento, e então rogar um conselho para resolver a situação dentro da qual nos encontramos.”

    Assim, foram todos a Santo Abraão que os recebeu muito benignamente. Evidentemente, quando resolveram procurá-lo já estavam abalados na sua infidelidade e propensos a uma conversão. Durante a conversa declaram que queriam converter-se. Começou, então, o trabalho enorme da conversão da cidade: batizar, orientar todas as pessoas, até a população inteira mudar. Nessa ocasião, Santo Abraão aproveitou o dinheiro que ele tinha com o primo para mandar construir uma igreja na cidade. Vemos como tudo é feito com método, direito.

    Construída a igreja, todos estariam no direito de esperar que as coisas continuassem bem. O vigário orientaria o povo, tudo correria perfeitamente. Entretanto, numa bela manhã vão procurá-lo, mas ele não estava na igreja. Tinha fugido mais uma vez… Assim como fugira da esposa, ele fugiu também da paróquia e voltou para a gruta.

    Para lá se dirigiu o bispo, acompanhado de uma grande parte do clero, a fim de pedir ao santo eremita que reassumisse as funções de vigário. Porém, este declarou que a missão que recebera do prelado estava cumprida, pois a cidade se convertera. Agora, ele pedia o consentimento do bispo para permanecer como eremita na gruta; ao que o prelado acedeu.

    Educa uma sobrinha, que depois caiu numa vida devassa

    Depois de algum tempo, ele recebe um emissário da cidade contando-lhe que seu irmão tinha morrido, deixando uma grande fortuna, cuja herdeira universal era uma menina, a respeito da qual o falecido deixara a recomendação de que fosse educada pelo santo eremita.

    Santo Abraão considerou ter responsabilidade para com essa menina e, portanto, era obrigado a fazer alguma coisa por ela. Sendo, até o fim da vida, amigo dos processos diretos, ele disse: “Pois bem, mandem vir a menina que eu a educo.”

    Chegada a sobrinha, ele mandou murar outra parte da gruta, mantendo um orifício na parede pelo qual, em certas horas do dia, ele ensinava para ela tudo quanto uma menina daquele tempo precisava saber.

    Passaram-se os anos, e a menina correspondia bem à educação recebida. Entretanto, uma circunstância qualquer a levou a decair na vida espiritual e dizer a ele que queria sair. Por fim, ela acabou fugindo para a cidade.

    Como a jovem já estivesse em sua maioridade, Santo Abraão considerou que não tinha mais nada a fazer. Porém, começou a receber notícias de que a sobrinha vivia em condições miseráveis, e caíra moralmente tão baixo que estava praticamente perdida.

    Então ele considerou que era desígnio da Providência tomar outra atitude enérgica, audaciosa, um tanto surpreendente, dessas atitudes que os santos adotam, e a respeito das quais a Igreja diz que se deve admirar, mas não imitar. Atitudes que, de si, intrinsecamente falando, não são pecados, mas podem constituir ocasião próxima de pecado, à qual ninguém pode se expor, a menos que movido por uma ação da graça. Nesta hipótese, então, com garantias e auxílios sobrenaturais especiais, a pessoa vai enfrentar aquela ocasião. Mas é muito delicado, só mesmo quando ela tem certeza de estar sustentada por uma graça especial pode expor-se a isso.

    Santo Abraão mandou vir a indumentária de um soldado e, apesar de estar velho, foi à cidade e entrou no estabelecimento onde a sobrinha levava uma vida devassa. Ela estava oferecendo um banquete, e a certa altura apareceu vestida com um luxo indecente, imoral, e não reconheceu o tio. A conversa seguia o seu curso, mas como ele era um homem muito inteligente e dotado, ela achou graça na prosa dele. As outras pessoas presentes foram, aos poucos, pelo movimento natural das coisas, afastando-se e deixando os dois conversando sozinhos.

    Quando os dois estavam a sós, ele tirou o elmo de soldado e disse:

    — Minha sobrinha, você me reconhece?

    Ela teve um choque, caiu de joelhos, baixou os olhos e disse:

    — Eu não ouso olhar-vos.

    — Por quê?

    — Porque sinto que caí num pecado muito profundo e que não sou digna de vossa presença.

    — Largue tudo isso e vamos para a gruta!

    Ela se levantou, ficou em pé durante algum tempo hesitando, e ele continuou:

    — Deixe todos esses trapos com que você está vestida, tome uma roupa simples e fuja comigo.

    Como se vê, ele era especialista em fugas para o Céu!

    A sobrinha concordou e disse:

    — Mas o que vou fazer desses trajes preciosos?

    — Pouco importa, deixe-os abandonados. Salve a sua alma!

    Sucesso da ação direta, franca, clara e positiva

    Ela voltou para a gruta com ele, fez penitência a vida inteira. Ele ainda ficou até o fim da vida com ela na gruta, e assim terminou a história dos dois. Não sei se ela foi canonizada. Ele é venerado pela Igreja com o nome de Santo Abraão.

    É uma linda vida que nos situa num ambiente de franqueza e retidão, onde o povo, por mais degradado que estivesse, suportava as verdades e os métodos diretos.

    Esses pagãos indecentes eram assassinos horrorosos, pois só faltou matarem o padre. Se não fosse o milagre que ele fez, restaurando por ação sobrenatural a sua própria saúde, seu apostolado teria cessado. No afã de fazer apostolado, ele quebrou os ídolos, enfrentou aquela gente, mas alcançou o objetivo que tinha em vista. Ele padeceu por amor à verdade, mas foi direto ao ponto. Resultado: converteu as pessoas.

    Isso feito, vemos o desapego dele. Tendo convertido aquela gente, Santo Abraão poderia ter levado uma vida tranquila, dormindo sobre os louros conquistados. Porém, estando a obra acabada e consolidada, ele foi embora. De fato, a Fé ficou estabelecida no lugar, foi possível implantar um clero, uma religiosidade normal. Então, ele fugiu porque fizera tudo para a glória de Deus e de Nossa Senhora.

    Tendo voltado para sua gruta, de lá saiu novamente para salvar a sobrinha, mas por um método direto também.

    Notamos como ele, jogando sempre a cartada franca na hora certa, passou por dissabores que um poltrão qualificaria de insucessos, mas uma pessoa que considera o todo de sua vida não pode deixar de reconhecer como sucessos admiráveis. Santo Abraão morreu admiravelmente bem sucedido. É o sucesso da ação direta, franca, clara e positiva.

    Peçamos a Maria Santíssima que faça chegar o dia em que também o ídolo da Revolução possa ser derrubado por nós com igual franqueza. É possível que sejamos lapidados, mas saberemos exercer o direito de legítima defesa. Nossa Senhora nos restaurará para fazermos por Ela as obras que Ela deseja.             v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/12/1974)
    Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)

  • Uma devoção de luta

    O Rosário confere à meditação da vida de Nosso Senhor a nota marial por excelência, tendo por detrás a grande verdade de Fé a qual devemos anelar, do fundo de nossa alma, que se torne um dogma: a Mediação Universal de Maria.

     

    Dada a grandeza da festa do Santo Rosário, é importante dizermos uma palavra sobre esta devoção que consiste na meditação dos mistérios gaudiosos, dolorosos e gloriosos da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo feita em três terços, cada qual com cinco mistérios.

    A pessoa verdadeiramente piedosa reza pelo menos um terço por dia

    Sem dúvida, é magnífico meditar a respeito dos mistérios da vida de Nosso Senhor. Ademais, os mistérios ali apontados, naquela enumeração, embora não sejam os únicos, estão muito bem concatenados e expostos, e podemos facilmente compreender o proveito que as almas têm com essa meditação.

    Entretanto, devemos reconhecer que outros métodos de meditação dos mistérios da vida de Nosso Senhor existem na Igreja. Nós temos, por exemplo, a meditação feita segundo os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Essa técnica inaciana pode aplicar-se a cada um dos mistérios do Rosário. Existe outra devoção que medita os mistérios dolorosos magnificamente: a Via-Sacra.

    Portanto, embora seja o Rosário uma devoção muito importante, considerado na sua última coerência ele não é senão uma outra apresentação de estilos de meditação e atos de piedade que a Santa Igreja, no seu empenho materno, multiplica de várias formas.

    E, por causa disso, fica sem uma explicação muito clara a seguinte questão: Por que todos os inimigos da Igreja detestam tanto o Rosário? Detestam-no e combatem-no mais do que todas as devoções congêneres. Por que também, de outro lado, o Rosário é objeto de uma predileção especial dos verdadeiros filhos de Nossa Senhora e da Igreja, de maneira que tenham eles um grande apreço, não só ao método, mas a alguns imponderáveis ligados ao próprio objeto de piedade usado continuamente como uma espécie de garantia de bênção, de favor de Nossa Senhora, a ponto de, por exemplo, não se conceber uma pessoa verdadeiramente piedosa que não tenha sempre consigo seu terço e que não reze pelo menos um terço por dia? E não se concebe um membro do nosso Movimento que não reze o Santo Rosário, isto é, os três terços todos os dias; ou que, não o podendo fazer por justas razões, não tenha por isso um grande pesar e uma viva esperança de retornar a rezar o Rosário.

    Uma das belezas da Igreja Católica

    São numerosas as Ordens Religiosas que usam o Rosário como elemento integrante de seu hábito. É generalizado o costume de enterrar os defuntos com um Rosário entrelaçado nas mãos. Ou seja, para esperar a ressurreição dos mortos, o verdadeiro católico não se contenta em ir para a sepultura com um crucifixo, mas vai também com o Santo Rosário. As indulgências com as quais os Papas cobriram o Rosário são sem-número. A invocação de Nossa Senhora do Rosário é generalizadíssima: catedrais, dioceses, famílias religiosas, pessoas usando o nome “Rosário” em várias nações.

    De todos os lados o Rosário goza de uma influência, de uma aceitação da parte dos bons comparável apenas ao ódio que experimenta da parte dos maus. Há vários fatos que narram como o demônio, procurando atormentar esta ou aquela alma, recua quando a pessoa atormentada acena para ele com o Rosário. Todo mundo que tem mau espírito odeia o Rosário, subestima-o ou diretamente o combate. Por exemplo, os jansenistas o odiavam, os protestantes o odeiam.

    Poderíamos, então, nos perguntar a razão dessa glória tão especial do Rosário para a qual, afinal de contas, não encontramos um fundamento quando analisamos a última substância do Rosário, que é a meditação dos mistérios da vida e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

    Parece-me que, de início, devemos reconhecer ser esta uma das belezas da Igreja Católica. Sendo ela enormemente precisa no seu pensamento teológico, é, entretanto, cheia de imponderáveis, os quais, por alguns aspectos, constituem o suco da devoção.

    Mediação Universal de Maria Santíssima

    Tomemos como exemplo a devoção admirável da Via-Sacra. Nela se encontra algo da ternura de São Francisco de Assis, e seus imponderáveis convidam a uma meditação enternecida, comovida da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua morte sacratíssima, de um modo especial. Há um espírito que flutua em torno da Via-Sacra que constitui, talvez, o melhor de sua eficácia. É uma graça específica ligada a essa forma de devoção.

    Também os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são um modo não propriamente de devoção, mas de meditação que traz consigo uma graça especial de lógica, de energia, de honestidade de consciência e de generosidade ao pôr-se o fiel diante dos problemas relacionados com sua salvação eterna.

    No Rosário, a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração é a Santíssima Virgem. A meu ver, é por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora que o Rosário constitui a devoção marial por excelência, tendo por detrás a grande verdade de Fé que devemos anelar do fundo de nossa alma que se torne um dogma: a Mediação Universal de Maria.

    O sistema de rezar o Rosário apelando para Nossa Senhora em tudo, rezando Ave-Marias enquanto se considera algum episódio, ora relacionando a oração com aquele fato, ora concentrando o principal da atenção no mistério, ora na Ave-Maria, em todo caso, sempre numa união contínua com Nossa Senhora, eis o caráter marial que, a meu ver, constitui o suco do Rosário, pois esta devoção não teria sentido se a Mediação Universal de Maria não fosse verdadeira.

    Por representar um prelúdio de toda a teologia de São Luís Maria Grignion de Montfort, da verdade de Fé referente à Mediação Universal, o Rosário é tão odiado pelo demônio. E é por causa desse imponderável que nós nos devemos agarrar muito ao Rosário.

    Em suma, por causa da nota marial que o Rosário confere à meditação da vida de Nosso Senhor, é um sinal de predileção de Nossa Senhora o fato de alguém ter uma devoção especial ao Santo Rosário. Também é um sinal de que Ela ama alguém o fato de, através do Rosário, levar a alma a amar uma posição que só se justifica em face da Mediação Universal. Portanto, o Rosário é o verdadeiro símbolo da devoção do fiel a Nossa Senhora, daquele que quer pertencer a Ela plenamente.

    Que Nossa Senhora faça de nós lutadores inteiramente d’Ela

    Isso se confirma pelo ódio do demônio e dos maus a essa devoção. Por vezes eles são mais perspicazes do que os bons; e quando odeiam muito algo, nós já podemos ter a certeza de que aquilo é muito bom.

    A razão pela qual, ao decorarmos nossa sede principal, colocamos na porta da capela um Rosário pendente de uma espada, é para chamar a atenção para duas verdades ou dois pensamentos que devem marcar quem ali entra: antes de tudo, a fidelidade ao Rosário e, através dele, a essa devoção omnímoda a Nossa Senhora, que é, afinal de contas, a da Mediação Universal. Depois, a espada que nos lembra o espírito de luta.

    Não é por mero enfeite que aquilo está lá, mas foi colocado de propósito, daquele jeito, para chamar a atenção daqueles que entram e marcar como um prefácio, preparando por uma espécie de golpe na mentalidade de quem entra o espírito com o qual deve-se estar dentro daquela capela. Esse simbolismo é um estímulo contínuo que nós quereríamos dar para que, cada vez mais, praticássemos a devoção ao Santo Rosário.

    Fica, então, este pensamento para nos lembrar de que o Rosário é uma devoção de luta e nós estamos numa época de batalhas. Peçamos, pois, a Nossa Senhora que faça de nós autênticos lutadores inteiramente d’Ela. Não conheço melhor pedido para ser feito através do Santo Rosário. v

     

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1966)
    Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)