Autor: Nelson

  • Nossa Senhora, o céu e o mar: reflexos da beleza divina

    E se fala a respeito da sabedoria do Criador, mostra-se quase sempre como as coisas estão concatenadas de tal forma que elas não se destroem, nem colidem umas com as outras, mas que coexistem com harmonia e mutuamente se apoiam. É uma visão funcional do universo inteiramente verdadeira, por certo, mas que mostra apenas um aspecto, que nossa época mecanicista e ultra técnica mais facilmente compreende.

    Mas há um outro aspecto do Universo relacionado com Deus enquanto causa exemplar, enquanto Ser incriado e infinitamente belo, que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que Ele criou. De maneira tal que não há nenhum ser que, a um título ou outro, não seja um reflexo da beleza incriada de Deus. […]

    O mar: exemplo do princípio da unidade na variedade

    Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no Universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica da unidade e da variedade.

    Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e a uma definição fria desses princípios, seria, talvez, mais interessante que os consideremos enquanto realizados em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos.

    Comecemos pelo mar. Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre. Assim, numa orla do mar, em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida, que se estende diante de nós até as fímbrias do horizonte, não se encerra ali, e tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades, para formar a grande e única imensidade do mar, que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da terra.

    Mas, ao mesmo tempo que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

    Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranqüilidade e de quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender-se nosso espírito, como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis, para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder que existe no mais profundo dele, e que não se suspeitava nem um pouco nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heroicos da História.

    Também há variedades estéticas no mar. Às vezes é ele tão claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros panoramas ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos fechados em que, por assim dizer, ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

    O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo que parece com a prosa de um velho amigo, que já muitas vezes se ouviu. Mas, pouco depois, ele nos fala com o bramido dominador de um rei, que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

    O modo por que ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante, outras vezes caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado, que se diria quase que ele se contenta em ver a terra sem tocá-la.

    Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade.

    Caracteres específicos da variedade harmônica

    Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas oferecer em alto grau os caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.

    Tais caracteres são: primeiro, essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Essa variedade, pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não soubesse ser, por exemplo, tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e do extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

    Essa variedade de oposição deve comportar uma certa simetria. Quer dizer, é necessário que, quando uma coisa tem um caráter levado a um extremo, no lado oposto ela chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa ser tão furioso em umas horas quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

    Mas, ao mesmo tempo, as variedade harmônicas das gamas intermediárias também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Estas situações de transição são tão harmônicas que nós, em determinados momentos, nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará obscuro? Não o sabemos dizer, porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas, que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.

    Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso; mas quando se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição, tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos coexistentes no mesmo meio termo, tem-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários que o mar atravessa.

    Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo ao outro, o mar não salta, mas passa sempre, com rapidez maior ou menor, por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Quando, porém, tal sucessão de matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo, e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis, que até excederam a precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

    Na abóbada celeste, a variedade do progresso

    Há, por outro lado, uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas que é muito relevante no céu: a variedade do progresso.

    Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite posta, de maneira tal que ele oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vai ganhando em colorido, em força e em majestade até chegar à gloriosa plenitude do meio dia. Em seguida, ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e, por fim, toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora.

    Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aparências, que vão dos primórdios ao apogeu e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

    Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação das múltiplas formas da variedade em torno de um elemento ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do sol no firmamento. Em função dele, no céu todas as variedades não são senão fundos de quadro, que cooperam para o realçar de mil modos em toda a sua beleza.

    Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente debaixo dos nossos olhos e que são esplêndidas semelhanças da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

    A beleza da santidade na mais alta das criaturas: Nossa Senhora

    Mas sabemos pela doutrina católica que se a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito, assim também, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também imagens do homem. E que o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus, Nosso Senhor.

    Desta maneira, essas regras

    de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade, no homem, sim, e, pois, na mais alta de todas as meras criaturas: em nossa Senhora, que, com tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.

    Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente, da qual nenhum de nós pode ter uma ideia exata. […] [Ela reúne] numa perfeita harmonia contrastes aparentemente irreconciliáveis: é a Virgem Mãe, chamada a Virgem das Virgens, que poderia, muito lícita e validamente, também ser chamada a Mãe das Mães. Ninguém mais plenamente Mãe, Mãe por excelência, do que Ela. Ninguém mais plenamente Virgem, Virgem por excelência, do que Ela também.

    Em Nossa Senhora se encontra, outrossim, a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se nota bem no fato de que, sendo una, Ela se apresenta a nós na diversidade admirável das suas invocações. Ela é a Nossa Senhora da Paz, é a Nossa Senhora dos Prazeres, a Saúde dos enfermos, mas é também Nossa Senhora das Dores, Ela é Nossa Senhora da Boa Morte. N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo Auxílio dos cristãos, mas Refúgio dos pecadores; Ela é glorificada pela sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar nas aparições comentam a sua soberana majestade. Ela é Nossa Senhora que se apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata” (“como um exército em ordem de batalha”), mas, ao mesmo tempo, Ela é “Mater clementiae et misericordiae” (Mãe de clemência e de misericórdia).

    Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes, diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado, e, com todas as suas forças, deve procurar amar e imitar.

    Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de “O Mensageiro Carmelitano”, de 15/5/59)

  • Esplendores da piedade Eucaristica

    Em sua divina sabedoria, a Igreja sempre soube fazer face de modo admirável aos ataques de seus adversários, mormente quando estes incidiram sobre valores fundamentais da piedade católica.

    Ela assim procedeu, por exemplo, no século XVI, diante da heresia que negava a presença real de Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento.

    A condenação desse erro no campo doutrinário, foi complementada por um surto de entusiasmo e fervor na celebração do culto eucarístico. Surgiram as grandes cerimônias e procissões em louvor ao Santíssimo Sacramento no mundo inteiro.

    A data mais apropriada para tais manifestações de devoção era, sem dúvida, a festa de Corpus Christi, instituída na Idade Média. Ganhou ela, assim, um novo incentivo e um novo porte, revestindo-se de todas as pompas e riquezas que a Liturgia gerou especialmente para essa extraordinária forma de revanche aos ataques das heresias. Levar-se-ia triunfalmente pelas ruas o próprio Deus, presente na hóstia consagrada, como quem afirma: “Vamos proclamar desta forma nossa fé no Santíssimo Sacramento. Proclamamos tão ostensiva e magnificamente para sobrepujar a cacofonia do erro com as melodias, as fanfarras e a presença da população católica”.

    E como não conservar na lembrança as procissões das quais participamos no entusiasmo de nossa alma, quando o bulício das agitações cotidianas cedia lugar à paz e quietude de um feriado religioso, onde o silêncio da rua era interrompido apenas pelos cânticos e invocações de louvor ao Santíssimo Sacramento!

    As ruas artisticamente atapetadas de flores, formando desenhos de hóstias, cordeiros e outros símbolos eucarísticos, indicavam o trajeto da procissão. As calçadas apinhadas de gente enlevada e piedosa, que se ajoelhava à passagem do Divino Homenageado, conduzido pelo bispo ou sacerdote no seu ostensório de ouro cravejado de pedras preciosas, sob um dossel ou uma umbrela que lhe servia ao mesmo tempo de proteção e ornamento.

    A cena se repete nos mais variados recantos da Terra, desde pequenas cidades interioranas até a Praça de São Pedro, em Roma, onde o próprio Sumo Pontífice leva o adorável Corpo de Cristo à frente de uma imensa multidão de fiéis que o seguem pelas famosas colunatas de Bernini, sob o repicar festivo dos sinos.

    O mesmo se vê em ruas seculares de cidades européias

    — como, por exemplo, Toledo e Sevilha, na Espanha — com requintes de solenidade e esplendor que só a piedade católica seria capaz de conceber para honrar dignamente a Sagrada Eucaristia.

    Assim era também nas ruas da Viena imperial, onde as procissões em louvor do Santíssimo alcançaram um ápice de magnificência, na época em que o poder temporal se curvava diante do Rei dos reis e Senhor dos senhores.

    Abaixo, o leitor poderá beneficiar-se com a narração de uma dessas esplêndidas celebrações, realizada na bela Capital austríaca em 1912, por ocasião do Congresso Eucarístico de Viena. Dela participaram o Imperador Francisco José à frente dos grandes dignitários do Império, tropas militares com suas bandas e fanfarras, e centenas de milhares de fiéis.

    Às oito horas, a tropa já tinha tomado posição. O cortejo, composto exclusivamente de homens, saía do átrio da catedral de Santo Estevão, enquanto 150 mil mulheres e moças formavam-se em duas alas desde a catedral até a porta monumental que dava acesso ao palácio imperial.

    Primeiramente avançam as paróquias de Viena, em seguida os magnatas húngaros, os tiroleses em número de oito mil, os bósnios, os tchecos, os moravos, os rutenos e os romenos. Eis a seguir as delegações estrangeiras: os franceses, os espanhóis, os italianos, os ingleses, os alemães, etc.

    São onze horas e meia. O clero vai entrar em cena. Compõe-se de cinco mil sacerdotes e religiosos ordenados hierarquicamente: simples padres, párocos, monges de todas as Ordens, cônegos e, encerrando o bloco, duzentos bispos com capa, mitra e báculo.

    Fanfarras de trompetes anunciam o terceiro cortejo — do Santíssimo Sacramento — atrás do qual seguirá o do Imperador-Rei. Na primeira linha estão escudeiros vestidos de vermelho rutilante; em seguida, militares da corte, com “panache” branco, montados em cavalos cinzas; os dragões e os hussardos. Ainda um esquadrão de cavalaria e eis que surgem os cardeais.

    Fanfarras ressoam, sinos tocam por toda parte e — precedida por oficiais, camareiros e pelo grande marechal da Corte — penetra na Helden Platz (Praça dos Heróis), a carruagem da coroação de Maria Teresa, pintada por Rubens, atrelada por oito cavalos negros. A parte alta é quase toda de vidro e pode-se ver comodamente o legado papal, ajoelhado ante um altar no qual está o ostensório.

    A chuva cessa por um momento e o sol deixa entrever alguns pálidos raios. Muitos caem de joelhos, sem se preocuparem com a lama. Aí então, num silêncio dos mais comoventes, passa o Deus da Eucaristia. Como Nosso Senhor deve ter abençoado estes humildes que se inclinam ante sua passagem, e ouvido os ecos de sua comovida piedade!

    Depois da carruagem de Nosso Senhor, eis agora a do Imperador. Numa carruagem atrelada por oito cavalos brancos, trajando uniforme azul, Francisco José olha fixamente o Santíssimo Sacramento, que ele acompanha. A seu lado está o arquiduque herdeiro.

    O cortejo termina por uma soberba cavalgada da guarda montada austríaca, da guarda montada húngara e pelas carruagens dos arquiduques. Desenvolve-se conforme o itinerário prescrito, mas é impossível celebrar a Missa, e mesmo dar a Bênção, no lugar onde está montado o altar. Uma feliz ideia é enunciada pelo legado papal: ele se volta em direção à multidão perfilada e seu carro percorre de novo a imensa praça. Através da vidraça da carruagem aparece nitidamente o prelado elevando o ostensório e abençoando a multidão. Todos ficam consolados por esta bênção suprema.

    Precedendo ou seguindo o Santíssimo Sacramento, os bispos, os cardeais e o Imperador entram então na capela do palácio imperial, onde o cardeal legado celebra a santa Missa, à qual assistem piedosamente o Soberano e toda a Corte.

    É uma hora da tarde: a imensa multidão se dispersa. Estão felizes por terem honrado a Sagrada Eucaristia, apesar da hostilidade dos elementos da natureza.

    Uma dama austríaca dizia: “Nosso Senhor quer nos mostrar que é preciso fazer face às dificuldades para seguiLo”.

    É um pensamento dos melhores. O Deus da Eucaristia quis permanecer o Deus escondido, mas, sem dúvida, quis receber estas homenagens dos grandes e dos humildes.

    Na verdade, tais são as vinculações e as harmonias insondáveis estabelecidas por Deus na sua obra que isto é assim: o Santíssimo Sacramento — Jesus Cristo em corpo, sangue, alma e divindade, que se encontra no alto dos Céus cercado por legiões de anjos que O adoram ininterruptamente — desce para percorrer as ruas, para estar com os filhos dos homens e fazer sua alegria neste convívio com cada um de nós.

    Assim como na Comunhão em que O recebemos no íntimo de nosso coração, Ele ali está, paterno, manso, cheio de bondade, e repetindo de um modo ou de outro a sua frase imortal: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis paz para as vossas almas…”

  • A presença de Cristo entre os homens

    Em palestra feita numa Quinta-Feira Santa, dia da instituição do Santíssimo Sacramento do Altar, Dr. Plinio salienta nosso dever de agradecimento a Jesus e a Maria por esse dom de valor infinito.

     

    Hoje é o dia da instituição da Santíssima Eucaristia. Os senhores devem tomar em consideração a propósito da Santa Ceia, o seguinte pensamento que me ocorreu certa vez.

    Uma pessoa que tivesse Fé e soubesse que Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus, assistisse à sua Crucifixão e estivesse informada de que depois viriam a Ressurreição e a Ascensão, essa pessoa poderia se perguntar: “Depois da Ascensão, nunca mais virá Ele à Terra? Então, até o fim do mundo Ele estará ausente? Seria isto arquitetônico? Seria razoável, tendo Ele feito pela humanidade tudo quanto fez?”

    Jesus Cristo imolou sua vida de um modo dolorosíssimo e resgatou todo o gênero humano. Ele quis condescender em contrair com os homens que Ele salvou essa relação tão especial, de ser Ele a cabeça do Corpo Místico, que é a Igreja. E quis, pela graça, estar continuamente com todos os homens até o fim do mundo, de maneira a, por ela, vir a ser a alma de nossa própria alma, o princípio motor de nossa vida sobrenatural. Poderia, então, haver deste lado tanta união com Ele e, uma vez Ele morto, uma tão completa, tão prolongada, tão irremediável separação? Seria possível que Jesus subisse aos Céus e cessasse assim a presença real d’Ele na Terra?

    Tudo clamava pela instituição da Eucaristia

    Não quero dizer que a Redenção e o sacrifício da Cruz impusessem a Deus, em rigor de lógica, a instituição da Sagrada Eucaristia. Mas pode-se dizer que tudo clamava,tudo bradava, tudo suplicava por que Nosso Senhor não se separasse assim dos homens.

    E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever que Nosso Senhor arranjaria um meio de estar sempre presente, junto a cada um dos homens por Ele remidos. De forma tal que, depois da Ascensão, Ele estivesse sempre no Céu, no trono de glória que Lhe é devido, mas ao mesmo tempo acompanhasse passo a passo a via dolorosa de cada homem aqui na Terra, até o momento extremo em que cada um dissesse, por sua vez: “Consummatum est” (Jo 19,30).

    Como se faria essa maravilha?

    Essa hipotética pessoa não poderia adivinhá-la, mas deveria ficar sumamente suspeitosa de que, de algum modo, ela se realizaria. De tal maneira está nas mais altas conveniências da qualidade de Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo — o qual é nosso Protetor, nosso Médico, nosso divino Amigo — que seria próprio d’Ele fazer por nós esse prodígio.

    Eu creio que se eu assistisse à Crucifixão e soubesse da Ascensão, ainda que não soubesse da Eucaristia, eu começaria a procurar Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer de que Ele tivesse deixado de conviver com os homens.

    Presente em todos os lugares, em todos os momentos

    Esse convívio verdadeiramente maravilhoso de Jesus Cristo com os homens se faz, exatamente, por meio da Eucaristia.

    Em todos os lugares da Terra, em todos os momentos, Ele está realmente presente, nas catedrais opulentas e nas igrejinhas pobres. Quantas vezes, viajando em estradas de rodagem, encontramos umas capelinhas minúsculas, pobres, que dão para acolher apenas umas vinte ou trinta pessoas. Passamos por uma delas e comovemo-nos, pensando que nela Nosso Senhor Jesus Cristo esteve, está ou estará realmente presente — com toda a glória do Tabor, com toda a sublimidade do Gólgota, com todo o esplendor da Divindade — de tal maneira Ele multiplicou pela Terra a sua presença adorável!

    Olhamos para as pessoas que encontramos numa igreja, e pensamos: “Nosso Senhor Jesus Cristo está presente neste homem que comunga. Naquele outro, estará ainda nesta semana, talvez hoje mesmo, talvez amanhã. Estará presente tantas e tantas vezes! Eis um homem que vai ser transformado, embora por algum tempo, num sacrário vivo. Muito mais do que num sacrário, porque o tabernáculo contém as espécies eucarísticas, mas não comunga”. Aí nós podemos medir bem a prodigiosa obra de misericórdia realizada por Nosso Senhor, com a instituição da sagrada Eucaristia. Tanto quanto a presença d’Ele tem um valor infinito, tanto assim também tem valor infinito o fato de Ele estar realmente presente sob as sagradas espécies por toda a Terra, e em todos os homens que queiram condescender em O receber.

    É muito bom, também, imaginarmos as horas e horas e horas que Ele passa abandonado nos sacrários, adorado apenas por Nossa Senhora, pelos Anjos e Santos do Céu. Pensar nos homens ausentes e distantes, e Ele à espera de que um deles queira vir recebê-Lo. De tal maneira o Infinito se sujeita ao que é finito, Aquele que é a própria pureza e a própria perfeição, se sujeita às boas disposições e, mais ainda, às vezes às más disposições daqueles que bem mal O querem receber.

    Enlevo e gratidão

    Por pouco que se pense nisto tudo, nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo, de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Última Ceia. Só uma inteligência divina poderia excogitar a sagrada Eucaristia, poderia imaginar esse meio de estar presente por toda parte e de entrar em todos os homens. E só mesmo um Deus podia realizá-lo!

    Por mais que essas verdades sejam sabidas, é imperioso que nós detenhamos sobre elas nossa atenção e, por intermédio de Nossa Senhora, demos graças enormes a Deus, pela instituição da sagrada Eucaristia.

    Simplesmente agradecer “por intermédio” de Nossa Senhora?

    Se é verdade que todo dom vindo do Céu para os homens foi pedido por Ela — porque sem seu pedido o dom não teria sido dado — é verdade que Nossa Senhora pediu a instituição da sagrada Eucaristia, e foi pelos rogos d’Ela que Nosso Senhor Jesus Cristo a instituiu. Portanto, não devemos utilizá-La apenas como intermediária desse agradecimento, mas devemos agradecer também “a Ela” a sagrada Eucaristia.

    Devemos agradecer a Jesus, que condescendeu em instituí-la, e a Maria que, movida pela graça, pediu a Deus esse favor transcendentalíssimo, e o obteve para nós.

    É este pensamento que não pode deixar de estar presente nos nossos espíritos nesta Quinta-Feira Santa.

    A maravilha da Missa

    Há um pensamento transcendental, que também devemos ter em vista hoje, e que diz respeito ao santo Sacrifício da Missa. Os senhores sabem bem que a transubstanciação se opera no próprio ato em que Nosso Senhor Jesus Cristo renova a sua Paixão. A essência da Missa, que é a renovação da Paixão e Morte de Jesus Cristo, está na transubstanciação, que é o prodígio pelo qual o pão e o vinho se fazem Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas palavras sacramentais pronunciadas pelo sacerdote. A Missa, que é ao mesmo tempo oferecimento e imolação, é também o ato determinante da presença real de Jesus sob as espécies que depois se conservam nos sacrários. Então, aquele homem que estivesse presente no Calvário, depois do “Consummatum est”, depois que as santas mulheres receberam o corpo descido da Cruz, depois que Nossa Senhora chorou sobre Ele e foi embalsamado, depois que Ele foi levado até o sepulcro, depois que a Cruz ficou sozinha no alto do Gólgota e todo mundo foi embora — aquele homem ali solitário, com o espírito cheio de Fé, compreenderia ser aquela Cruz o símbolo de um ato que tinha que se re-

    novar, de um ato que, pela mesma lógica, convinha enormemente que se multiplicasse.

    Esse ato, de fato, se renovou de um modo prodigioso por toda a Terra, e continuará se renovando até o fim do mundo, na Missa.

    Os teólogos dizem que o Sacrifício da Missa tem um valor tão inapreciável e infinito, ao pé da letra, que se em um determinado dia ela deixasse de ser celebrada, a justiça de Deus cairia sobre o mundo, dando-lhe fim.

    Houve um pintor — não me lembro qual — que pintou um quadro muito bonito, representando a última Missa sobre a Terra. Mostra ele, no meio do caos e da desordem, um padre que celebra a Missa, oferecendo a Deus o Sacrifício do Altar. Nesse momento, estão todos os Anjos prontos para cair sobre a Terra para executar a justiça de Deus e desencadear o fim do mundo. Mas eles todos estão parados, ainda, à espera de que a última Missa tenha sido celebrada. Porque tal é a reverência de Deus Padre para com o sacrifício de seu próprio Filho, a Ele oferecido na Missa, que nem o desígnio de acabar com o mundo O faria precipitar sua mão, antes desse sacrifício ser concluído.

    Sacerdócio e bondade de Deus

    Nós devemos considerar ainda que a Quinta-Feira Santa foi o dia da instituição do sacerdócio. O poder de consagrar foi conferido aos apóstolos nesta ocasião. Houve nesse dia, portanto, três maravilhas, conexas entre si: o Sacrifício, o Sacramento e o Sacerdócio, às quais se deve juntar o insigne ato do lava-pés.

    Entretanto, o dia da instituição da Eucaristia, que deveria ser um dia de alegria, um dia de júbilo, é um dia de júbilo misturado com tristeza. Tristeza por causa da Paixão que se aproxima. Tristeza por causa do ódio satânico que fervia em torno mesmo do Cenáculo, onde Nosso Senhor Jesus Cristo estava por essa forma consumando a sua obra. Tristeza por causa da tibieza dos apóstolos, da fraqueza daqueles que eram, entretanto, os primeiros e os mais imediatos beneficiários de todas essas maravilhas. Tristeza por causa do filho da perdição, que estava sentado entre os apóstolos e ia executar o crime nefando, o pior crime da História, o de vender por trinta dinheiros Nosso Senhor Jesus Cristo.

    E Ele, sendo Deus, tendo conhecimento de todas as coisas que iam acontecer, entretanto não trepidou em acumular tantas maravilhas sobre as pessoas desses pobres miseráveis que daí a pouco iam fazer tudo quanto fizeram, e do traidor por excelência, que fez tudo quanto fez.

    Os senhores estão vendo o que é a vocação. Os senhores estão vendo o que é a misericórdia de Deus, a qual nada consegue abalar ou demover. Jesus Cristo tinha intuito de construir o seu Reino sobre a Terra, tinha o intuito de fazer daqueles apóstolos os pilares desse Reino. De fato, Ele cumulou de dons esses apóstolos. Eles foram infiéis, mas esses dons não se perderam. Os apóstolos acabaram sendo fiéis e as intenções de Nosso Senhor Jesus Cristo acabaram se realizando.

    Graça a pedir na Quinta-Feira Santa

    Aqui nós temos um argumento para nos estimularmos no meio de nossas incontáveis fraquezas.

    Quantas razões para nós batermos no peito! Quantas razões para considerarmos as nossas confissões apressadas, as nossas comunhões mecânicas e sem piedade verdadeira! Quantas razões para pensar nas mil ocasiões em que estivemos abaixo de nossa vocação!

    Entretanto, Nossa Senhora continua a nos proteger, continua a nos ajudar, continua a nos conceder graças de toda ordem. Podemos esperar que Ela tenha a intenção misericordiosa de nos conservar como seus apóstolos para todo o sempre, para a criação do Reino de Maria, apesar de todas as nossas insuficiências, de nossas carências, de nos-sas infidelidades.

    E assim devemos nos inclinar a seus pés e pedir que Ela nos trate como tratou os apóstolos e obtenha para nós um trato análogo da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, pedir-Lhe que — fechando os olhos às nossas fraquezas e misérias passadas e presentes, e até mesmo àquelas que de futuro nós possamos ter — Ela queira não romper esse pacto de misericórdia que Ela estabeleceu conosco. Que Ela queira manter esse pacto e fazer chegar logo o dia mil vezes feliz em que nos confirme na fidelidade. E em que nós possamos, afinal, ser para Ela razão de uma alegria estável, permanente, durável, sólida e séria, por nossa grande fidelidade.

    Esta é a graça que na Quinta-feira Santa devemos especialmente pedir.

  • Para alcançarmos a eternidade

    Maria, porque é Mãe, deseja sobretudo a eterna salvação de seus filhos, pelos quais intercede. A vida presente passa. Marcada com felicidades, com infelicidades e com tropeços, um dia acaba.

    É a eternidade que principalmente importa. Para nós, a única atitude sensata é procurar salvar nossas almas, para o que são essenciais as graças e virtudes que a Santíssima Virgem obtém de Deus.

    Dirijamos a Ela, portanto, sem cessar, essa súplica humilde e filial: “Ó Rainha dos Corações, por cujas mãos Deus governa a História e o mundo, movei nossas almas segundo os vossos desígnios e alcançai-nos a eterna beatitude. Assim seja!”

  • São Fernando de Castela, incansável batalhador

    São Fernando de Castela, incansável batalhador na reconquista espanhola, assim rezava: “Senhor, Vós que sondais os corações, sabeis que busco vossa glória e não a minha; não me proponho conquistar reinos perecíveis, mas difundir o conhecimento de vosso nome”.

    Façamos nossa, essa bela prece, a fim de alcançarmos a virtude da despretensão: “Em todas as nossas ações de apostolado, Senhor, procuramos exclusivamente vossa glória e não a nossa. Não almejamos conquistar para nós um prestígio perecível, mas difundir o conhecimento da verdade de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, da doutrina da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana!”

    (Extraído de conferência em 29/5/1968)

  • Santa Joana d'Arc

    Virgem heroica, virgem pura, virgem encantadora, Santa Joana d’Arc foi suscitada por Deus para restituir à França sua glória épica e cavalheiresca.

    A humilde pastora de Domrémy fora chamada a brilhar na corte de um rei, onde a inocência dela se revelou com a clareza do sol ao meio-dia; destinada a viver num campo de batalha onde, em meio a lamentáveis desregramentos, ela reluziu como um círio de cera puríssima em plena noite…

  • O poder da voz de Maria

    Ao som da voz de Maria Santíssima, São João Batista, ainda no seio materno, estremeceu de júbilo e, segundo teólogos, nesse mesmo instante foi purificado da mancha original.

    Este fato nos revela a poderosa intercessão de Maria. O eco de sua voz transformou um homem, conferindo-lhe um eminente grau de santidade. Eis o que devemos esperar da Santíssima Virgem: que sua voz fale no íntimo de nossas almas, e que, de um momento para outro, esse timbre imaculado nos santifique, concedendo-nos uma virtude que anos de lutas e de trabalhos não nos proporcionaram.

    Por isso, todo aquele que tenha algum desânimo, tristeza ou perplexidade na vida espiritual pode fazer sua prece que a liturgia tomou das palavras do centurião a Jesus (Lc VII, 6-7) e dirigir-se a Maria Santíssima: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e minha alma será transformada, de um momento para outro, se Vós assim o quiserdes”.

    Plinio Corrêa de Oliveira

  • A melhor de todas as mães

    Nossa Senhora é a melhor das mães que houve e haverá até o fim do mundo.

    Imaginemos que do começo do mundo até o seu término, desde Eva até a última mãe que houver, todas essas mães fossem perfeitíssimas, portanto quisessem bem a seus filhos com uma clareza, uma bondade, uma paciência e, ao mesmo tempo, com uma energia, uma força extraordinária. Se fosse possível colher as qualidades de todas elas, somá-las e colocá-las numa só mãe, esta seria de uma tal perfeição que a inteligência humana não conseguiria imaginar.

    Pois bem, esta não seria nada em comparação do que é Nossa Senhora como Mãe. Porque Maria Santíssima é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha especialíssima do Padre Eterno.

    Evidentemente, Ela é tão excelsa que não pode ser comparada com nenhuma criatura, nem com todas as criaturas juntas.

    Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/10/1990)

  • Grandiosa solidão, convívio celestial

    Quando, em sua divina onipotência, dispôs o Padre Eterno que a terra se povoasse de cordilheiras e montanhas, ainda não havia no mundo homens para contemplá-las. Naquela ocasião, os  maravilhosos panoramas constituídos por tantas e tantas elevações desenrolaram- se apenas aos olhos de Deus, e assim permaneceram para proporcionar às criaturas humanas uma leve idéia das belezas arquitetadas por Ele antes de nós existirmos. Podemos, pois, conjecturar que, ao modelar todos esses cenários montanhosos, Deus teve como principal intenção a de nos fornecer a  oportunidade de meditar e refletir a respeito de sua grandeza e de sua majestade infinitas.

    Uma das paisagens mais propícias para esse gênero de considera ções é, a meu ver, a que descortinamos nas regiões circundadas pelos Alpes, ombreadas por aqueles montes e montanhas cobertos  e neve, com toda a poesia e a magnificência que esta traz consigo.

    Às vezes, contudo, o que há de mais belo nesses panoramas não são as camadas de alvura eterna, e sim a configuração deste ou daquele pico — como o famoso Mont Blanc —, com cristas que se  sobrepõem e se elevam umas às outras, dando formas extraordinárias às cordilheiras. Alguns se assemelham a crateras de vulcões que entraram em irrupção, jorrando das entranhas mais quentes  da terra um jato imenso de lava que logo se congelou, petrificado para sempre naquela posição.

    Outros parecem cercados de uma como que muralha natural, imitando a estrutura de muitas fortalezas medievais. No centro do recinto fortificado se encontraria o castelo, formado por rochas  mais acentuadas; e no meio desse castelo imaginário, à maneira de uma torre prodigiosa, elevase o píncaro mais proeminente.

    Em geral, o céu em que esses montes se recortam é de um azul belíssimo, ora claro e límpido, ora profundo e malhado de nuvens que procuram envolver os castelos de ficção. Tudo isso contribui  para o esplendor e a riqueza do panorama, que ainda aquire maior expressividade ao ser introduzida nele a presença humana.

    Com efeito, o homem não pode contemplar os Alpes sem se imaginar a si próprio nesses píncaros, e sem medir a sensação que ele teria se, por exemplo, lhe fossem oferecidos os meios financeiros  e técnicos para construir uma fortificação de verdade naquelas alturas. Quem pudesse habitar esse castelo se sentiria colocado no cume de uma grandeza colossal. Ele se teria pelo castelão dos  castelões, o homem que se encontra numa elevação fantástica e que domina a partir deste ápice, pelo olhar e pelo pensamento, tudo quanto de contemporâneo se desenvolve aos seus pés.

    Em compensação, ele experimentaria também um imenso isolamento. Antes de tudo, porque a neve não é o seu habitat natural. O homem não foi feito para viver constantemente na neve, mas em  lugares onde ela cai durante certo período do ano. Embora existam povos (como os esquimós) que conseguem viver em panoramas nevados, fazem-no entretanto em condições de vida bastante  primitivas e com um desenvolvimento cultural dos mais elementares.

    Nessa perspectiva, a neve acaba dando a impressão de uma paisagem lunar, em que o homem estaria tão isolado quanto se achasse na lua, separado de seus semelhantes, longe de todos,  incompreensível para todos, a todos dominando lá de suas alturas. E sofrendo daquilo a que se referem as Escrituras, a propósito da criação de Eva: “Não é bom para o homem que ele esteja só”. Na  verdade, o isolamento, sobretudo quando se torna mais imponente e mais esmagador pela grandeza, é algo que pesa sobre os nossos ombros.

    E podemos imaginar que não seria diferente para o castelão na sua fortaleza, vivendo ali com apenas dois ou três serviçais, vendo os dias se sucederem às noites e as noites aos dias, com neves e nuvens cercando todas as suas janelas, e seu castelo de tal maneira isolado do próprio monte sobre o qual se ergue que o homem se pergunta se não está voando…

    De outro lado, porém, para os que não vivem na neve, para os que têm de suportar a existência no dia-a-dia rotineiro e trivial, mas conservando suficiente elevação de espírito, para estes haverá  sempre uma vontade de sair da banalidade, um desejo de voar com a alma para dentro dos horizontes grandiosos. De maneira tal que, postos diante de panoramas como os dos Alpes, não seria  estranho que pensassem: “Como seria bom estar lá no alto!”

    Essa grandiosidade amiga das alturas, essa magnífica solidão que procura companhia, em ambas há um pouco de verdade que nos fazem compreender melhor o Céu. De fato, o Paraíso Celeste é de  ma elevação, de uma altitude — não física mas moral — incomparável. Por outro lado, nele não se está só. O homem se encontra na presença d’Aquele que é sua finalidade, e sente a companhia  absoluta para a qual foi criado. Junto a Deus, o justo está como que embriagado da alegria de ter contato com seu Criador, de adorá-Lo face a face, de conversar com Ele, infinitamente mais alto do  que todas as montanhas dos Alpes, mas, ao mesmo tempo, infinitamente mais condescendente, afável e amoroso do que as idéias que essas montanhas sugerem.

    Além disso, o homem se vê inserido em toda a Corte Celeste, na qual ele passa a ser príncipe, ao lado dos Anjos e Santos que povoam a bem-aventurança eterna. E cada um sente ali a felicidade  completa, que reúne as alegrias antitéticas, aparentemente contraditórias, de fazer parte de uma multidão e de estar isolado num píncaro próprio. Ele se acha no mais alto dos cumes, cercado de  um convívio idealmente afetuoso, respeitoso, amável, com a mais perfeita das multidões, que é o imenso povo formado por aqueles que se salvam.

    Plinio Corrêa de Oliveira

    Revista Dr Plinio 38 (Maio de 2001)

  • O fundo de quadro da formação de Dr. Plinio

    Em número anterior acompanhamos as considerações de Dr. Plinio sobre o papel que a Fräulein Mathilde Hellman desempenhou na sua educação. Transcrevemos agora algumas reflexões dele  acerca de outros esteios de sua primeira formação: o ambiente familiar, a influência decisiva  de Dona Lucilia e o não menos importante influxo recebido da Companhia de Jesus.

     

    O fundo do quadro de minha educação foi o resto de tradição católica que eu recebi de minha família, a qual não era nem muito mais nem muito menos católica que o conjunto das famílias  tradicionais em São Paulo, na época de meu nascimento. Essa tradição era ibero-americana, mais especificamente luso-americana, com algumas características do ambiente paulista de onde vinha minha mãe, e do pernambucano, berço de meu pai. Este pertencia à classe dos fazendeiros, senhores de engenho, de ascendência portuguesa muito remota e com várias gerações no Brasil. Tal  tradição, para aqueles que a quisessem analisar bem em seus subentendidos, em suas estruturas, tinha ainda muito do calor e do sabor do Ancien Régime e da Idade Média.

    Admiração sem limites pela Igreja Católica

    Este foi o quinhão que recebi e me habituou a considerar a Igreja Católica como sumamente afim com ele. Depois verifiquei que, mais do que sumamente afim, era a própria base e a alma desse  estado de coisas. Isso me levava a ter para com a Igreja, a fé e a admiração sem limites, quase diria a adoração que, com a graça da Virgem, lhe consagro. Quer dizer, uma fé incondicional,  submissa, jubilosa, total! E qualquer qualidade que haja em mim, com muita alegria e contentamento declaro ser fruto dessa Fé Católica. Ademais, a tradição que mencionei, foi-me legada porque  a doutrina católica vivia na alma das pessoas que constituíam a atmosfera na qual me formei. Ou seja, a fonte verdadeira e viva desse ambiente era a   Fé Católica Apostólica Romana, e a submissão ao Santo Padre, Vigário de Jesus Cristo na Terra.

    Influências de Dª Lucilia e dos padres jesuítas

    Essa influência católica, quer a da tradição brasileira, quer a de minha família, teve dois apoios especialíssimos. Em minha primeira infância, o amparo natural de minha mãe, que se prolongou até   último momento da vida  ela. Dona Lucilia foi para mim um sustentáculo, e depois — quando já não o podia ser — uma alegria. Hoje, ela é para mim uma esperança. São as três etapas de minhas relações com mamãe, à qual eu queria tanto quanto um filho pode querer sua mãe.

    Porém, a partir dos meus doze anos, acrescentou-se uma outra influência: a de Santo Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus, da qual fui discípulo por cursar em um de seus colégios. Esta  influência me penetrou fundo na alma, constituindo um todo harmônico com as anteriores, pelas maneiras de ser católicas: de um lado, a leveza da tradição familiar, e de outro, a tradição de uma  ordem religiosa especificamente combativa como deveriam ser os jesuítas — ambas emanando do espírito da Igreja. Portanto, somando e subtraindo, era a Igreja, a Igreja, a Igreja.

    Cintilações da catolicidade de Dª Lucilia

    Poder-se-ia perguntar como a Igreja vivia no espírito de minha mãe. De um modo bem distinto do que existia na Companhia de Jesus, embora as duas se completassem, porque Dª Lucilia era  muito doce, porém firme; a Companhia de Jesus era muito firme, porém doce.

    É possível fazer uma idéia da doçura e da firmeza de minha mãe, tomando em consideração, por exemplo, o seguinte fato: até a sua morte, ocorrida quando eu tinha 65 anos, ela jamais me fez um  elogio. Somente uma vez, estando eu na Europa, recebi uma carta sua, na qual, de passagem, dirigia-me palavras laudatórias. Nada mais. Por quê? Por se achar convicta de que não se deve  enaltecer as pessoas, colocando-as em risco de se tornarem vaidosas. Se não me elogiava, em contrapartida não me privava de seus sábios conselhos…

    “Plinio — dizia-me ela certa feita —, deves compreender que sempre ao falar em público, as pessoas têm menos desejo de te ouvir do que tu tens vontade de lhes dirigir a palavra. Portanto, sejas  desconfiado; fales menos do que quererias, e quando pensares que falaste pouco, teus ouvintes ainda julgarão que terás falado demais. É necessário estar atento e fazer o contrário. Sempre sejas  muito resumido e breve. Além disso, numa conversa com alguém, fixa-te bem que a pessoa não quer ouvir falar de ti. Ela já acha bastante a tua presença. Fales com os outros sobre eles mesmos,  ou das coisas do Céu. Não fales de ti, porque tu és por excelência o tema desinteressante para os outros.”

    Como esse, deu-me ela uma série de conselhos muito bons, nos quais transparece a severidade, procurando a exatidão nos mínimos detalhes.

    Nesse sentido, não posso me esquecer de um final de ano letivo no Colégio São Luís, quando recebi quatro medalhas na distribuição de prêmios. Ao chegar em casa, minha mãe abriu a porta, viu  as medalhas, ficou bastante satisfeita e me beijou muito, etc. No ano seguinte ganhei três medalhas, o que não representava um mau resultado para um aluno de colégio tão rigoroso. Como de  costume, Dª Lucilia me esperava à porta de nossa residência: antes de me olhar, fixou as vistas em meu peito e exclamou: “Só três!?”. E eu lhe disse, sorrindo: “Mamãe, uma é de ouro”.

    Então ela  me abraçou com intenso carinho…

    Assim era o tônus e a maneira de ser dela. Lembro-me de outro exemplo. É conhecido o meu hábito de falar acaloradamente. Como de costume, eu me sentava à mesa ao lado de mamãe, e quando  me punha a conversar de modo mais entusiasmado, sentia dois dedos dela batendo em minha mão, como quem quisesse dizer: “Seja menos acalorado, é necessário mais moderação”. Com este  significado: não falar muito alto, nem demasiado, contra as pessoas. Era sua maneira de ser. Porém, na doçura, ela era absolutamente indescritível. E simplesmente saber que mamãe estava em  casa, enquanto eu trabalhava sozinho em meu escritório (uma das dependências do nosso apartamento), era para mim uma fonte de suavidade. Às vezes ela entrava, sem me dirigir a palavra a fim  de não me interromper, mas colocava uma mão sobre meu ombro e dizia somente: “Filhão!”, e me beijava. Isso ela o fazia freqüentemente, e valia para mim um mês de doçura. Já no âmbito da  Companhia de Jesus, cumpre dizer, aprendi o contrário: ter espírito militante, combatividade, lógica, perspicácia, penetração, resistência, a norma que Santo Inácio de Loyola ensinava de agere  contra, isto é, enfrentar o adversário de nossa salvação, batalhar, etc…

    E eu procurei harmonizar as duas influências, com indiscutíveis e salutares efeitos para minha alma.

    A superior proteção de Maria Santíssima

    Essa breve exposição sobre o conjunto de pessoas e ambientes que tiveram papel determinante na minha formação seria entretanto incompleta, se não me referisse Àquela a quem devo, mais do  que a esses já citados, tudo o que houver de bom em mim: Nossa Senhora. Ela é a Protetora soberana, que sempre me socorreu e auxiliou em todos os momentos de minha vida. E minha devoção a  aria Santíssima é a razão de eu ter alcançado as graças e favores mais insignes no cumprimento de meu chamado, como a correspondência e a fidelidade à vocação, assim como a disposição de  nunca desanimar ao longo dessa via. Terá Ela permitido que me assaltassem perplexidades e receios de não atender aos desígnios de Deus a meu respeito. Nunca, porém, a tentação do desânimo.

    Cônscio da necessidade dessa augusta proteção de Nossa Senhora, e da retribuição que Lhe devo em amor e entrega, sempre quando comungo, imediatamente depois de recebido o Santíssimo  Sacramento, o primeiro pedido que faço a Deus é que me conceda mais devoção à Virgem Bendita.

    Pedido este que dirijo a Nosso Senhor pelas próprias mãos de Maria, sabendo que, como onipotente intercessora, me obterá de seu Divino Filho mais essa graça inestimável de crescer  continuamente no amor a Ela.

    Plinio Corrêa de Oliveira

    Revista Dr Plinio 74 (Maio de 2004)